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Sem desculpa
Presença maciça de fundos estrangeiros em assembleias locais — inclusive ETFs — realça passividade do investidor brasileiro
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

Pelo menos 13 mil quilômetros separam Honolulu, capital do estado americano do Havaí, e a Marginal Tietê, endereço da sede paulistana da JBS. A distância é considerável, mas não impediu que o Employees’ Retirement System of the State of Hawaii (ERS) — fundo de pensão dos funcionários públicos havaianos que cuida de respeitáveis 15 bilhões de dólares — participasse da assembleia geral ordinária e extraordinária (AGOE) da processadora brasileira de carnes realizada no último dia 28 de abril. Afinal, provavelmente pensaram os gestores do fundo, como ignorar um encontro em que seriam discutidas questões relevantes como aprovação de contas, eleição de integrantes do conselho de administração, remuneração dos administradores e alterações do estatuto social? Importante ressaltar que, na data da AGOE, ainda não era público o conteúdo bombástico da delação premiada de Joesley Batista, então CEO da companhia. Ou seja: o fundo havaiano parecia de fato interessado em opinar, mesmo em relação a questões costumeiras da rotina corporativa. O mesmo vale para as dezenas de acionistas estrangeiros cujos nomes estão na ata da reunião da JBS — a lista inclui desde fundos de reserva para aposentadorias a diversos Exchange Traded Funds (ETFs), fundos negociados em bolsa que replicam um determinado índice.

Curioso observar que essa assembleia não conseguiu angariar a participação de alguns investidores que estavam logo ali ao lado. Foram ausências notáveis na AGOE da JBS fundos de grandes gestoras brasileiras, muitas delas vinculadas a bancos, como Bradesco, Santander e Itaú. Por compor a carteira do Ibovespa, as ações da JBS são parte obrigatória dos fundos de investimento dessas instituições que acompanham o principal índice da bolsa. De acordo com a Economatica, a asset do banco da família Setubal detém 82,98 milhões investidos na JBS, valor superior aos 39,35 milhões de reais da americana BlackRock, que participou da assembleia por meio de seus fundos e ETFs.

Os encontros de Kroton e Ultrapar, igualmente integrantes do Ibovespa, também são boas amostras da ausência de investidores nacionais nas assembleias. Naquele mesmo 28 de abril de 2017, o equivalente a 67,07% do capital votante da Kroton tomava parte na AGOE da companhia de educação. Nessa fatia estavam centenas de estrangeiros sediados em outros países, casos do fundo de pensão da British Petroleum, do trust de aposentadorias da Disney e de fundos de gestoras estrangeiras como BlackRock, Vanguard e Fidelity. Na lista de brasileiros presentes, apenas o fundo de pensão da Gerdau e os fundos previdenciários do BTG Pactual. Nem sinal, portanto, de fundos de Banco do Brasil (BB), Bradesco e Santander (o Itaú participou por meio de seus fundos latino-americanos).

Nove dias antes, na AGOE da Ultrapar, que contou com a presença de 77,1% do capital social, o time nacional contava com BB (votando com fundos ativos, passivos e de previdência), os fundos de pensão Previ (dos funcionários do BB) e da Gerdau e fundos de previdência geridos por BTG Pactual e Brasil Plural. As gestoras de Itaú, Bradesco e Santander não compareceram. No grupo dos gringos, além do trio BlackRock, Vanguard e Fidelity, estavam lá o trust de pensão dos funcionários da British Airways, o fundo que comanda as aposentadorias dos servidores públicos da Califórnia e o dos professores de escolas públicas do Japão, entre muitos outros.

Lacunas estruturais nas responsabilidades dos investidores abrem espaço para a ocorrência de colapsos diversos

A discrepância, segundo fontes do mercado, decorre de uma combinação de fatores. A primeira delas é cultural. Não é novidade que as assets nacionais, diferentemente das americanas e europeias, pouco se engajam com a administração das companhias investidas e não têm o hábito de participar das assembleias de sócios. O problema é que essas “lacunas estruturais” nas responsabilidades dos investidores institucionais abrem espaço para a ocorrência de colapsos diversos: “financeiro, ambiental, reputacional e social”, observa o Código de Stewardship da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) — o termo em inglês designa o planejamento e a gestão responsáveis de recursos. Lançado em setembro, o documento busca estimular os investidores institucionais a agirem como “stewards”. Ou seja, a tomarem conta de fato dos recursos que administram em nome de terceiros.

