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Todos contra um
“Class actions” estouram na crise, perseguem companhias do Brasil e podem chegar ao País

, Todos contra um, Capital AbertoComo sangue atirado em mar de tubarões, basta um escorregão para acionistas virem à sua caça. Essa é a lição repetida exaustivamente às companhias abertas nos Estados Unidos. Lá existe o mecanismo da “class action”, processo coletivo por meio do qual um indivíduo, em nome de todos os outros que foram vítimas de um mesmo problema (a “classe”), aciona judicialmente os culpados para que todos sejam ressarcidos de prejuízos. A natureza das queixas varia bastante: pode ser um consumidor descontente com um brinquedo defeituoso, ou um investidor que comprou uma ação que desabou na bolsa. Segundo levantamento da norte-americana NERA Economic Consulting, em 2008 (até 14 de dezembro), foram registradas 255 class actions ligadas a valores mobiliários, o maior volume em seis anos. A principal razão para isso está na tormenta vivida pelos mercados de capitais. Períodos de maior volatilidade costumam ser fecundos em litígios. Do total de casos de 2008, 110 relacionam-se com a crise de crédito, e quase 50% das acusadas são do setor financeiro.

Para nós, brasileiros, a novidade é que duas companhias nacionais fizeram parte das estatísticas de 2008. Sadia e Aracruz são as primeiras a entrarem no alvo de class actions de investidores, de acordo com advogados norte-americanos ouvidos pela CAPITAL ABERTO e o banco de dados da Cornerstone Research, que pesquisa esse tema há mais de 20 anos. Tanto Sadia quanto Aracruz têm American Depositary Receipts (ADRs), recibos equivalentes a ações, negociados na Bolsa de Valores de Nova York. As causas para a abertura dos processos são fáceis de se deduzirem: a dupla deixou acionistas boquiabertos ao anunciar prejuízos bilionários com operações de derivativos cambiais.

GATO POR LEBRE — Tudo o que essas empresas disseram pode ser usado contra elas. Feitos cães farejadores, investidores e suas tropas de advogados escarafuncham, linha a linha, as informações publicadas por elas periodicamente, atrás de quaisquer vestígios de delito. Dados contidos em balanços que posteriormente se revelaram errados, ou frases que, à luz de fatos concretos, soam hoje como lorota, podem ser interpretados como indícios de fraude. O princípio básico por trás disso é que, em mercados eficientes, as cotações das ações refletem as informações disponíveis sobre elas. Se uma empresa revela que não está tão bem assim quanto dizia — e suas ações despencam na data desse anúncio —, acionistas podem alegar que adquiriram papéis a preços manipulados, pois, até essa notícia, tudo o que se sabia sobre a saúde da companhia era positivo. Grosso modo, compraram gato por lebre.

Nos casos de Sadia e Aracruz, os titulares de ADRs argumentam que as empresas falharam no disclosure. As reclamações contra as duas são muito parecidas. Nos processos abertos em 26 de novembro de 2008, Donald Aston e o fundo de pensão de bombeiros e policias da cidade de Miami (Flórida) acusam, respectivamente, Sadia e Aracruz por haverem: assinado contratos de derivativos cambiais “desnecessários, volumosos demais, e em clara violação à política de hedge da companhia”; mantido controles internos inadequados; publicado informações financeiras “falsas” e “enganosas”, por não levarem em conta a exposição cambial; dentre outros pontos. Quem adquiriu as ações da Sadia no intervalo compreendido entre 30 de abril e 26 de setembro de 2008 está, automaticamente, representado no processo. No caso de Aracruz, o prazo vai de 7 de abril a 2 de outubro do mesmo ano. A escolha desses períodos baseia-se na crença de que os balanços do primeiro trimestre, publicados nas datas iniciais, estavam incorretos. Por isso, os preços das ações estariam “inflados” até os dias em que as perdas com derivativos vieram à tona.

A pedido da CAPITAL ABERTO, Robert Houck, sócio da área de litígios do escritório de advocacia Clifford Chance, em Nova York, analisou as acusações dos investidores. Na sua opinião, falta solidez aos argumentos apresentados. “A política de hedge foi desrespeitada? Mas qual era o limite estabelecido por ela? Nada disso foi citado”, observa. Vai ser difícil separar, por exemplo, quanto da queda das ações se atribui ao anúncio dos prejuízos bilionários com derivativos e quanto se deve à turbulência financeira internacional. Ainda mais no mês de setembro, quando o banco Lehman Brothers quebrou e arrastou para o buraco o valor de ativos do mundo inteiro. A tal “eficiência” do mercado se perdeu. Mas isso não significa que as companhias já possam cantar vitória. Na fase inicial das class actions, é natural que a argumentação se apoie mais em frágeis indícios do que em provas, explica Houck. O único fato incontestável até esse momento é a desvalorização das ações. Na etapa de interrogatórios e investigação de documentos, que o jargão chama de “discovery”, as evidências de fraude começam a ser delineadas — isto é, se os processos avançarem até lá.

