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Riscos do aluguel
Aquisição de direitos políticos desvinculada de interesse econômico abre espaço para manipulação nos empréstimos de ações, principalmente quando o capital é pulverizado

ed43_p040-043_pag_3_img_001No ano de 2006, o fundo de pensão dos servidores públicos da Califórnia (Calpers) obteve US$ 129,4 milhões de receita líquida alugando ações de sua carteira. Nesse mesmo período, grandes corretoras e bancos de investimento norte-americanos faturaram cerca de US$ 8 bilhões — de acordo com dados fornecidos ao The Wall Street Journal pela Astec Marketing Research Group, uma empresa de pesquisa com sede em Nova York especializada em mercado de capitais — com o aluguel de papéis que seus clientes mantinham sob custódia. No Brasil, embora o volume total movimentado com esse tipo de operação tenha sido bem menor, de pouco mais de US$ 50 milhões no ano passado, o crescimento registrado foi de 105% em relação a 2005 e de impressionantes 527% na comparação com 2004.

Além de ampliar a liquidez em bolsa, os aluguéis de ações propiciam um retorno extra aos acionistas de longo prazo e dão aos gestores de recursos opor tunidades de arbitragem que só podem ser imple mentadas graças à sua existência. Mas nem todas as notícias a respeito dos aluguéis são positivas. Esses contratos podem também ser utilizados para distorcer a premissa fundamental de governança corporativa expressa pelo princípio uma ação, um voto, ou seja, a proporcionalidade entre os direitos políticos e o interesse econômico de cada acionista. Com o aluguel de ações, é possível concentrar poder de decisão em assembléia sem adquirir a posição econômica equi valente (prática conhecida como empty voting , ou voto vazio), visto que o direito de voto é transferido ao proprietário temporário do papel.

O princípio uma ação, um voto visa, justamente, expressar que o direito de opinar sobre os rumos da empresa deve ser equivalente ao investimento reali zado. O pressuposto é que, quanto maior o interesse econômico na valorização das ações, mais o investidor tende a utilizar seus votos neste sentido. Por essa razão, aquele que vota com ações alugadas é uma figura atípica, cujo intuito não é maximizar o investi mento a médio ou longo prazo, mas, provavelmente, influenciar uma decisão que irá beneficiá lo de outra maneira , explica Alexandre di Miceli, professor de finanças da Universidade de São Paulo e pesquisador sênior do Instituto Brasileiro de Governança Corpo rativa (IBGC).

VOTO X INTERESSE ECONÔMICO – Um estudo realizado pelos professores Henry Hu e Bernard Black, da Uni versidade de Austin, no Texas, identificou 22 episódios ocorridos entre 2001 e 2006 em que diversas estraté gias de concentração do poder de voto foram adotadas por fundos hedge e outros investidores, várias delas envolvendo o uso de derivativos e, também, do aluguel de ações. Um dos mais impressionantes foi o do fundo hedge Perry Corp., que detinha 7 milhões de ações da farmacêutica King quando a Mylan Laboratories fez uma oferta pelo controle da empresa, elevando a cotação dos papéis. Interessado na conclusão da operação, o Perry Corp comprou 10% de participação na Mylan e votou a favor da aquisição, numa posição em que o conflito de interesses era evidente.

Outro caso relevante foi o da companhia inglesa British Land. Fundos de pensão com postura reco nhecidamente ativista, como os britânicos Hermes e Scottish Widows, alugaram as ações que tinham da companhia para o fundo hedge Laxey Partners, que queria turbinar seus direitos políticos. Numa assem bléia que apreciaria a cisão da companhia, o Laxey, proprietário de 1% das ações, expandiu seu poder de voto para o equivalente a 9%, e utilizou seus direitos para incentivar a operação que, a propósito, be neficiaria uma outra companhia da qual era sócio. O incidente levou o fundo Hermes a pedir desculpas publicamente à British Land por não ter resgatado as ações alugadas para votar e a embarcar numa forte campanha para que os órgãos reguladores suspendam o voto com ações alugadas.

No Brasil, o uso do instrumento para ampliar a representação em assembléia ainda é raro, mas não inexistente. Diversos agentes do mercado e dados relativos aos contratos de aluguel confirmam que a estratégia foi adotada por acionistas da Telemar durante o processo de apreciação da proposta de reestruturação societária, avaliada em assembléia realizada no último mês de dezembro. A controversa proposta de conversão das ações preferenciais em ordinárias e migração para o Novo Mercado, votada exclusivamente pelos detentores de ações preferen ciais, levou a um aumento significativo no aluguel dos papéis da companhia de telecomunicações. Na época, a procura cresceu a ponto de multiplicar por mais de seis as taxas cobradas. A média, que girava entre 2,5% e 3% ao ano, chegou a bater 20%.

