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Fannie Mae à la Brasileira
Governo Brasileiro cria securitizadora pública para dar saída aos créditos imobiliários dos bancos, mas ainda não explicou como vai fazer isso – e qual incentivo os bancos terão para fazê-lo
Fannie Mae, Fannie Mae à la Brasileira, Capital Aberto

A Federal National Mortgage Association (Fannie Mae), uma empresa dedicada a impulsionar o mercado imobiliário nos Estados Unidos, foi fundada em 1938¹ como parte do New Deal. Sua missão inicial era adquirir os financiamentos garantidos pela Federal Housing Administration (FHA), numa tentativa de recuperação da crise financeira de 1929. Quase 70 anos mais tarde, em 2008, Fannie Mae se encontrava no epicentro da crise imobiliária americana. Isso levanta uma questão preocupante: estaria o governo brasileiro começando a semear um problema semelhante em território nacional?

Com 88 anos de atraso em comparação à iniciativa americana, a Medida Provisória 1.213/2024² (MP Acredita) detalha em seu Capítulo IV, Artigo 16, a reformulação dos objetivos da Empresa Gestora de Ativos (EMGEA), representando uma adaptação significativa em sua direção estratégica:

Art. 7º Fica a União autorizada a criar a Empresa Gestora de Ativos – EMGEA, empresa pública federal, vinculada ao Ministério da Fazenda. § 1º A EMGEA terá por objetivo adquirir bens e direitos da União e das demais entidades integrantes da Administração Pública Federal, podendo, em contrapartida, assumir obrigações destas.Art. 7º Fica a União autorizada a criar a Empresa Gestora de Ativos – EMGEA, empresa pública federal, vinculada ao Ministério da Fazenda. § 1º A EMGEA tem por objetivos: I – adquirir e gerir bens e direitos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das entidades da administração pública indireta de todos os entes federativos, bem como de fundos públicos ou privados em que a União aporte recursos, podendo, em contrapartida, assumir obrigações deles; e II – fomentar o crescimento do mercado imobiliário nacional, provendo maior liquidez aos ativos com base em crédito imobiliário.

Esta revisão estatutária expande significativamente o escopo de atuação da EMGEA, conferindo-lhe um alcance geográfico mais amplo. Agora, a EMGEA não apenas pode adquirir bens da União, mas também dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Além disso, incorpora um novo objetivo estratégico: o estímulo ao mercado imobiliário nacional, seguindo um modelo similar ao adotado pela Fannie Mae nos Estados Unidos.

Ainda no Art. 16 da MP Acredita, diversos temas são trazidos como a “possibilidade” de a EMGEA criar ou participar de Fundos de Investimento, SPEs ou PPPs “desde que elas tenham como finalidade o desenvolvimento social de interesse público”.

Seguindo adiante, o Art. 16 nos brinda com a “possibilidade” de a EMGEA adquirir créditos imobiliários, títulos e valores mobiliários lastreados em crédito imobiliário, e ainda “ofertar instrumentos financeiros que permitam a proteção de instituições financeiras (…) a exposições de remuneração e prazo oriundos de concessão de crédito imobiliário” – fazer hedge de taxa e prazo para bancos.

E quase ao final o Art. 16 traz a possibilidade de a EMGEA agir como securitizadora, justamente securitizando aqueles créditos imobiliários que adquiriu anteriormente.

É preciso acreditar muito mesmo

As diversas possibilidades apresentadas no Art. 16 da MP Acredita levantam uma questão crítica: como evitar ou mitigar os conflitos de interesse inerentes a uma empresa que tem a capacidade de comprar créditos, securitizá-los e posteriormente adquirir esses mesmos ativos securitizados por meio de Fundos ou outras estruturas financeiras?

A intervenção do Governo Federal nos EUA foi necessária tanto na Fannie Mae quanto na Federal Home Loan Mortgage Corporation (Freddie Mac) durante a crise imobiliária americana. Múltiplos fatores contribuíram para essa crise, incluindo os CRIs de CRIs (obrigações de dívida colateralizada – CDOs, que investiam em títulos hipotecários comerciais ou residenciais – CMBS ou RMBS, respectivamente, um  instrumento que não está presente no Brasil), as garantias imobiliárias de segundo grau (recentemente autorizadas no Brasil pelo Marco Legal das Garantias), e os instrumentos de proteção contra inadimplência em CRIs (Credit Default Swap – CDS, outro instrumento inexistente no Brasil).

