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Crônica de uma escalada
De um estudo encomendado para tirar o mercado de capitais do fundo do poço, nasce o segmento que revolucionou os padrões de governança das companhias abertas brasileiras

, Crônica de uma escalada, Capital Aberto

No mês em que completa seu quinto aniversário, o Novo Mercado tem motivos de sobra para se orgulhar. No ano de 2006, registrou 20 ofertas públicas iniciais de ações (IPOs) e seis migrações de companhias já listadas anteriormente — dentre elas, nomes de tradição como Banco do Brasil, Perdigão e Embraer. Com um total de 47 companhias (até 31 de janeiro), já é maior que o Nível 1, segmento especial de governança que, até dezembro de 2005, reunia o maior número de empresas (hoje são 36). Para marcar a efeméride, a Capital Aberto se propôs a reconstituir essa escalada a partir do que se costuma chamar de história oral, ou seja, baseada nos relatos das pessoas-chave envolvidas na criação do segmento. Da primeira idéia ao sucesso atual, esse grupo formado por advogados, economistas, profissionais da bolsa de valores e da Comissão de Valores Mobiliários, além de acadêmicos e estruturadores de operações, remexeu os arquivos — e a memória — para resgatar os momentos decisivos da trajetória de um projeto que nasceu desacreditado, mas conseguiu mostrar a que veio.

Ao final dos anos 90, o mercado de capitais brasileiro atrofiava. O número de companhias abertas que optava pelo fechamento de capital crescia desde o início da década, as ofertas iniciais de ações eram escassas e, para que fossem bem sucedidas, deviam obrigatoriamente vir acompanhadas de uma listagem nos Estados Unidos. Os investidores estrangeiros davam sinais claros de que não pretendiam realizar novos investimentos na bolsa brasileira, e esta, por sua vez, via crescer a ameaça de perda de liquidez para a norte-americana, enquanto os mais apocalípticos já perguntavam quem iria “apagar as luzes”. Preocupada com o próprio futuro, a Bovespa contratou o economista José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, para fazer um diagnóstico dos principais problemas do mercado e sugerir caminhos para superá-los. Era o início do ano de 1999.

ESTUDO DO MAPA — O economista convidou o advogado Luiz Leonardo Cantidiano, sócio do escritório Motta Fernandes Rocha, para compor a equipe do estudo, formada por outros três profissionais da MB Associados, José Alexandre Scheinkman, Lídia Goldenstein e Tereza Dias da Silva, além de Antonio Gledson de Carvalho, então professor da Universidade de São Paulo. Naquele momento, Cantidiano tinha acabado de voltar de uma verdadeira maratona de visitas a investidores estrangeiros, realizada a convite de uma instituição financeira internacional que administrava recursos no País. Em apenas cinco dias úteis, percorrera as cidades de Londres, Glasgow (na Escócia), Boston, Los Angeles, São Francisco e Nova York. “Estive com cerca de 25 grandes investidores internacionais que tinham um verdadeiro cardápio de queixas sobre o mercado de capitais brasileiro”, recorda o advogado.

Dentre as principais estavam justamente os problemas mais críticos levantados na fase de elaboração de diagnóstico, que iria servir de base para o desenho do que hoje é o Novo Mercado: a existência de ações sem direito a voto e sua proporção (de até dois terços) na composição do capital das companhias; o fato de os dividendos, oferecidos como contrapartida ao direito de voto, apresentarem histórico incerto; a inexistência do direito de garantia de venda conjunta com o controlador (tag along); uma longa lista de casos de conflitos de interesses e fechamento branco de capital; além dos problemas relacionados à Justiça e à aplicação da lei e da regulamentação (chamados de “enforcement”).

Bem conhecidas a esta altura, essas fragilidades estruturais estavam também no centro de uma discussão que envolvia o governo federal na busca por uma revisão de regras que revitalizasse o mercado de capitais. Mas os envolvidos no projeto queriam encontrar uma solução antes disso. Desde o princípio, tinham concordado que o caminho a ser trilhado não deveria contar com nenhuma espécie de subsídio ou incentivo, visto que estes poderiam minar a sustentabilidade da iniciativa no longo prazo. “Buscávamos uma alternativa calcada num processo de adesão voluntária, que permitisse a criação de um ciclo virtuoso”, diz Cantidiano. Essa proposta contava com um importante apoio e canal de interlocução: o presidente do Banco Central à época, Armínio Fraga, cuja contribuição, segundo Gilberto Mifano, superintendente da Bovespa, foi considerada fundamental. “Ele comprou a idéia logo de cara e nos ajudou com seu prestígio.”

