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Mercado Financeiro, a economia “irreal”
Pouco adianta baixar a Selic no objetivo de estimular a demanda se outros pontos não ajudam, como o espectro fiscal não confiável, altos impostos, instabilidade de regras e elevados custos trabalhistas que inibem a produtividade
Alexandre Povoa

Para a maioria da população brasileira, o mercado financeiro parece fazer parte de um mundo imaginário, sem correlação alguma com o nosso cotidiano. A sociedade costuma classificar o conjunto de alguns setores, principalmente os ligados à palpável produção industrial, como “economia real”. Por trás dessa denominação está certamente a capacidade desses segmentos na geração de empregos em cima de fatores “concretos” (como os operários nas fábricas, os trabalhadores prestadores de serviços e o agricultor no campo) e sua contribuição visível para o desenvolvimento do país. No extremo oposto, os cidadãos comuns acreditam que quem trabalha no mercado financeiro somente produz “dinheiro em cima de dinheiro”, compondo uma espécie de mundo à parte, quem sabe a “economia irreal”. Alguns políticos, inclusive, demonizam esse ente chamado mercado (que a maioria esmagadora da população não sabe muito bem o que é), taxando-o de egoísta, “anti-povo” e formado por pessoas privilegiadas e, inexoravelmente, abastadas.

A má fama de instituições financeiras vem desde os tempos bíblicos, onde a cobrança de juros era abertamente condenada, a partir do pecado da usura e da exploração dos pobres. Através dos tempos, a reputação dos banqueiros foi diretamente relacionada a ganhos fáceis e injustos, oriundos do “domínio histórico do capital sobre o trabalho” – assunto dos livros de Karl Marx que tanto estudei em sala de aula como estudante de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Não é à toa que os bancos lideram todos os rankings de investimentos em ações ESG, em um trabalho permanente de construção de imagem.

No caso do Brasil, notam-se agravantes na percepção de dissociação total entre a ação das instituições financeiras e o bem-estar social. O país viveu atípica situação de juro real médio muito elevado de 8% ao ano, levando em conta a diferença entre a taxa Selic e o IPCA, no período entre 1994 (após a introdução do Plano Real) e 2024. Tal circunstância fez com que os bancos contraíssem uma reputação bastante negativa, dado o alto custo dos empréstimos para o grande público e o retorno aparentemente fácil auferido com juros elevados. Surgiu a figura do rentista, aquele cidadão que não trabalha e vive dos gordos ganhos mensais de aplicações financeiras de renda fixa. Além disso, como as instituições financeiras sempre foram as principais emprestadoras às empresas e compradoras de títulos soberanos emitidos pelo Governo, é intuitivo inferir o grande benefício de transferência de renda da “economia real” para a “economia irreal”, através dos juros.

Nesse ambiente, a indústria de fundos de investimentos cresceu no Brasil de forma muito particular. A relação retorno-risco de fundos DI e de renda fixa tornou-se imbatível, fazendo com que esses produtos ganhassem certa popularidade entre os brasileiros que possuem conta-corrente em algum banco. Por causa da maior capacidade de distribuição, os bancos de varejo transformaram-se nos maiores players no critério de patrimônio gerido (condição que vem sendo reduzida nos últimos anos, com a elevação de participação dos gestores independentes).

Em 2024, o segmento de fundos de investimentos no Brasil é comparável, em tamanho (aproximadamente 80% do PIB) sofisticação e profissionalismo, a esse setor até nos mercados de países mais desenvolvidos. Em futuro muito próximo, além da continuidade do crescimento de captação concomitante com o avanço do PIB brasileiro, espera-se, ao menos teoricamente, importante mudança de concentração de volumes na família de produtos e nos gestores da indústria.

É cair no lugar comum afirmar que um patamar mais baixo de juro real poderia levar à expansão de produtos de crédito, multimercados, long short e ações em detrimento dos fundos mais conservadores. Além disso, o crescimento importante dos produtos de participações em geral (como private equity e imobiliários) conseguiria fazer a ligação mais direta entre a economia “irreal” para a real, constituindo-se, no linguajar econômico, em mais um elo importante entre poupança e investimento. Esperamos isso há anos.