Titulares de ADRs acusam Sadia e Aracruz de terem publicado informações financeiras “falsas” e “enganosas”

O CAMINHO É LONGO — O percurso de uma class action é complexo e extenso. Pesquisa da Cornerstone Research, em conjunto com a escola de Direito da Universidade Stanford, mostra que, das class actions encerradas entre 1996 e 2008, 41% foram rejeitadas pela Justiça (na maior parte das vezes, após apelo das acusadas) e 59% terminaram antes de chegar ao tribunal. Segundo a consultoria NERA, entre 1987 e 2008, somente 14 receberam veredictos e quatro foram interrompidas no meio do julgamento. O desfecho para a maioria dos casos vem na forma de acordos, em razão dos custos de se continuar na disputa. “Muitas vezes, os investidores preferem receber alguma coisa no acordo do que correr o risco de não ganhar nada no fim”, diz John Gould, vice-presidente da Cornerstone.

Se, numa class action, os queixosos não precisam gastar um tostão sequer — os honorários dos advogados vêm do montante acertado com a defesa quando se chega ao acordo —, uma companhia pode fazer desembolsos consideráveis ao longo do processo. “A fase de produção das provas é muito cara”, diz Jaime Mercado, sócio do escritório Simpson Thacher & Bartlett, de Nova York. Alguns acordos superam a cifra de US$ 1 bilhão. O maior deles foi fechado no ano passado, determinando à Enron o pagamento de US$ 7,24 bilhões. Entre 2003 e 2008, o valor médio dos acordos subiu de US$ 21 milhões para US$ 82 milhões.

Por não custarem nada a investidores, há quem veja as class actions com antipatia. Seriam instrumentos de proteção ao cidadão comum ou fonte de renda para escritórios de advocacia? Existe até uma indústria que financia as bancas jurídicas, para que consigam arcar com os custos do processo durante a tramitação. Quando extremamente numerosos, os indivíduos representados acabam compensados só com um vale-brinde (cupom que dá direito à troca por uma mercadoria da companhia acusada), enquanto seus advogados levam uma bolada. Os escritórios ficam com 20% a 30% do valor distribuído. Diante das críticas, em 1995, o Congresso aprovou o Private Securities Litigation Reform Act, ampliando as possibilidades de apelo e exigindo que os investidores comprovem as causas dos prejuízos. Com o intuito de estimular a participação de investidores institucionais nas class actions, as regras estabeleceram que aquele com a máxima perda possível é quem deve conduzir o processo.

O TAMANHO DO RISCO — Contatadas pela reportagem, a Sadia e a Aracruz não atenderam à solicitação de entrevista. Até o fechamento desta edição, o acusador-líder da Aracruz ainda não havia sido escolhido. O algoz da Sadia foi definido em 26 de janeiro de 2008, depois de cinco grupos de investidores terem pleiteado o título: será o Sadia Investor Group, assessorado pelo escritório Saxena White. O passo seguinte é a consolidação desses cinco pedidos num único processo. Quando ele estiver pronto, será a vez de a Sadia se pronunciar. Segundo Houck, do Clifford Chance, as empresas tentam desqualificar a class action nessa etapa, chamando a atenção para a inconsistência das alegações. A coleta de provas dependerá de análise de relatórios assinados por administradores ou até de e-mails trocados entre eles. Encontrar essas provas, claro, não é nada simples.

Cabe um lembrete. As securities class actions não se dirigem apenas a emissoras com papéis cotados em bolsas de valores. Embora sejam mais raras, já houve rés cujo relacionamento com investidores norte-americanos se restringia ao mercado de balcão. As dezenas de companhias brasileiras que venderam ações nos Estados Unidos por meio da regra 144-A — que dispensa o registro de ofertas dirigidas a investidores qualificados —, portanto, são processáveis no âmbito das class actions. Sinal de perigo? Nem tanto. Quando as empresas não têm ativos nos Estados Unidos, a decisão judicial norte-americana precisa ser homologada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiro. Só assim os processados não conseguem escapar das obrigações. Consequência: mais tempo consumido e menor disposição de investidores e advogados para embarcar nessas cruzadas.

