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Técnicos e rebuscados
Prospectos seguem à risca o modelo importado dos Estados Unidos e perdem a oportunidade de atrair - e bem informar - o investidor individual

 

Sempre que uma nova oferta pública desponta no mercado de capitais, surgem com ela as infindáveis discussões para a elaboração do documento que abrigará todas as informações, operacionais e financeiras, da companhia. Mais conhecido como prospecto, esse relatório é escrito a algumas mãos. Opinam ali os advogados da empresa, os consultores dos bancos coordenadores e, como não poderia faltar, os donos do próprio negócio. Em meio a tantos palpites, tal publicação chega a demandar até três meses para ficar pronta, o que inclui dezenas de alterações vindas desses agentes e revisões que se arrastam madrugadas afora. O lado triste dessa história é que, depois de tanto sacrifício, nasce um texto para lá de técnico, cujo tamanho — alguns com mais de 400 páginas — desencoraja qualquer um que tivesse a pretensão de lê-lo do início ao fim.

Mas a saga da elaboração de um prospecto ainda reserva outras peculiaridades. Por exemplo, os executivos da companhia ofertante são os que menos têm autonomia para opinar sobre a redação final a ser apresentada aos seus potenciais investidores. Afinal, se dependesse apenas da empresa, talvez seu conteúdo não tivesse um formato rebuscado, onde sobram expressões de finanças, parágrafos gigantes, trechos repetitivos e outras características daquele dialeto que podemos apelidar de “juridiquês”. Para ilustrar essa situação, a reportagem selecionou, aleatoriamente, alguns exemplos de como vem sendo tratado o principal — e, praticamente, único — canal de comunicação de uma companhia com seus futuros investidores em um processo de oferta pública de ações.

Será que aquele investidor mais leigo, pessoa física, não ambientada com os termos do mercado financeiro entenderia a frase a seguir: “A Companhia não registrará transferência de Ações para os adquirentes do poder de controle enquanto estes não subscreverem o termo de anuência ao Regulamento do Novo Mercado”? Ora, não seria mais didático dizer que as ações só serão vendidas para um controlador se este assumir o compromisso de manter a companhia no Novo Mercado da Bovespa?

E como o leigo conseguiria compreender que a solidez da empresa em que pretende investir está atrelada “a fatores que contribuem para uma significativa geração de caixa operacional, bem como para a solidificação da posição financeira da companhia com baixos níveis de alavancagem (razão entre o total dos empréstimos, financiamentos e leasing, líquido de nossas disponibilidades e o nosso Ebitda de 1,37/1 em 31 de dezembro de 2005)”?

Está bem. Você pode até dizer que, apesar de ser técnico, o texto é perfeitamente compreensível para quem conhece a fundo o linguajar do mercado. Contudo, para quem é voltado o prospecto? Todos os candidatos a acionistas são obrigados a ter um MBA em finanças para poder investir em bolsa? Claro que não. O artigo 38 da Instrução 400 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) diz que “o prospecto é o documento (…) que contém informação completa, precisa, verdadeira, atual, clara, objetiva e necessária, em linguagem acessível, de modo que os investidores possam formar criteriosamente a sua decisão de investimento”.

Fica claro, portanto, que os leigos têm, sim, o direito a uma informação transparente e, mais ainda, apresentada de maneira didática para poderem avaliar, com segurança, se devem ou não investir num determinado papel. Essa exigência torna-se maior ainda quando consideramos que, num IPO, as companhias, alegando estarem no período de silêncio — o “quiet period” — costumam se calar até mesmo diante de uma solicitação para decifrar uma frase técnica. E, além do mais, estão impedidas de se manifestar na mídia, dificultando o potencial investidor leigo de ficar sabendo pela imprensa o que não entendeu no prospecto.

