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Bolsas de valores S.A
Bovespa se prepara para abrir o capital e encarar o desafio de cumprir, ao mesmo tempo, as missões de regular e dar lucro

ed35_p042-046_pag_1_img_001No início da década, a maior parte das bolsas de países desenvolvidos optou por transformar seu modelo de negócios. Partiram de uma estrutura fechada, em que os donos eram as corretoras, para a de uma sociedade anônima, na maioria das vezes, de capital aberto — um processo que é conhecido como desmutualização. No final de maio, a Bovespa e sua clearing, a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia, declararam interesse em se juntar ao time. A decisão já foi aprovada pelos corretores e pelos conselhos de administração das duas entidades, ed35_p042-046_pag_2_img_001que agora entram num processo de estudo de como a abertura de capital será conduzida. A mesma idéia está sendo avaliada pela BM&F que, na última edição da sua publicação institucional, afirmou estar sendo procurada por bancos internacionais para tratar da desmutualização e de uma abertura de capital. “Se vamos fazer um IPO ou não, dentro de um ou dois anos, não importa. O que não podemos é admitir uma bolsa rica com corretores pobres”, disse Manuel Felix Cintra Neto, presidente da BM&F em seu editorial.

A razão da mudança é a mesma que desencadeou o processo lá fora: adequar a estrutura de tomada de decisão e de governança às demandas de um mercado em fase de crescimento e consolidação. Nesse cenário, garantir o acesso a novos corretores e investidores em escala crescente e atrair um maior volume de listagens é crucial. Hoje, para que possa realizar negócios na bolsa brasileira, um corretor ou agente autônomo precisa comprar no mínimo seis títulos. Cada um deles custa R$ 1 milhão, o que limita consideravelmente a capacidade de participação das pequenas casas e dos agentes autônomos. O presidente da Bovespa, Raymundo Magliano Filho, explica que, “ao desvincular a propriedade do título da atividade de corretagem, a Bolsa vai aprofundar o processo de democratização que vem promovendo nos últimos anos, capilarizando o seu acesso pelo Brasil inteiro”. Outros fatores de estímulo importantes são a flexibilidade de realizar alianças com outras bolsas e o reforço de transparência que a condição de companhia de capital aberto confere.

Os detalhes de como o processo vai se dar ainda não estão definidos e são todos objetos de estudo da comissão interna que foi especialmente criada para o projeto. No entanto, a expectativa é a de transformar os títulos dos atuais sócios em ações e listar a bolsa no Novo Mercado. A transformação é profunda: para percorrer o caminho que separa a associação civil sem fins lucrativos que a Bovespa é hoje da S.A que ela almeja ser, uma série complexa de questões estruturais e regulatórias precisa ser equacionada.

CONFLITOS DE INTERESSE — A experiência internacional aponta quatro aspectos principais que devem ser observados numa avaliação do impacto que a mudança estrutural por que passam as bolsas pode ter sobre o papel regulatório das mesmas. O equilíbrio entre os objetivos comerciais e de interesse público, tratado com um conflito de interesses clássico, está no cerne de todos eles. A primeira grande questão é como avaliar os riscos de que a pressão por resultado — inexistente na condição de associação sem fins lucrativos — interfira na adequada supervisão das companhias listadas e na manutenção dos mais altos padrões de listagem. As forças do livre mercado seriam suficientes para deter a tentação de rebaixar os padrões de listagem para, em busca de faturamento, atrair um número maior de empresas? Ou seria preciso criar instrumentos regulatórios que assegurem esse equilíbrio?

Outra preocupação pertinente diz respeito ao potencial abuso do poder de monopólio: em países onde existe uma única bolsa, como garantir que as tarifas cobradas das companhias, corretoras e outros agentes sejam as mais justas possíveis num cenário em que há pressão por lucro?

O terceiro ponto está relacionado ao horizonte de longo prazo e aos interesses mais amplos do mercado, como seu contínuo desenvolvimento. Num ambiente focado em lucratividade e desempenho ano-a-ano, como afiançar que os recursos necessários às atividades de fomento, que visam proteger o investidor e estimular sua confiança, sejam alocados com a devida prioridade? Por fim, é preciso pesar os conflitos que podem emergir em casos de auto-listagem, ou seja, quando a bolsa tem suas ações listadas em seu próprio pregão. Nessa situação, como asseverar que ela vá supervisionar a si mesma com credibilidade e sem brechas nos critérios? Outros pontos de conflito também devem ser considerados, como a aplicação injustificada de multas motivada por razões econômicas e a possibilidade de cerceamento dos concorrentes em áreas que a bolsa atue.

