Poder dividido
Relatório do comitê de regulação norte-americano confirma: “por falta de compromisso e liderança política”, o mercado de capitais dos EUA encerrou 2007 mais distante de sua hegemonia

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Não é de hoje que se fala a respeito de uma perda de atratividade do mercado de capitais dos Estados Unidos. Em 2006, sinalizando que o problema já preocupava os norte-americanos, foi criado o Committee on Capital Markets Regulation (CCMR), com a incumbência de analisar a regulação do mercado de capitais do país. No fim daquele ano, o comitê publicou um relatório com uma série de sugestões para abrandar a perda de prestígio. Doze meses depois, insatisfeito com a não-reversão do cenário, disparou no relatório de 2007: “O mercado público de ações dos Estados Unidos deteriorou-se significativamente nos últimos anos, qualquer que seja o item analisado. No relatório de 2006, foram sugeridas reformas para ajudar a remediar a situação. Nada de significativo foi feito. O que falta é compromisso e liderança política”.

A confirmação da perda de poder norte-americana no mercado de capitais global tende a ser, como se vê, uma tônica para 2008. Não há como esconder que os números já são cada vez menos favoráveis para o Tio Sam. A participação de três grandes bolsas (Nyse, Nasdaq e Amex) nas ofertas públicas — IPOs e outras colocações de ações — em mercados internacionais caiu de 28,8%, em 2002, para 19,2%, em outubro de 2007. Se levarmos em conta só os IPOs, a situação também é preocupante. Em 1996, quase metade (44,5%) dos IPOs globais de empresas não-americanas tinha ocorrido no mercado norte-americano. Em setembro de 2007, caiu para 10,1%.

Não bastasse a queda no número de IPOs globais, as bolsas dos EUA têm de lidar com as crescentes deslistagens de empresas estrangeiras

Há alguns anos, era comum empresas estrangeiras listarem suas ações nos EUA sem a necessidade de levantar capital. Elas queriam apenas alinhar-se às melhores práticas de um ambiente mais exigente e desenvolvido no quesito governança corporativa. Mas esse chamariz também parece estar perdendo força: em 2000, 43 companhias listaram-se nos EUA sem captar recursos. Até outubro do ano passado, apenas quatro haviam feito o mesmo.

Não bastasse a perda de atratividade nos IPOs globais, o mercado de capitais norte-americano (considerando- se as três principais bolsas, Nyse, Nasdaq e Amex) também observa uma fuga de empresas estrangeiras. Foram 30 deslistagens (6,6% de todas as companhias internacionais) em 2006, contra 12 (3,9%) em 1997. Até outubro de 2007, 56 empresas (12,4%) haviam batido em retirada das bolsas dos EUA. O alto número pode ser explicado pelo relaxamento das regras da Securities and Exchange Commission (SEC) para saída de bolsa. Em 4 de junho, a SEC passou a permitir a deslistagem de empresas estrangeiras com volume de negociações relativamente baixo. Das 56 companhias internacionais que saíram das bolsas norte-americanas, 38 deslistaram depois dessa data. O que não torna a situação menos preocupante, segundo o relatório, pois elas poderiam ter saído antes não fosse a legislação.

Para piorar, observa-se também um aumento significativo de empresas norte-americanas optando por listar apenas fora dos Estados Unidos. Em 1996, entre todos os IPOs norte-americanos, 0,8% aconteceu em uma bolsa fora dos EUA. Dez anos depois, a porcentagem pulou para 6,3%.

MERCADO PRIVADO — Se o mercado público não vai bem, o mesmo não se pode falar das operações sem registro na SEC. O sucesso das ofertas privadas de ações, por meio da regra 144A, mostra que a perda de atratividade das bolsas norte-americanas não está em uma suposta redução de importância dos EUA como fonte de capital — a despeito de seu persistente déficit em conta corrente e da baixa taxa de crescimento. Realizadas fora de bolsa e com alvo em investidores institucionais, as ofertas privadas captaram, em 2006, US$ 162 bilhões — US$ 8 bilhões a mais que os três principais pregões norte-americanos juntos.

