As companhias do setor de energia elétrica estão em pane, e o autor do curto-circuito é o próprio governo federal. Em 11 de setembro, foi anunciada a Medida Provisória (MP) 579, cujos estalos queimaram US$ 20 bilhões em valor de mercado dessas empresas em apenas dois meses. Editada pela presidente Dilma Rousseff, a norma impacta diretamente a receita das companhias do setor ao exigir que a renovação de concessões com vencimento previsto entre 2013 e 2017 seja feita sob a condição do abandono do regime de preços livres. Isso significa que as empresas que aceitarem os termos da renovação terão de se submeter, a partir do ano que vem, a tarifas reguladas pelo poder concedente.
As geradoras, que hoje vendem energia a R$ 90 o MWh, terão de se acostumar com preços bem mais módicos, de cerca de R$ 30. Elas só estarão autorizadas a transferir para o preço da energia os custos de operação e manutenção (O&M) das hidrelétricas, que serão calculados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). “Ainda é cedo para avaliar os impactos, mas o setor poderá deixar de ganhar R$ 22 bilhões por ano com a venda de energia”, estima José da Costa Carvalho Neto, presidente da Eletrobrás. “Isso pode gerar uma perda de receita anual para a companhia de R$ 6 bilhões a R$ 8 bilhões”, ressalta, lembrando que a holding precisará reduzir custos, por meio da diminuição de pessoal, para assegurar retorno nesse novo cenário.
A MP determina que as concessionárias de geração cujos ativos vencem entre 2013 e 2017 ofertem sua energia no mercado cativo (formado, principalmente, pelos consumidores residenciais e pelo pequeno comércio e a indústria), em vez de vendê-la no mercado livre (integrado pelas grandes empresas, que podem negociar sem restrições seu fornecedor), no qual os preços são mais altos. Com isso, o governo pretende reduzir a tarifa de energia para a população e diminuir, no médio prazo, o preço da commodity também no mercado livre. Por essa razão, analistas acreditam que até mesmo as geradoras não afetadas pela MP, como a AES Tietê, podem ser prejudicadas. Marcos Severine, do Itaú BBA, avalia que a geradora do grupo venderá sua energia a partir de 2016 a R$ 95 o MWh, abaixo da projeção de R$ 140 mantida antes do anúncio da MP. Como consequência, ele baixou o preço-alvo da ação da AES Tietê para o fim de 2013 de R$ 27,60 para R$ 20.
A Cemig também sentiu no preço de suas ações o peso da medida: perdeu 40% de valor de mercado em apenas um mês. Conforme o presidente da empresa, Djalma de Morais, nas primeiras semanas do anúncio 5% dos investidores saíram do papel. Atualmente, a Cemig luta contra a decisão do governo de renovar sob as novas regras as concessões de três usinas da empresa — São Simão (1.710 MW), Jaguará (4.242 MW) e Miranda (408 MW), responsáveis por 37% da capacidade instalada em geração. “Em 1997, quando a AES tinha participação na Cemig, foi feito um contrato, assinado pelo então ministro da República, Raimundo Brito, no qual esses três ativos seriam renovados automaticamente entre 2015 e 2017”, argumenta Morais.
A companhia mineira vem empreendendo esforços no Congresso para manter o contrato anterior. Caso não tenha sucesso, considera recorrer à via judicial. Em 15 de outubro, prazo final para as empresas anunciarem se renovariam, ou não, suas concessões, a Cemig mostrou que vai levar a briga até onde for preciso. Diferentemente da maioria das concessionárias do setor que reclamou, mas, no fim, decidiu renovar os contratos, a Cemig declinou da atualização da concessão no caso das três hidrelétricas citadas acima. Em outras 18, pediu a renovação, mas fez ressalvas. Assegurou que só assinará os contratos se eles trouxerem retorno aos acionistas (veja quadro na página 18).
COMPENSAÇÕES CONTROVERSAS — Ao anunciar a MP, o governo também definiu que as empresas que aceitarem os termos fixados serão reembolsadas por ativos ainda não depreciados, uma vez que a remuneração dessas usinas não poderá mais ser repassada às tarifas. Nas contas do governo, as indenizações devem atingir cerca de R$ 20 bilhões, sendo mais de 60% desse valor direcionado ao grupo Eletrobrás.
As estimativas, contudo, são alvo de divergência. Uma das vozes dissonantes é a Cesp. De acordo com o governo, três usinas da geradora paulista estão com suas concessões perto de expirar e já tiveram seus custos amortizados em grande parte: a maior delas, Ilha Solteira (3.444 MW), amortizou, segundo a União, 99,7% dos investimentos; a hidrelétrica de Jupiá (1.552 MW) não tem mais nada a receber; e só a menor usina, a de Três Irmãos (808 MW), se habilitaria à indenização. Ela teve até hoje, calcula o governo federal, 68% dos investimentos amortizados. Com base nesses números, a União estima que a geradora teria R$ 1 bilhão em indenizações a receber. O estado de São Paulo, controlador da Cesp, discorda: em suas planilhas, boa parte dos custos das três usinas não foi amortizada, e o valor da compensação pode chegar a R$ 8 bilhões.