Enfim, em nossos melhores sonhos, teríamos no Brasil um dinamismo muito maior na indústria de fundos nos próximos anos, exigindo uma reinvenção dos profissionais e um comportamento diferente dos investidores, que terão que aprender, na prática, as regras de um novo jogo. Nesse cenário, os cotistas brasileiros em geral não desfrutariam mais o conforto das aplicações que reúnem o improvável tripé de investimentos que vigorou por tanto tempo em nosso país: alto retorno, baixo risco e liquidez diária – a síntese dos fundos DI e renda fixa.  

Mas por que os parágrafos anteriores estão escritos na linguagem condicional? Não é óbvio afirmar que experimentaremos em breve um ambiente de juros mais baixos, com a taxa básica chegando, no final do ano, até a um dígito (entre 9,5 e 10% a.a.)? Cabe ressaltar, no entanto, que o juro que realmente importa não é “obra do divino” e nem está nas mãos do COPOM, é consequência de uma série de fatores. Pouco adianta baixar a taxa Selic no objetivo de estimular a demanda se outros pontos não ajudam, como o espectro fiscal não confiável, burocracia, altos impostos, instabilidade de regras e elevados custos trabalhistas que inibem a produtividade e, por consequência, a oferta. Isso sem contar com a deterioração demográfica da qual o Brasil inevitavelmente não escapará, comprimindo a força de trabalho, impedindo que a oferta se expanda e, com isso, contribuindo para puxar o juro real de equilíbrio mais longo para cima.

Uma constatação é que, mesmo com o começo do afrouxamento monetário implementado desde agosto de 2023 (taxa Selic em 13,75% a.a), até maio de 2024 (taxa Selic em 10,5% a.a), o cupom de uma NTN-B 2050, por exemplo, saltou de 5,40% para 6,20% ao ano. Já a taxa prefixada de 10 anos foi catapultada de 10,90% parta 11,80%.  Enfim, enquanto o juro básico caiu 325 pontos-base, as taxas de juros real e nominal de longo prazo subiram fortemente, frustrando as bravatas de certos ministros e políticos que dispararam todo o tipo de ataques ferozes ao Banco Central, como se o mesmo fosse culpado de todas as mazelas do país.

Cabe ressaltar que os ventos internacionais não ajudaram também. Com a piora da inflação nos EUA e atividade forte, a expectativa de corte de juros vem sendo postergada. A Treasury de 10 anos nos EUA se encontrava em 4,0% a.a em agosto/23 e em meados de maio/24 subiu para 4,50%. A diferença é que o Fed fund rate não foi cortado no período. Certamente a piora do humor nos EUA, juntamente com a deterioração dos nossos fundamentos, contribuiu também para a erosão de percepção de risco do Brasil perante os investidores, refletida nos juros de mercado.

Os economistas e o próprio BC sugerem que a taxa real de equilíbrio no Brasil de hoje estaria por volta de 4,5% ao ano. Empiricamente, atesta-se que faz necessário muito mais do que reduzirmos a taxa básica para chegarmos nesse nível em um cupom de NTN-B, o que induziria os investidores brasileiros (pessoas físicas e institucionais) a voltarem a buscar ativos de risco com mais força. Precisamos caminhar como país, sob pena de frustrarmos a potencial ligação entre a economia real e a economia “irreal”, resultando na continuidade do pífio crescimento do PIB e na concentração conservadora dos fundos de investimento observada nas últimas décadas, que só beneficia os rentistas. Sempre “é melhor fazer do que falar” para que a retórica saia do condicional para a realidade prática.   


*Alexandre Póvoa ([email protected]) é estrategista da Meta Asset Management e a autor dos livros: Valuation, Como Precificar Ações e Mundo Financeiro, o Olhar de um Gestor


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