Para o superintendente de registros da CVM, Carlos Alberto Rebello, parte das dificuldades de interpretação poderia ser evitada se o texto do prospecto fosse escrito por um profissional de comunicação. Ele acredita que a cultura de escrever difícil foi um hábito incorporado décadas atrás pelos escritórios de advocacia brasileiros a partir do modelo norte-americano. A diferença é que aquele país tem uma cultura altamente litigiosa, isto é, qualquer brecha na literatura de um documento já daria margem a uma ação na Justiça com pedido de indenização. “No Brasil, não temos essa necessidade de a companhia usar a redação de uma peça jurídica para evitar levar um processo”, acrescenta.

Ainda assim, é preciso lembrar que os norte-americanos vêm tratando dos prejuízos que o abuso do juridiquês pode causar ao investidor, sobretudo às pessoas físicas. Estamos falando de um movimento conhecido como “Plain English” — um conceito introduzido por Arthur Levitt, ex-presidente da Securities and Exchange Commission (SEC), em prol de uma linguagem mais clara e menos carregada de termos jurídicos.

O puxão de orelha nas companhias norte-americanas para evitarem termos técnicos foi dado há oito anos. No entanto, seus propósitos voltaram à pauta da SEC em agosto do ano passado, quando o novo presidente do órgão regulador, Christopher Cox, reforçou a importância de as empresas listadas nos Estados Unidos promoverem o que ele chamou de um “disclosure verdadeiramente útil”.

O advogado especializado em mercado de capitais do escritório Linklaters, Gregory Harrington, conta que fazer as empresas se adaptarem ao Plain English em seus normativos e demais publicações não foi fácil. “Era como dizer aos motoristas daquele país que, de uma hora para outra, todos deveriam dirigir na mão inglesa”, brinca, referindo-se ao sentido inverso de tráfego característico das ruas do Reino Unido. “Hoje já aprenderam a ser bem mais didáticos, embora ainda haja muitas referências ao vocabulário de finanças”, acrescenta ele.

Existe um outro ponto crítico quando a discussão é o tecnicismo do prospecto. Se é fato que os emissores querem atrair a atenção dos investidores, incluindo aí as pessoas físicas, como permitem que o documento contenha frases iguais às citadas nos parágrafos acima?

Ao conversar com as áreas de RI de três empresas recentemente listadas na bolsa, a reportagem constatou que a proposta dos executivos sobre a inclusão de uma linguagem de fácil acesso ao público leigo costuma ser voto vencido nas reuniões para a elaboração do prospecto. Na maior parte das vezes, eles acabam até sendo convencidos de que o juridiquês é o modo mais seguro de se protegerem de uma eventual ação penal.

Na Localiza, o diretor de Relações com Investidores, Roberto Mendes, conta que, no IPO da companhia, em 2005, a preparação do prospecto demorou três meses. Um escritório assumiu a parte referente às exigências da CVM e outro se responsabilizou por trechos diversos, como os fatores de risco. “Não é uma linguagem fácil, tem vários cacoetes de advogados. Na hora do road show, tivemos de traduzir todo o ‘advoquês’ para os investidores”, revela. “Mas sabíamos que era tudo para proteger a companhia de um processo. Nessas ocasiões, advogado é que nem padre: o que ele disser, a gente segue!”

Já na CPFL, o texto feito nos moldes de um escudo “antiprocesso” também foi aceito passivamente. “O prospecto é um documento legal e os advogados sabem mais do que a gente neste aspecto”, afirma o gerente de RI da companhia, Vitor Fagá. “Até porque existem outros modos de nos comunicarmos com a pessoa física, como os press releases ou as apresentações contidas no site da companhia.”

MUITO VAI E VEM — Concordando ou não com a versão final do prospecto, a verdade é que sua elaboração requer uma dose extra de paciência de toda a equipe envolvida. Isso é imprescindível, por exemplo, para um grupo respeitar as alterações vindas de outros agentes, mesmo considerando-as pouco relevantes ou a poucas horas de o prazo se esgotar na CVM. “Aos 45 do segundo tempo, ainda chegava e-mail pedindo para mudar um destaque em itálico por um negrito. Ou um advogado querendo trocar a palavra ‘previsão’ por ‘expectativa”, lembra Mendes, da Localiza, que, apesar do apuro, procurou manter o bom humor. “Era um Deus nos acuda.”