As empresas de transmissão também estão com a corda no pescoço. A MP 579 considera depreciados todos os ativos de transmissão em operação até maio de 2000. Isso significa que não são elegíveis a receber indenização. Indignada, a Associação das Transmissoras de Energia (Abrate) está trabalhando para suprimir esse item da MP. A entidade estima que as indenizações do segmento superem R$ 15 bilhões.
Mesmo descontente com a iniciativa do governo, a CTEEP, uma das maiores transmissoras do País, manifestou interesse na renovação dos ativos. Sua decisão definitiva, porém, só será tomada após deliberação em assembleia-geral de acionistas. A Aneel deve informar as elétricas sobre quanto receberão de indenização por ativos não depreciados e detalhar o valor das novas tarifas em 1º de novembro. A assinatura dos contratos está prevista para acontecer até 4 de dezembro.
TURBILHÃO DE INDEFINIÇÕES —A previsão dos analistas de investimento é de que as incertezas em relação às empresas de energia elétrica persistirão, pelo menos, até o próximo ano. A última vez em que o setor passou por um inferno astral como esse foi em 2001, quando, por dez meses, a população foi obrigada a reduzir em 20% seu consumo de energia, gerando perdas bilionárias às empresas. “No período de 2011, até o dia 10 de setembro, as ações de algumas elétricas, como Cemig, Cesp e CTEEP, eram negociadas com prêmios de até 30% acima do Ibovespa”, rememora Gustavo Gatass, chefe de análise do BTG Pactual. Ele lembra que existia uma expectativa de que a renovação seria feita automaticamente e sem hipótese de redução drástica dos retornos. “O que incomoda o mercado são as incertezas de como ficará o preço no médio e longo prazos”, afirma o analista. Há também o receio, observa, de um aumento substancial no custo de captação dessas companhias.
Com as estatais na corda bamba (Cesp, Cemig, Eletrobrás e Copel têm concessões com vencimento entre 2013 e 2017), é possível que outras empresas do setor se animem a ganhar espaço no mercado de capitais. “Podemos ver novos players querendo investir e abrir capital”, diz o diretor de um banco de investimentos. A Alupar, que tem concessões na área de energia elétrica, é uma candidata a abrir o capital nos próximos três anos.
EM TRAMITAÇÃO — Na opinião do presidente da AES Brasil, Britaldo Soares, ainda é cedo para avaliar os impactos da MP. “Precisamos aguardar como ela sairá do Congresso”, pondera. A comissão parlamentar mista que analisará a medida provisória foi instalada em 17 de outubro. Será presidida pelo deputado Jilmar Tatto (PT-SP), líder do partido na Câmara, enquanto a relatoria ficará a cargo do senador Renan Calheiros (PMDB-AL). “Minas Gerais e São Paulo têm bancadas fortes, não se sabe o que vai sair de lá”, diz o presidente de uma empresa privada, referindo-se ao fato de a Cesp e a Cemig estarem brigando para algumas concessões suas serem renovadas sob as regras antigas, de preços livres.
A primeira reunião de trabalho da comissão foi marcada para 31 de outubro. Dessa forma, a assinatura dos novos contratos, prevista para 4 de dezembro, deve ocorrer antes de o Senado terminar seu trabalho — uma situação que aumenta o risco jurídico do processo. Teme-se que as condições legais mudem depois de rubricados os contratos.
Ante as indefinições, é difícil saber quais companhias se destacarão no novo ambiente regulatório. É certo, contudo, que, para sobreviver, as elétricas terão de ganhar escala e eficiência — condição que pode reforçar a tendência de consolidação no setor.
Minoritários na cola das elétricas
No início de outubro, a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) enviou carta a executivos das concessionárias de capital aberto alertando que eles devem assinar os contratos sempre pensando na proteção dos direitos de todos os acionistas. Existe uma preocupação, principalmente, em relação à Eletrobrás. Um advogado que representa acionistas minoritários declara que os investidores olharão com desconfiança para os próximos movimentos da estatal. “A diretoria da Eletrobrás garante que, para sobreviver aos novos tempos, terá de ser mais eficiente, reduzindo custos com pessoal, dentre outros. E se ela não levar adiante essa busca por maior eficiência em razão de pressões dos sindicatos ou do governo, que não gostam de demissões?”, questiona. A tendência é de que, em novembro, quando os valores das indenizações e das tarifas forem conhecidos, as elétricas convoquem assembleias-gerais para discutir a viabilidade de renovação das concessões. A CTEEP, por exemplo, informou em comunicado à Bolsa, no dia 10 de outubro, que a formalização da continuidade dos contratos “será objeto de deliberação prévia em assembleia-geral de acionistas, a ser convocada para tal finalidade tão logo disponíveis os termos e condições contratuais definitivos”. Nem todas as companhias, porém, estão abertas a esse tipo de diálogo com os investidores. Ignorando a solicitação feita pelo acionista minoritário François Moureau, a Companhia Energética de Brasília (CEB) protocolou na Aneel pedido de renovação da concessão de seus ativos de distribuição, sem antes convocar assembleia para discutir um plano de saneamento da distribuidora. (R.R) |
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