MUDANÇA DE INCLINAÇÃO — Para Mifano, a missão que tinham em mãos ia além da criação de um novo projeto. “Precisávamos redefinir o ‘produto ação’ que, da forma como estava, não atendia mais às necessidades dos investidores e das empresas emissoras.” Com essa orientação em mente, José Roberto Mendonça de Barros procurava instilar em sua equipe o foco nas empresas que ainda não tinham chegado à bolsa e nas características que elas deveriam ter para competir em escala mundial. “Se as novas fossem capazes de iniciar esse ciclo virtuoso, teríamos cumprido a nossa tarefa”, lembra Cantidiano. Foi esse espírito que levou o professor Antonio Gledson a sugerir como fonte de inspiração uma experiência recente, que revolucionara o histórico de aberturas de capital na Alemanha: o Neuer Markt.

Criado em março de 1997 como um segmento exclusivamente dedicado a IPOs, seu foco eram empresas com alto potencial de crescimento — extremamente concentradas, naquele tempo, no setor de tecnologia. O Neuer Markt era, na verdade, o último representante de um movimento das bolsas européias que levara à criação de alguns segmentos com essa denominação (a França teve o seu Noveau Marché; a Itália, o Nuovo Mercato). Gledson explica que, por ter chegado mais tarde, uma particularidade da iniciativa alemã passou levemente despercebida no resto do mundo: suas regras iam justamente na direção contrária da de seus homônimos. No lugar de conceder incentivos, o Neuer Markt adotava exigências de listagem mais severas para criação de um espaço seleto, diferenciado. O resultado dos primeiros anos foi absolutamente inesperado. “Em seu período de auge, 1999, o número de IPOs chegou a 200, num mercado com histórico de aberturas de capital pior que o do Brasil, se levarmos em conta que a Alemanha era então a terceira maior economia do mundo”, conta o professor.

A sugestão de desenvolver por aqui um segmento com regras diferenciadas, voltado exclusivamente a emissões compostas por 100% de ações com direito a voto, foi bem aceita pelo grupo. Faltava, então, pensar na solução para os problemas de enforcement. Um mecanismo mais eficiente de regulação só ficaria completo se houvesse a possibilidade de tornar efetivas as novas regras. Scheinkman sugeriu a criação de uma justiça especializada. Ponderando as dificuldades burocráticas implicadas (aprovar o projeto no Congresso, promulgar a lei, treinar o corpo de profissionais para fazê-la funcionar), Cantidiano sugeriu a alternativa da arbitragem. “A criação de uma câmara especializada evitaria esses transtornos e daria celeridade às questões relacionadas às divergências entre sócios, administradores, controladores etc.”

ACLIMATAÇÃO — Todas as discussões foram consolidadas num projeto final, apresentado à bolsa. Na primeira reunião, a proposta causou um choque. Maria Helena Santana, que estava na gerência de projetos da Bovespa, lembra que, para muitos, a equação entre regras mais duras e crescimento da atratividade da bolsa não fechava. “Vivíamos num mundo antes da Lei Sarbanes-Oxley e as exigências das bolsas norte-americanas já eram consideradas altas. A dúvida era perfeitamente natural e por isso, partimos para um trabalho de convencimento interno dos quadros técnicos.” Ela conta que, antes da apresentação do projeto, o conselho da bolsa já discutia a possibilidade de criação de uma “bolsa ON”, mas não de forma detalhada. As conversas tiveram origem, acima de tudo, nas impressões que os corretores associados traziam de seu contato com a comunidade de investidores. Os propósitos convergiam, a proposta foi aprovada e a bolsa pediu que o grupo também trabalhasse em sua implementação.

Juntas, as equipes lideradas por Maria Helena e Mendonça de Barros se puseram a construir os regulamentos e contratos que seriam celebrados entre a companhia e a bolsa no momento de sua adesão ao segmento. Os pontos eram discutidos por todo o grupo — que contava também com a participação de Gilberto Mifano. As minutas eram preparadas pelo time da Bovespa e revisadas por Cantidiano. Em paralelo, uma outra equipe conduzia o mesmo processo para criar a câmara de arbitragem e o regulamento das penalidades.

Havia ainda o grupo da Comissão de Valores Mobiliários, presidida por José Luiz Osório e também envolvida no processo. Ele conta que os princípios apresentados pela bolsa casavam perfeitamente com a sua visão. “Quando assumi o cargo, estabeleci exatamente os objetivos que guiavam o projeto de criação do Novo Mercado — parte intuitivamente, parte como fruto de estudos e de interações com o BNDESPar.” Pelo menos três reuniões foram realizadas na autarquia para avaliar as regras de cada segmento. Osório lembra que os tópicos mais discutidos eram os relacionados à arbitragem e às partes relacionadas. “Conduzimos uma cruzada para a melhoria da infra-estrutura e das condições do mercado, certos de que a falta de governança prejudicava as boas companhias que já tínhamos e o mercado como um todo.”