Se os administradores da companhia não tiverem mentido ou fraudado — uma class action só tem sucesso quando confirmada a má intenção do réu —, não há muito com o que se preocupar. Essa é a avaliação de Herbert Washer, sócio do escritório Shearman & Sterling, também de Nova York, que defende a Aracruz na class action. Segundo ele, empresas como a fabricante de celulose e a Sadia podem ter cometido um erro de gestão. Seria mais temerário acusá-las de fraude. “Essas class actions acabam sendo negadas antes de irem a júri”, acredita. “Para que os administradores sejam condenados na ação, a falha deve ser pior do que negligência.”

A caminho do Congresso Nacional

O Brasil está hoje mais próximo de ter um mecanismo semelhante às class actions norte-americanas. Em fevereiro, o Ministério da Justiça acertou os últimos detalhes do anteprojeto que trata de ações coletivas e altera a Lei da Ação Civil Pública (7.347), de 1985. A legislação determina que o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública, a União, o Distrito Federal, estados, municípios, órgãos públicos e associações (que apresentem certas características) são as partes legitimadas para propor processos coletivos. O anteprojeto ampliou esse leque, reconhecendo como demandantes a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), partidos políticos, sindicatos e associações civis e de direito privado, além daqueles já previstos.

O texto original levado à Brasília, elaborado por advogados do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), também permitia à pessoa física mover a ação coletiva, tal qual ocorre nos Estados Unidos. Mas o Ministério da Justiça preferiu suprimir esse trecho. Havia o receio de que as ações coletivas fossem usadas de forma irresponsável por aventureiros, gerando custos para as empresas. Quando o projeto seguir para o Congresso Nacional, o IBDP vai insistir na inserção da pessoa física. “Desde que haja controles sobre a representatividade da pessoa física, a legitimação é importante porque garante o acesso à Justiça e deve ser o mais ampla possível”, justifica Ada Pellegrini Grinover, presidente da entidade. “É uma questão de cidadania e participação.” Existe o temor de que, caso as pessoas físicas sejam incluídas, surja uma onda de litígios e um aumento de despesas para as companhias. Por isso mesmo, o IBDP estabeleceu, no texto enviado ao Ministério da Justiça, que o demandante não seria qualquer um. Critérios como credibilidade e histórico de atuação em processos seriam analisados.

O anteprojeto vai sepultar uma típica controvérsia jurídica, ao tratar de todos os tipos de dano na mesma lei. Para Lionel Zaclis, sócio do escritório BKBG Advogados, somente o Ministério Público pode propor as ações civis públicas em questões ligadas ao mercado de capitais. Ou seja, nem os investidores institucionais estão aptos a fazer isso. Ele defendeu esse ponto de vista numa tese de doutorado em Direito, apresentada na Universidade de São Paulo em 2003. A base da argumentação está na Lei 7.913, de 1989, que define como o MP deve agir para que investidores sejam ressarcidos em casos de fraude, uso indevido de informação privilegiada e falhas na divulgação de fatos relevantes. O curioso é que uma das integrantes da banca examinadora era justamente Ada Grinover, contrária a essa ideia. Segundo a advogada, o Código de Defesa do Consumidor (de 1990), que enumera outros demandantes possíveis, além do MP, vale também para disputas entre acionistas e companhias.

Lucila Prazeres da Silva, advogada que atua no mercado financeiro, acredita que os investidores já estejam bem protegidos atualmente. “O artigo 246, da Lei das S.As., fala de uma espécie de class action, pois permite que investidores com 5% do capital acionem os controladores da companhia, sem a necessidade de prestar caução pelos custos com advogados”, afirma. A diferença com as ações civis é que, nestas, os investidores são ressarcidos. Nas situações enquadradas no 246, a indenização vai para a própria companhia.

“A razão de ser de uma class action é o ganho de eficiência nas decisões jurídicas envolvendo uma multidão de vítimas. Os custos para pequenos investidores e consumidores são reduzidos a zero, porque não precisam pagar nada se decidem abrir um processo na forma de class action. Desde o século 19, os Estados Unidos, inspirados na Inglaterra, utilizavam o mecanismo da “bill of peace” (algo como “nota da paz”), que elegia alguns demandantes para representar os demais num processo por prejuízos financeiros. Em vez de a Justiça tratar dezenas ou até centenas de casos individuais, criou-se um sistema no qual todas as queixas, de natureza semelhante e contra os mesmos acusados, eram condensadas numa única peça. Em 1938, o Federal Rules of Civil Procedure, por meio da regra 23, criou a figura da class action, que não se aplica apenas a perdas de capital, mas também a danos ambientais e à saúde, dentre outros.


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