Mesmo assim, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entendeu que não lhe competia intervir de an temão e impedir o exercício de voto com essas ações, pois não havia como pré identificar qualquer forma de atuação abusiva por parte daqueles acionistas. Elizabeth Machado, superintendente de relações com empresas da autarquia e responsável pela resposta à consulta que foi realizada por acionistas da Telemar a esse respeito, explica que o aluguel presume a transfe rência do direito de propriedade e, portanto, também dos direitos políticos da ação. Durante a vigência do contrato, o tomador do papel é o seu proprietário efetivo. Por isso, não podemos partir do pressuposto de que há algo errado em exercer o direito de voto com aquelas ações. Qualquer tipo de manipulação ou abuso só pode ser verificado posteriormente.

MODELO MAIS EFICIENTE – A superintendente da CVM lembra, ainda, que todo acionista (inclusive aquele que detém posições alugadas) inserido em situação de conflito de interesse ou que eventualmente venha a obter benefício particular com a questão a ser apreciada pela assembléia deve ter seu voto impe dido, conforme a Lei das S.As o que atenuaria as chances de uso indevido do aluguel de ações para influenciar os rumos de uma determinada decisão. Outro atenuante, segundo Jorge Andrade, gerente de acompanhamento de empresas da autarquia, são os limites operacionais estabelecidos pelo regu lamento das operações de aluguel, centralizadas e controladas pela Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC).

Cada investidor pode alugar até, no máximo, 3% das ações de uma única companhia que, por sua vez, não pode ter mais do que 20% das ações em circulação disponibilizadas para este fim. Esses limites restringem as possibilidades de utilização do instrumento para concentrar poder de voto, mas não impedem que, em tese, diferentes investidores se alinhem e o utilizem com este propósito. Mas aí entra um terceiro fator: a obrigatoriedade de divulgar posições acima de 5% do total das ações de uma companhia, mesmo que esta parcela seja composta, ainda que em parte, por ações alugadas. Expresso pelo artigo 12 da Instrução CVM 358, esse dever de divulgação contribui para que o sistema de controle brasileiro seja mais eficiente que o norte-americano ou mesmo o britânico, onde não é obrigatório informar ao mercado a participação detida em papéis que sejam objeto de aluguel.

Outra vantagem do nosso sistema é o fato de o portador das ações ser o beneficiário imediato do aluguel. Assim, as corretoras não podem disponibilizar os papéis para esse tipo de “empréstimo” sem a sua expressa autorização. Nos Estados Unidos, por exemplo, elas estão livres para alugar as ações de seus clientes e, na maioria das vezes, o investidor sequer fica sabendo. Como o mercado de aluguel não é centralizado numa única instituição, é preciso confiar nas ferramentas de controle de cada corretora ou banco de investimento. E a eficácia dessas ferramentas, ainda por cima, é discutível, como comprovam casos recentes em que tanto o proprietário original quanto o “locatário” receberam o convite para a assembléia, levando a uma situação de sobreposição de votos, chamada de “overvoting”.

A Bolsa de Nova York (Nyse) realizou testes com diferentes instituições e encontrou falhas significativas em boa parte delas. Somente no caso da corretora do Deutsche Bank, foram identificadas 22 situações de overvoting dentro de uma amostra de 27 assembléias realizadas entre 2002 e 2003. Em acordo firmado com a bolsa, o banco pagou multa de US$ 1 milhão sem, no entanto, admitir a culpa. Outras instituições de renome realizaram acordos com a Nyse. Em junho do ano passado, as corretoras dos bancos UBS, Credit Suisse e Goldman Sachs pagaram multas de US$ 1,35 milhão, também sem admitir qualquer espécie de culpa. Nos Estados Unidos, são as corretoras as responsáveis por enviar as convocações de assembléia (e respectivos formulários de declaração de voto) para os investidores.

Por aqui, problemas do tipo são totalmente evitados pela infra-estrutura provida pela CBLC. Wagner Anacleto, gerente de controle de riscos, explica que todas as operações são centralizadas pela clearing da bolsa, que se encarrega, inclusive, de reembolsar os dividendos e outros pagamentos, como os de juros sobre capital próprio, aos donos de cada papel. “A centralização proporciona transparência e segurança. Os dados relativos aos aluguéis de cada ação estão disponíveis para acesso no site da clearing e as garantias de recebimento exploram ao máximo os benefícios de uma estrutura centralizada”, ressalta. Este, certamente é um dos principais fatores por trás do forte crescimento registrado nesse mercado. Francisco Gomes, diretor de controle da CBLC, pondera que essa evolução não se deve apenas às grandes oportunidades de arbitragem ou rentabilidade adicional para investidores de longo prazo. “Boa parte desse volume reflete um processo de aculturamento.” Ele aponta como evidência disso a maior participação de investidores pessoa física e de fundos mútuos como doadores de ações (confira nesta página).