Uma possível solução para todas essas questões é separar as responsabilidades comerciais e de regulação em empresas distintas. Foi o que fez a Bolsa de Toronto, no Canadá, que criou uma entidade separada, a Toronto Regulatory Services, para cuidar da função reguladora. Em alguns casos, como no da Bolsa de Londres, houve uma realocação de responsabilidades e a maior parte das atividades regulatórias foi assumida pela Financial Services Authority (FSA), a comissão de valores mobiliários local. Em Hong Kong, a bolsa deixou de supervisionar a atividade das corretoras depois do processo de desmutualização, quando também passou a dividir a avaliação de pedidos de listagem e supervisão das companhias já listadas com o regulador. Na Malásia, foram criados departamentos separados para as atividades de negócios e regulatórias, permitindo que as responsabilidades ficassem praticamente inalteradas.

Outro possível modelo foi o adotado pela Austrália, onde a CVM local desenvolveu regras específicas para supervisão da bolsa, que incluem um relatório anual das atividades de regulação carimbado por uma auditoria externa. Um comitê para resolução de conflitos funciona dentro da própria bolsa com a missão de reportar ao regulador todas as situações em que haja potencial conflito de interesses. Limitações ao percentual de ações que um acionista individual ou grupo pode deter também são apontadas como um instrumento importante de garantia do bom funcionamento do mercado. Nas Filipinas, esses limites recaem sobre as participações de cada setor da economia que, para evitar a concentração, não pode deter mais do que 20% das ações.

As forças do livre mercado seriam suficientes para deter a tentação de rebaixar os padrões de listagem em busca do lucro?

Vale considerar também que os ganhos de eficiência proporcionados pelas alianças estratégicas possíveis num modelo desmutualizado — como a redução de custos operacionais a partir da implementação de novas tecnologias, da terceirização de processos e de projetos calcados em alianças estratégicas com outras bolsas — aliviam a pressão por corte de custos que é colocada sobre as atividades de regulação e fomento. Em mercados com estrutura semelhante, as plataformas de negociação podem ser consolidadas, otimizando tantos os custos de tecnologia e armazenagem de dados quanto os relacionados às atividades de controle. As sinergias identificadas pela Bolsa de Nova York com a aquisição da Euronext (que reúne as bolsas de valores da França, Holanda, Bélgica e Portugal, além da bolsa de futuros Liffe, sediada em Londres) são um ótimo exemplo. A bolsa norte-americana estima poupar US$ 250 milhões por ano (de um total que hoje chega a US$ 650 milhões) com a redução de seis para duas plataformas de negociação, de dez data centers para quatro e de três redes diferentes para apenas uma.

No caso do Brasil, as preocupações com o impacto que a atividade reguladora pode sofrer no novo modelo são minimizadas pelo fato de que a autonomia da Bovespa nesta seara não é tão ampla como em outros países. Além disso, segundo Magliano, todo o processo vem sendo conduzindo de maneira muito próxima do órgão regulador. “O escopo de trabalho da comissão interna contempla as negociações com a própria CVM e também com o Conselho Monetário Nacional”, afirma.

DESMUTUALIZAÇÃO = LISTAGEM? — Os processos de desmutualização e de listagem em bolsa, embora estejam intrinsecamente relacionados, não precisam ocorrer de forma simultânea. O relatório da Iosco produzido em meados de 2005 para tratar dos desafios específicos das bolsas de mercados emergentes sugere que a listagem ocorra após um período de adaptação ao novo modelo de negócios, ou seja, que se estabeleça um intervalo entre a desmutualização e a listagem para permitir que a transição se dê sem as pressões que inevitavelmente recaem sobre uma companhia aberta.

