O trabalho de auditor está sob pressão. A afirmação pode ser verificada tanto no Brasil quanto nos principais mercados internacionais, com o crescente questionamento sobre a atuação desses profissionais. O Financial Reporting Council (FRC) — órgão responsável por supervisionar o segmento no Reino Unido —, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a International Organization of Securities Commissions (Iosco) manifestaram, nos últimos meses, sua preocupação com o trabalho dos auditores independentes. Não é nada que se compare à crise aberta pela Enron, que desmantelou a Arthur Andersen no começo da década. Mas há claros sinais de que os conflitos de interesse das auditorias não foram totalmente resolvidos.
A Iosco, entidade que congrega comissões de valores mobiliários do mundo inteiro, colocou em audiência pública propostas para permitir que não contadores sejam donos de firmas de auditoria. O objetivo é aumentar a concorrência ante as “big four” — alcunha das quatro maiores empresas do setor, Deloitte, Ernst&Young, KPMG e PricewaterhouseCoopers (PwC). Em todos os países membros da organização, a propriedade de firmas de auditoria só pode ser exercida por contadores, por razões éticas. Os defensores do modelo argumentam que a atividade de auditor é de grande importância pública, e a obrigação de o dono de firma de auditoria ser contador traz uma maior cultura de responsabilidade profissional.
Para quem defende a entrada de novos participantes, uma maior flexibilização é necessária para a promoção da concorrência num mercado oligopolizado. Nos Estados Unidos, em 2006, as quatro grandes foram responsáveis pela auditoria em 98% das empresas com faturamento superior a US$ 1 bilhão, e em 92% daquelas que faturaram entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão. Em 2007, o faturamento de cada uma das big four variou de €15 bilhões a €20 bilhões, enquanto as seis maiores firmas depois das quatro grandes faturaram entre €2 bilhões e €3,7 bilhões.
ABERTURA DE CAPITAL – Ana Maria Elorrieta, sócia da PwC e presidente do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), vê com bons olhos a iniciativa da Iosco. “É preciso discutir formas de desenvolver o mercado de auditoria no mundo, já que se uma das quatro falir, pode-se causar uma grande instabilidade no mercado”, diz.
Mas alguns pontos da consulta pública causam polêmica. Um deles é o que prevê a possibilidade de as auditorias poderem se tornar companhias de capital aberto. A intenção dessa permissão é incentivar novas firmas a entrar num mercado em que a atividade demanda muito dinheiro. Charles Krieck, sócio da KPMG, é cético quanto à possibilidade de ofertas públicas iniciais de ações (IPOs) de auditorias. “Quando se vai fazer um investimento, é preciso ver o retorno ante o risco. Será que haverá apetite por uma atividade de alto risco e alta exigência como a de auditoria?”, indaga.
Uma firma de auditoria de capital aberto pode embutir conflitos de interesse claros. Segundo Sergio Romani, sócio da Ernst&Young, um deles ocorre quando a empresa audita uma companhia de propriedade de um de seus acionistas majoritários. “Como ficará sua independência nesses casos?”, questiona. Outra dúvida de Romani diz respeito à motivação das companhias de capital aberto. Tendo de entregar resultados para seus acionistas, a empresa de auditoria poderá passar a dar menos atenção às suas áreas de pesquisa e treinamento? Ele conta que a Ernst&Young destina 2% de seu faturamento bruto a essas atividades. “No longo prazo, essas áreas, de vital importância para a firma, podem ficar comprometidas”, observa. Romani prefere que o próprio mercado defina a concorrência entre as empresas do setor. E cita como exemplo o Brasil. Dados da CVM mostram que 221 (42%) das 527 empresas listadas na Bovespa não são auditadas pelas quatro maiores representantes do setor.
A prestação de serviços não relacionados a auditoria externa também reforça o questionamento da atividade. No Reino Unido, o FRC, que regula as práticas de auditoria e de contabilidade, colocou em consulta pública a proposta de proibir as firmas de auditar de desempenhar outras funções, como assessoria tributária, consultoria jurídica ou de gestão, dentre outros, para um mesmo cliente. “Quanto maior a relevância financeira desses ofícios, maior o risco de o auditor não desafiar a posição da administração com o grau de energia e ceticismo necessário”, diz o documento.
Charles Krieck, da KPMG, discorda dessa corrente. Para ele, desde que o profissional saiba manter sua independência, é até melhor que o serviço não ligado a auditoria seja realizado pela firma que audita o cliente. Ele entende que os auditores têm a confiança da administração e conhecem a empresa tão bem, que não precisam do mesmo esforço de adaptação e pesquisa que uma consultoria nova teria. “São benefícios de custo e qualidade, que acabam sendo revertidos aos acionistas. Ao se proibirem tais serviços, o próprio cliente acaba sendo penalizado”, acredita.
CONVERSÃO EM PANE – Aqui no Brasil, as auditorias também não escaparam de um maior aperto nas cobranças. Em setembro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) reclamou dos pareceres elaborados sobre as demonstrações contábeis do ano de 2008. Sem dar nome aos bois, a autarquia lançou um alerta aos auditores, por meio de um ofício circular, de que as demonstrações financeiras não estão tão confiáveis nesses tempos de conversão. Uma das críticas foi a existência de parágrafos de ressalva que não quantificavam os efeitos nas contas do balanço.
O documento assinado pelo superintendente de normas contábeis e auditoria da CVM, Antonio Carlos de Santana, também notou a ausência de ressalvas nos pareceres dos auditores independentes em algumas circunstâncias. “Foram identificados casos em que a companhia aberta auditada omitiu informações relevantes em notas explicativas, comprometendo, assim, a qualidade do conteúdo informacional das demonstrações contábeis apresentadas e prejudicando a análise e interpretação das referidas demonstrações por parte dos usuários.”
As críticas não foram bem recebidas pelos auditores. Primeiro, porque a generalização acabou colocando vilões e mocinhos no mesmo barco. Segundo, porque a reprimenda do xerife do mercado de capitais acabou passando a impressão de que os problemas decorrentes das dificuldades de conversão para as normas contábeis internacionais são culpa apenas das auditorias. “Em vez de somente cobrar que auditorias assegurem o cumprimento das normas por parte de seus clientes, a autarquia poderia também cobrar diretamente das companhias”, diz Krieck.
Sergio Romani reconhece que, independentemente de a quem as críticas foram endereçadas, as auditorias devem acolher o parecer da autarquia de forma construtiva. “A CVM demonstrou que quer manter o sarrafo lá em cima, então todos devem se adequar a isso”, finaliza. Para ele, os puxões de orelha fazem parte do processo evolutivo da atividade. “Especialmente depois de uma crise, o mercado passa a aumentar as exigências em todas as áreas: as auditorias, a administração das companhias, os conselhos e os reguladores”, resume.
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