ESTÍMULO OU ATIVISMO? — Os fundos lideram a outra ponta desse mercado, a dos tomadores de papéis. Para entender os principais usos que fazem do aluguel de ações e quais as possibilidades de utilização do instrumento para concentrar poder de voto no Brasil, a reportagem da Capital Aberto ouviu sete gestores de diferentes fundos de renda variável. Suas posições sobre este mercado são unânimes. Para os executivos da Ágora, Bresser Asset Management, Hedging-Griffo, Modal Asset Management, Neo Investimentos, Prósper Gestão de Recursos e Franklin Templeton Brasil, a procura sistemática pelo aluguel para concentrar poder de voto ainda é uma realidade distante no Brasil. Só deve acontecer mesmo nas assembléias em que grandes decisões serão tomadas, como no caso da Telemar, mas o potencial de problemas tende a ser maior à medida que cresça o número de companhias com capital pulverizado (nelas o alinhamento de votos entre acionistas pouco representativos pode efetivamente influenciar a condução dos negócios) e que os níveis de abstenção em assembléias se mantenham elevados.

As diferenças de opinião surgem quando esses profissionais são questionados a respeito de suas políticas quanto ao exercício do voto com ações alugadas e sobre o que acham da manutenção desse direito em caso de aluguel. Ainda que a maioria não tenha uma política explícita com relação a exercer o voto, boa parte descarta a possibilidade de fazê-lo, já que mantém o papel sob custódia pelo mínimo período possível. Augusto Lange Vieira, da Neo Investimentos, conta que fica com os papéis alugados por, em média, dois dias. “Procuramos identificar ativos com diferentes possibilidades de desempenho, que nos dêem capacidade de, com sua venda, financiar a compra de outros com potencial de retorno maior. Assim, alugamos um determinado papel, que vendemos na seqüência, para comprar aquele de maior retorno. Não os alugamos pensando no direito de voto.” Já Luis Damato, da Hedging-Griffo, não rejeita a possibilidade de se valer do aluguel de ações para ampliar o poder de voto em companhias nas quais os fundos sob sua gestão tenham participação relevante. “Não fizemos isso na Telemar, porque não tínhamos grande participação na companhia, mas, se tivéssemos, com certeza consideraríamos essa opção.”

Rodrigo Bresser Pereira, da Bresser Asset Management, que foi um dos investidores a entrar com pedido de liminar em conjunto com a Polo Capital no processo da Telemar, vê uma distorção de interesses no voto sem o correspondente compromisso econômico. “O correto mesmo seria não permitir o voto com ações alugadas. Como o processo de aluguel é difuso, se não for bem monitorado pode ser utilizado para manipular decisões. A CVM sairia na frente se tomasse alguma medida nesse sentido.” Para Mauro Cunha, diretor de investimentos da Franklin Templeton, criar uma regra específica para papéis alugados não resolveria o problema. “As possibilidades de manipulação que o aluguel oferece não passam de uma gota no oceano. A motivação do voto deve sim ser levada em conta, mas não há como proibi-la de antemão”, afirma. E conclui: “Cabe também ao doador das ações dar o devido peso ao poder de voto em sua decisão de alugar ações. Se o direito for estratégico para ele, toda a estrutura do aluguel tem de ser repensada.” Rodrigo Barbeito Lacerda, da Prósper Gestão de Recursos, concorda. “Essa possibilidade de manipulação não é de todo ruim, já que pode estimular uma postura mais ativista por parte dos nossos acionistas, que passarão a reconhecer o valor desse direito de voto. Cada um deverá, então, avaliar o custo de oportunidade envolvido e o quanto vale abrir mão desse direito.”

Aluguéis trazem receita extra para fundações, mas exigem salvaguardas

Os fundos de pensão brasileiros são, em geral, bastante avessos à idéia de disponibilizar as ações de sua carteira para aluguel. Sua participação como doadores foi de meros 2,42% do mercado de aluguel em 2006, de acordo com dados da Câmara Brasileira de Liquidação e Custódia. A operação, que requer explicações ao conselho dos fundos, esbarra também em suas políticas de governança, que costumam requerer a participação ativa nas companhias investidas — com forte presença nas assembléias e até mesmo indicando representantes para os conselhos de administração e fiscal.No entanto, há quem aposte que essa postura deva ser repensada à medida que as taxas de juros baixem ainda mais. Para Alexandre Póvoa, da Modal Asset Management, “os juros menores deverão tornar mais áridas as metas atuariais e todo instrumento que proporcione rentabilidade adicional às carteiras dos fundos deverá ser considerado”.

É o que fazem os fundos de pensão estrangeiros, nos quais a pressão por rentabilidade é acentuada por patamares de juros bastante baixos. Para gerenciar os eventuais conflitos com sua política de governança, o fundo de pensão dos funcionários públicos da Califórnia (Calpers) adota uma estratégia cuidadosa. Não aluga nunca os ativos que representam os seus 30 maiores investimentos e controla rigidamente as datas de assembléias de outros 300 — estes, sim, colocados no mercado de aluguel. Os contratos estabelecidos com os tomadores garantem a recuperação das ações em tempo hábil para o exercício do voto. No Brasil, segundo a CBLC, a garantia de posse do papel nos momentos de assembléia é provida pela existência de contratos diferenciados de aluguel, que podem conter exigências adicionais combinadas entre o doador e o tomador do papel. (C.G.H.)


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