Esse período de transição é marcado pelas mudanças para uma cultura corporativa que, quase sempre, são mais difíceis de equacionar do que as mudanças de caráter técnico — visto que essas últimas podem ser identificadas de maneira mais objetiva que as primeiras. O presidente da Bovespa concorda. “Tudo o que for técnico é muito fácil, a complexidade vem mesmo no plano cultural, onde as mudanças levam mais tempo para ser absorvidas.” O diretor financeiro (CFO) da Bolsa de Nova York (Nyse), Nelson Chai, tem a mesma opinião: “É fundamental que a equipe gerencial esteja confortável com a idéia de que passará a trabalhar para um novo chefe, o próprio mercado, e de que o novo ambiente requer uma postura cada vez mais empreendedora”. Chai conhece o processo de transformação a fundo. Ele assumiu o cargo na Nyse a partir da fusão desta com a Archipelago — a plataforma de negociação eletrônica, onde também era CFO — e desde então vem comandando o processo de integração das novas equipes.

Cientes dos desafios que caracterizam essa transição, várias das grandes bolsas que embarcaram no processo de desmutualização optaram por esperar entre seis meses e um ano para listar suas ações. Foi o caso da Bolsa de Toronto (desmutualizada em 2000 e listada em 2002), da Euronext e da Bolsa de Londres (ambas desmutualizadas em 2000 e listadas em 2001). Outras, como a Bolsa da Austrália e a Deutsche Börse, da Alemanha, conduziram os dois processos de maneira simultânea. Para a Bovespa, esse cronograma ainda não está claro e sua definição deverá vir apenas ao longo da evolução do estudo que vem sendo conduzido pela comissão interna.

PERIGO DE DESNACIONALIZAÇÃO — Com suas ações negociadas em pregão, uma bolsa de valores abre o caminho para a participação de concorrentes estrangeiras, que podem adquirir participações minoritárias — como fez a norte-americana Nasdaq, que detém 25,1% da Bolsa de Londres — ou apresentar ofertas de compra que levem a uma fusão. É o caso da Nyse com a Euronext, cuja operação está em fase de aprovação, e da própria Euronext, que deve apresentar uma proposta à Borsa Italiana ainda este mês. Se, por um lado, a possibilidade de participação estrangeira apresenta oportunidades de sinergia interessantes e estimula a boa gestão das bolsas por seus administradores, por outro coloca sobre os mercados a ameaça da desnacionalização e, conseqüentemente, de seus impactos no poder de regulamentação.

O episódio da Nyse com a Euronext ilustra bem o caso. Com a fusão, as empresas européias listadas nas bolsas que compõem a Euronext temem a possibilidade de serem obrigadas a se adequar à legislação norte-americana. A Bolsa de Nova York garante que isso não vai ocorrer, alegando que negociação e listagem são duas coisas distintas (veja entrevista de sua presidente e co-diretora de operações, Catherine Kinney). Ainda assim, a Euronext vem estudando alternativas para resolver este potencial conflito. Uma das possibilidades estudadas é estabelecer uma entidade separada, que seja proprietária das licenças de cada uma das bolsas envolvidas na fusão. A entidade seria administrada por um painel de conselheiros e deteria também os direitos de voto dessas bolsas. Com isso, a holding seria proprietária de certificados de ações que lhe assegurariam os direitos econômicos, mas não os de voto. O modelo, ainda em fase de estudo, é similar ao que foi adotado na fusão das companhias aéreas Air France e KLM, para proteger os direitos de tráfego aéreo de cada uma.

Na Austrália, o órgão regulador criou regras específicas para supervisão da bolsa que incluem um comitê voltado à solução de conflitos

Mas, e no caso da Bovespa, como fica a ameaça de desnacionalização? Embora ela virtualmente exista, é bastante improvável. O movimento de consolidação das bolsas de valores ao redor do mundo, na opinião de uma série de observadores internacionais, caminha para um modelo mais parecido com o que levou à criação da Euronext, antes de sua fusão com a Nyse: o de uma federação de bolsas. Essa configuração permite uma integração de mercados sem necessariamente implicar em fusão das bolsas.

A Bovespa já está em fase de estudos avançados para um acordo do tipo com a Bolsa do México, segunda maior da América Latina. Magliano destaca que essa é uma maneira eficiente de incentivar o desenvolvimento do mercado regional, ampliando a liquidez e, ao mesmo tempo, preservando os mercados locais e a flexibilidade operacional. “Essa liberdade para estabelecer alianças e aprofundar o alcance do nosso mercado está no centro do processo de desmutualização que vamos empreender.” Questionado a respeito da possibilidade de desnacionalização da bolsa brasileira, o presidente a descarta com veemência. “Não acredito que nós vamos correr esse risco. Se por acaso ele surgir, os acionistas e a própria sociedade vão tomar as medidas para preservá-la.”


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