A adoção do boletim de voto a distância também pode ter contribuído para a participação em peso dos estrangeiros nas assembleias deste ano. Instituído pela Instrução 570/15 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o instrumento faculta aos investidores — inclusive os internacionais — o voto em assembleias sem a necessidade de contratação de procuradores que precisem estar fisicamente no encontro. A oferta do boletim foi obrigatória neste ano para as companhias cujas ações integram o IBrX-100 e o Ibovespa. A partir de 2018, a exigência se estenderá às demais. Ainda não é possível, entretanto, estabelecer precisamente o impacto do boletim de voto na ampliação da presença de investidores internacionais. Isso porque as companhias em geral divulgam a lista de presentes, mas nem todas informam de quem foram os votos e por qual via os acionistas votaram.

Reação à altura

Um índice de ações deve ter papéis de empresas que deliberadamente restringem o direito de voto de seus acionistas? Na avaliação do FTSE Group e da Dow Jones — empresas responsáveis, respectivamente, pelos índices das famílias Russell e S&P —, a resposta é não. Tanto que já anunciaram medidas para limitar a presença de companhias com essa postura. A reação veio meses depois de a Snap, dona da rede social de mensagens instantâneas Snapchat, levantar 3,4 bilhões de dólares no mercado vendendo apenas ações sem direito a voto.

Desde agosto, para que uma empresa tenha suas ações integradas a um dos índices da FTSE, ao menos 5% do capital votante deve estar nas mãos do mercado — condição válida para as entrantes. Já a Dow Jones anunciou que não mais aceitará no S&P 500 empresas que tenham mais de uma classe de ações, estratégia corporativa que na prática pode limitar o poder de intervenção dos investidores nos negócios — Google, Berkshire Hathaway, Facebook e outras companhias cujas ações já faziam parte da carteira e que têm essa característica foram autorizadas a continuar. À CAPITAL ABERTO, a Vanguard afirmou defender o princípio de “uma ação, um voto”. “O assunto deveria ser tratado de forma mais efetiva em termos regulatórios”, ressalta a gestora. (AC)

Dos dois lados do balcão

A questão cultural, entretanto, é apenas uma das razões pelas quais as assets de bancos não comparecem às assembleias. Outra, tão ou mais influente significativa, é o desconforto causado por funções cruzadas dentro dos bancos. Apesar de existir uma separação legal entre as áreas de gestão de recursos, crédito e prestação de serviços financeiros nos bancos brasileiros, na prática a questão é mais complicada. Muitas vezes, além de gestoras de fundos, essas instituições são credoras ou assessoras das companhias em outras situações — podem, por isso, ter pouca ou nenhuma inclinação para comprar briga em assembleias com os executivos dessas empresas-devedoras-clientes. Seria uma clássica questão de conflito de interesses. Bradesco e Santander assessoraram a J&F, holding controladora da JBS, na venda da empresa de laticínios Vigor para a mexicana Lala, concretizada em setembro — a intenção da venda foi anunciada depois da AGOE de 28 de abril da JBS, na esteira da divulgação da delação de Joesley. Procurados pela reportagem para comentar o assunto, Bradesco e Itaú não se manifestaram. Por meio da assessoria de imprensa, o Santander informou que a Santander Asset Management (SAM) é signatária do Código de Stewardship da Amec, de cuja elaboração foi participante. Ainda de acordo com a assessoria, a política de votos da gestora permite que ela “participe, ou não, de assembleias, segundo critérios preestabelecidos”.

A política de votos da SAM estabelece que os gestores, em nome dos fundos de investimento sob sua responsabilidade, votem obrigatoriamente quando estiverem em pauta eleição de representantes de sócios minoritários no conselho de administração; aprovação de planos de opções para remuneração de administradores da companhia; e aquisição, fusão, incorporação, cisão, alterações de controle, reorganizações societárias, alterações ou conversões de ações e demais mudanças de estatuto social, que possam, “no entendimento do gestor”, gerar impacto relevante no valor do ativo detido pelo fundo de investimento. Na assembleia da JBS de 28 de abril, da qual a SAM não participou, foram eleitos dois conselheiros independentes (indicados pela controladora) e membros do conselho fiscal; além disso, sete artigos do estatuto social foram alterados, entre eles o que trata do objeto social da empresa e o que deixa a diretoria livre para decidir a respeito de contratos com partes relacionadas em valores inferiores a 100 milhões de reais sem a aprovação do conselho. Vale lembrar que a Instrução 558, publicada pela CVM em 2015, prevê uma separação clara entre as áreas de gestão de recursos e de serviços financeiros — a chamada “chinese wall” — e atribui ao gestor o dever fiduciário de agir no melhor interesse do investidor, e não do banco ao qual é vinculado.