Outro que guarda boas histórias sobre o difícil parto de um prospecto é o diretor de RI da CSU Cardsystem, Ricardo Leite. “Quem não conhece o processo não faz idéia do quanto é complexo. E quem faz alguma idéia pode ter certeza: é mais difícil do que se imagina”, brinca. Ele conta que os textos passam por um número enorme de revisões. “As alterações só terminam porque o dia amanhece e temos de mandar o documento para a gráfica, e protocolar na CVM.”

Só no time de advogados que trabalharam no prospecto da CSU havia seis profissionais: um falando em nome da companhia para o mercado nacional, outro, também da CSU, focado nas preocupações do investidor internacional, além de dois outros pares com as mesmas atribuições, só que representando, respectivamente, os bancos líderes da operação e as instituições coordenadoras auxiliares. “Ah, esqueci que também tinha um auditor dando opiniões”, acrescenta Leite.

A seção que mais choca os profissionais de RI neste documento é, sem dúvida, a dos fatores de risco. Nos prospectos é comum, por exemplo, haver citações sobre a possibilidade da volta da hiper-inflação, a perda de executivos para o concorrente, as chances de uma crise política sem precedentes e até o risco de um acontecimento diplomático inesperado. Quanto à linguagem adotada, o diretor da CSU imagina que pudesse haver uma obrigatoriedade de as empresas elaborarem uma espécie de sumário com uma linguagem mais didática para os leitores menos qualificados. Na sugestão de Leite, caso o investidor individual quisesse se aprofundar em algum detalhe, bastaria recorrer ao prospecto integral que, obviamente, acompanharia a versão “light” — ambos com a chancela da CVM.

O Comitê de Orientação para Divulgação de Informação ao Mercado (Codim) chegou a fazer a mesma proposta no seu último workshop, quando discutiu o “quiet period”, em maio. “Na verdade, essa versão didática seria um anexo do prospecto”, explica Haroldo Levy, um dos coordenadores do comitê e presidente da Apimec-SP. “Ninguém tira o mérito do prospecto. Nós entendemos a necessidade de o advogado proteger a empresa e os bancos coordenadores. Mas é preciso haver uma solução intermediária, pois a linguagem é, sim, bastante difícil.”

Dois dos maiores escritórios de advocacia que realizam esse serviço também foram ouvidos pela reportagem. O curioso é que ambos reconhecem a falta de didatismo no documento. “Diante de uma responsabilidade dessa natureza e de todos os detalhes exigidos pela CVM, não tem como escrever um prospecto sem usar uma linguagem técnica”, diz Carlos Barbosa Mello, da Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados. Para ele, o fato de algumas companhias pertencerem a setores da economia menos conhecidos também atrapalha a intenção de usar expressões mais coloquiais. “Priorizamos a importância de as informações estarem corretas no lugar de serem colocadas de forma simples.”

Já o advogado Carlos José Rolim de Mello, do escritório da Machado, Meyer, Sendacz e Opice, recorre a uma comparação para justificar sua posição. “Imagine que você comprou um carro zero e, uma semana depois, o motor estourou porque fez uso indevido do automóvel. Se no manual não constar todos os limites que aquele determinado veículo tinha, o consumidor poderá processar o fabricante.” Na avaliação de Mello, para preservar os direitos de quem está vendendo é preciso usar o juridiquês. E ele também não concorda que a solução para uma linguagem mais acessível ao público leigo estaria na confecção de um segundo documento. Haveria, então, alguma outra maneira de preservar a segurança jurídica das companhias sem obrigar o investidor a ler um catatau chato e desestimulante?


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