Contudo, pode ser que o fator mais crítico que precipitou aquela situação esteja sendo replicado agora no mercado brasileiro: a prática de originação, que envolve a concessão inicial de crédito seguida pela transferência desse crédito para um terceiro.

Um banco que mantém uma carteira de créditos imobiliários durante toda sua operação — isto é, concede o crédito e continua a receber pagamentos até a quitação — naturalmente adotará um nível elevado de exigência, pois quaisquer perdas serão de sua responsabilidade. Por outro lado, se o banco ou uma fintech limita sua atuação à originação de crédito, transferindo imediatamente esses créditos, a dinâmica muda completamente. Nesse cenário, a diligência na avaliação de crédito tende a ser menor, pois o foco se desloca para a maximização da originação em detrimento da qualidade do crédito concedido, sob a lógica de que, quanto mais créditos forem originados e cedidos, maior será o lucro, enquanto manter a carteira implica em buscar a melhor qualidade possível para evitar problemas futuros.

E é nisso tudo que precisamos acreditar.

Precisamos confiar que uma empresa com responsabilidades tão abrangentes (à exceção da originação) conseguirá mitigar seus conflitos de interesse de forma eficaz. É fundamental crer que a originação, que é decididamente o passo mais crucial conforme discutido, será conduzida com integridade. É necessário acreditar que a EMGEA possuirá uma equipe tecnicamente competente para estruturar securitizações corretamente. Além disso, devemos esperar que, ao estabelecer uma “reserva de mercado” por meio das resoluções 5.118 e 5.121 do CMN — que restringiram os bancos de ceder carteiras de crédito imobiliário para CRIs quando riscos e benefícios eram retidos — e ao abrir caminho com a MP Acredita, não houve supostamente, intenção premeditada de criar uma reserva de mercado já pronto para ser explorado.

Acreditar que uma entidade governamental será capaz de realizar operações de hedge de taxa e prazo eficazes para apoiar os bancos na oferta de créditos imobiliários. É necessário acreditar que, ao fazer isso, nenhum recurso público ou fundo de pensão assumirá os riscos iniciais dessa operação. Quem, afinal, aceitaria correr tais riscos significativos por uma compensação mínima? A expectativa recai sobre os bancos de fomento. Permanecemos à espera, observando e mantendo a esperança.

Acreditar não basta

A instauração da versão brasileira da Fannie Mae aciona um alerta crítico: é essencial que todos os envolvidos no mercado — incluindo participantes, reguladores e autorreguladores — estejam bem informados e compreendam as operações e métodos adotados pela EMGEA. Para isso, a transparência é fundamental. A EMGEA deve adotar uma postura de comunicação clara e eficiente, fornecendo dados e informações que assegurem aos stakeholders que suas ações diferem substancialmente do caso americano, e que não provocarão uma crise semelhante à que quase devastou o sistema financeiro global quase 70 anos atrás.

Antes mesmo de começar a operar, nossa versão da Fannie Mae, a EMGEA, enfrenta grandes desafios. É crucial que o governo busque e conte com o apoio ativo dos participantes do mercado para desembaraçar os complexos desafios que se apresentam.

A iniciativa é nobre, como era a do governo americano – embora tenha dado muitos frutos positivos durante toda sua existência, alguma coisa lá fora não deu certo ao longo do caminho e os participantes do mercado não conseguiram ver o que estava acontecendo. Já temos um exemplo a não seguir, e do que não fazer – basta trilhar outro caminho que o resultado será diferente.

Que a nossa Fannie Mae à lá Brasileira seja um exemplo para os gringos, assim como o PIX está sendo.


Felipe Ribeiro é Sócio Diretor de Investimentos Alternativos do Clube FII, atua apoiando a regulação e autorregularão de securitização do mercado desde 2012, e é autor do primeiro livro dedicado a FIIs de CRI no Brasil


¹ VIRAL V. Acharya., “Guaranteed to Fail – Fannie Mae, Freddie Mac and the Debacle of Mortgage Finance” – Princeton University Press – 2011

² Medida Provisória N° 1213 de 2024 – Congresso Nacional – Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9590813&ts=1714482623802&disposition=inline  – acesso em 30/04/2024


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