Finalizados todos os documentos, ao final do ano 2000, o projeto foi aprovado pelo conselho da bolsa, incluindo, além do Novo Mercado, os níveis 1 e 2 (ver quadro na página 12). No mês de dezembro, em evento realizado em São Paulo, o projeto foi apresentado ao mercado. E mesmo antes que os fogos da virada de século começassem a espocar, os investidores abriram a sua artilharia. Irreal, descabido, impossível eram alguns qualificativos utilizados com maior freqüência. Muitos condenavam a essência do projeto, calcados, sobretudo, na percepção de que não cabia à bolsa intervir no relacionamento entre os emissores e seus acionistas.

ATAQUE AO CUME — Mas entre os que acreditavam no projeto, a expectativa era uma só: superados os problemas macroeconômicos que o País vivia, o anúncio do Novo Mercado e dos níveis de governança permitiria o ressurgimento do mercado de ações, em bases diferentes. Dificilmente se teria alguma empresa nova que fosse admitida à negociação fora do Nível 2 ou do Novo Mercado, assim como, salvo honrosas exceções, as companhias já listadas que desejassem realizar novas captações teriam de migrar para um desses setores. Mas o futuro, naquela época, não saiu exatamente como planejado.

Bolha da internet, crise Argentina, racionamento de energia no Brasil (o “apagão”), ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro e a largada para uma corrida eleitoral — que emanava entre os investidores o receio do que representaria um governo do PT para a política econômica. “Todas aquelas crises colocaram um deserto no caminho do projeto”, resume Mifano. Em meio à pressão, a solução encontrada pela Bovespa foi colocar o pé na rua para, mais do que tentar vender o Novo Mercado, não deixar que a idéia morresse. Maria Helena diz que a motivação vinha do contato com alguns investidores, principalmente internacionais, que confiavam no sucesso da idéia quando a economia entrasse nos trilhos.

Há exatos cinco anos, em fevereiro de 2002, surgiu o primeiro sinal de alento. A Companhia de Concessões Rodoviárias (CCR) — criada por um grupo de construtoras que buscava abrir um canal de financiamento com o mercado de capitais e sabia da importância de convencer os investidores sobre suas práticas de governança — foi voluntária à inauguração do Novo Mercado. À sua oferta pública de ações se seguiu a primeira migração do mercado regular para o nível máximo de boas práticas, realizada pela Sabesp, em abril do mesmo ano. Quebrara-se o tabu, mas não o ciclo de desastres econômicos.

Uma nova operação no Novo Mercado só viria a ocorrer em maio de 2004, quando a Natura chegaria ao segmento para, finalmente, mudar o curso desta história. O sucesso da oferta revelou-se a primeira etapa daquele círculo virtuoso tão sonhado pelos pensadores do projeto: um exemplo bem-sucedido seria a alavanca para a aparição de novos.

Níveis 1 e 2 permitiram migração gradual

No primeiro instante, a proposta para o Novo Mercado não incluía os outros dois segmentos de governança que existem hoje, os níveis 1 e 2. Estes foram criados para equacionar uma questão política que ficaria exposta com a segregação das companhias já listadas. Prevendo o desconforto, já sinalizado por representantes da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), o grupo pensou em mecanismos que propiciassem uma migração em etapas. Mifano afirma que essa foi a melhor forma de diminuir a pressão sobre as empresas já listadas. “Criamos um caminho que lhes permitiria indicar ao mercado que estavam se movimentando em relação às questões de governança.” Maria Helena ressalta que, mais do que uma questão política, se tratava de fazer justiça às companhias que adotavam uma postura diferenciada da média em termos de transparência e de governança.

Na verdade, a solução dos dois níveis não foi a primeira a que chegaram. Pensaram inicialmente apenas no Nível 2. Sua estrutura dava conta dos problemas de adaptação na estrutura de capital que, devido à proporção entre ações ordinárias e preferenciais, poderia inviabilizar a adesão ao Novo Mercado num primeiro momento — seja por conta do impacto gerado pela perda de controle, seja pela capacidade de migrar todas as ações de uma só vez. A partir daí a discussão evoluiu para a criação de um estágio preliminar, que propiciasse a melhoria da transparência.

Surgiu, então, o Nível 1. Era o segundo semestre de 2000. Para garantir consistência à versão final, o grupo saiu a campo consultando todos os agentes do mercado mais conectados com as questões de governança para assegurar que as regras pensadas realmente fizessem diferença. Dentre os consultados estavam o BNDES e gestoras de recursos independentes como Dynamo e Investidor Profissional.

O Nível 1 foi o primeiro a registrar adesões, pouco mais de seis meses após o lançamento oficial. Em 26 de junho de 2001, um grupo formado por 15 empresas migrou — num movimento orquestrado em conjunto com a Bovespa. Eram elas: Banco Itaú, Itaúsa, Bradesco, Bradespar, Unibanco, Unibanco Holding, Sadia, Perdigão, Weg, Globo Cabo, Gerdau, Varig, Varig Participações, Varig Transportes e Randon. A primeira listagem no Nível 2 só viria a acontecer um ano depois, também na data de 26 de junho, com a migração da Centrais Elétricas de Santa Catarina – Celesc. (CGH)


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