Indexação não é desculpa

O fato de muitos fundos de ações das gestoras de bancos brasileiros serem passivos também pode ajudar a explicar a sua baixa participação nas assembleias. O raciocínio é simples: se um fundo passivo tem como objetivo principal replicar o comportamento de determinado índice, para cumpri-lo basta ter em carteira as ações que integram o indicador. Por que, então, um gestor com essa meta precisaria se mobilizar para participar de uma assembleia de acionistas? Aconteça o que acontecer no encontro, ele provavelmente continuará comprando as ações enquanto elas fizerem parte do índice em que o fundo se espelha. A julgar pelo interesse que têm demonstrado em participar das assembleias, os gestores estrangeiros de fundos de índice de ações (ETFs) parecem ter uma leitura diferente desse tópico.

O caso da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, é simbólico. Ela tem sob sua responsabilidade 5,7 trilhões de dólares, sendo pelo menos 1 trilhão de dólares em ETFs. Em janeiro passado, o CEO da gestora, Larry Fink, redigiu uma carta endereçada aos presidentes de todas as empresas em que seus clientes — os cotistas dos fundos — são acionistas. Nela deixou claro que adota a perspectiva de um investidor de longo prazo justamente por gerir fundos relativamente engessados, que não vendem ações de companhias com maus fundamentos a menos que elas parem de integrar os índices que seus ETFs acompanham. “Como agentes fiduciários agindo em nome dos clientes, a BlackRock leva governança corporativa muito a sério. Por isso, nos envolvemos com nossa voz e nosso voto em temas que podem influenciar no valor das empresas no longo prazo”, escreveu Fink.

Quem também não dá as costas aos seus deveres fiduciários é a Vanguard. Segunda maior gestora global, ela possui 4 trilhões de dólares sob gestão e é uma das maiores provedoras de ETFs do mundo. À CAPITAL ABERTO, a asset afirmou dispor de uma equipe de stewardship que age ativamente para promover a boa gestão nas empresas em que investe. “Contatamos executivos e diretores das companhias em que investimos para compartilhar nossos princípios e aprender sobre suas práticas. Votamos nas assembleias de todos os nossos portfólios”, pontua a gestora, que proferiu cerca de 171 mil votos individuais na temporada de reuniões de acionistas de 2017 no mundo todo. Para dar conta da tarefa hercúlea, a Vanguard conta com a ajuda de terceiros, como as consultorias de voto.

Estudo aponta que quanto maior a presença de ETFs no capital das companhias, maior o percentual de conselheiros independentes

Uma prova de que os gestores de ETFs têm um papel importante na governança das companhias é o estudo publicado no início de 2016 pelos pesquisadores Ian Appel, Todd Gormley e Donald Keim, da Universidade da Pensilvânia. Eles se propuseram a verificar se e como esse tipo de fundo influenciava uma amostra de empresas cujas ações estão nos índices Russell 1000 e Russell 2000. Chegaram à conclusão de que quanto maior a presença desses fundos no capital maior é a quantidade de diretores independentes no conselho. O cenário também está associado a menos proteções contra aquisições (como poison pills), mais igualdade de direito a voto entre acionistas, maior apoio a empreitadas dos acionistas em detrimento das propostas da diretoria, melhor performance de longo prazo e menor chance de a empresa ser alvo de hedge funds ativistas — que costumam identificar problemas na gestão e agir para combatê-los.

Mauro Cunha, presidente da Amec, espera que com a disseminação do Código de Stewardship os fundos brasileiros — inclusive os passivos — levem a sério seus deveres fiduciários. Até o momento, já são 16 os signatários. Além da SAM, gestoras nacionais como Leblon Equities, Itaú e BBDTVM e as estrangeiras Aberdeen, Claritas e Hermes já se comprometeram a seguir os princípios do código. O documento recomenda, por exemplo, que os investidores levem em consideração fatores ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) na hora de decidir como votar. Faz também uma menção aos fundos passivos — observa que “justamente por não poderem se dar ao luxo de ‘votar com os pés’”, ou seja, vender as ações quando não concordam com o rumo tomado pelas companhias que compõem o índice, eles deveriam se engajar ainda mais nas vidas das companhias investidas. Passividade, afinal, é uma atitude que não combina com quem carrega a responsabilidade de administrar recursos de terceiros. (Colaborou Luis Felipe dos Santos)


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