Em 1996, as ofertas feitas sob a 144A corresponderam a 28,9% do valor total de IPOs globais.Em setembro de 2007, a participação do mercado privado passou a abocanhar 84,9%. Analisando os IPOs globais feitos por empresas de fora do país, verifica-se que 94% delas ainda procuram os EUA para uma colocação privada de ações (dados de 2006). “Parece que as companhias estrangeiras dispostas a vir aos EUA estão muito mais propensas à 144A do que ao mercado público. Isso indica a crescente atratividade do mercado privado, muito menos regulado e litigioso”, afirma Curtis Smith, vice-presidente de negócios para o Brasil do Bank of New York. Além de ser dispensada de registro na SEC, a empresa que lança ações pela 144A não se sujeita ao controle da Lei Sarbanes-Oxley (SOX).

Se as captações no mercado norte-americano ainda interessam às companhias, o que explicaria, então, o declínio do mercado público de ações daquele país? Para Stephen Hood, sócio que comanda a filial brasileira da Mayer Brown, escritório de consultoria em direito estrangeiro, dois fatores foram fundamentais para a perda de atratividade norte-americana: o aumento de liquidez da Bolsa de Londres e o alto custo de adequação à SOX. “Muitas empresas européias saíram da Nyse porque o excesso de regras não estava se traduzindo em benefícios”, diz.

Luigi Zingales, professor de economia da Universidade de Chicago, divulgou um relatório — Is the U.S. Capital Market Losing its Competitive Edge? — em novembro, em que buscou levantar as causas do problema. No que diz respeito à regulação, Zingales reconhece que a SOX, em especial a seção 404, aumentou os gastos das empresas listadas nos EUA com o disclosure de informações. A seção 404 cobra uma avaliação anual dos controles e dos procedimentos internos para a emissão de relatórios financeiros, sob a aprovação de um auditor independente. Curtis Smith, do Bank of New York, concorda que a SOX contribuiu para o enfraquecimento das bolsas norte-americanas. “Os EUA perceberam que é preciso uma maior flexibilização, mas, como se trata de lei, qualquer mudança terá de passar pelo Congresso, e isso tende a ser lento”, explica. Ora, a diminuição de empresas nas bolsas dos EUA não seria, então, um sinal de que a lei está cumprindo com sua obrigação, que é a de afastar as más companhias e atrair as boas? Para Zingales, não é o que está acontecendo. “Infelizmente, a queda da participação norte-americana nas listagens internacionais não pode ser atribuída a um suposto efeito benigno da regulação. Se prestarmos atenção nos IPOs globais de países desenvolvidos (Velha Europa, Austrália, Canadá, Japão, Nova Zelândia), onde a probabilidade de encontrarmos maçãs podres é menor, a fuga é igualmente grande”, diz Zingales em seu relatório.
p class=”sitacao”>As estrangeiras estão muito mais propensas à 144A, o que revela a crescente atratividade do mercado privado, muito menos regulado e litigioso

Entre custos e benefícios, ele acredita que os maiores prejudicados com as mudanças no ambiente regulatório pós-SOX foram as empresas com boa governança corporativa. “As exigências da SOX são benéficas, mas muito custosas. Empresas com bom retrospecto de governança geralmente tiram menos benefícios dos altos custos, pois já têm boa governança”, explica o professor da Universidade de Chicago.

O alto risco de sofrer litígios, em especial ações coletivas, é, para Zingales, outro fator que afugenta empresas estrangeiras de uma possível listagem. Os volumes movimentados nas ações judiciais no mercado de capitais norte-americano pularam de US$ 150 milhões, em 1997, para US$ 9,7 bilhões em 2005. Após os escândalos da Enron, Tyco e WorldCom, em 2002, os norte-americanos, acostumados com uma forte indústria de processos judiciais, passaram a ficar muito mais atentos às possíveis irregularidades no mercado de capitais. Zingales acrescenta: “Em alguns casos, como o da Enron, os diretores tiveram de pagar indenizações dos próprios bolsos. Será do interesse dos diretores se expor a riscos pessoais tão altos?”

INGLATERRA — Quem mais se beneficia com a queda norte-americana é o mercado inglês. Depois de mais de uma década de declínio, a Bolsa de Londres (LSE) viu, nos últimos três anos, sua participação de mercado em IPOs globais subir de 5% para 25%. A principal razão para o crescimento londrino está no ambiente regulador. A Financial Services Authority (FSA), autoridade máxima do mercado de capitais inglês, possui uma abordagem baseada em princípios e risco — diferente, portanto, da SEC, que se apóia em regras e preenchimento de requisitos. A FSA dá às empresas a responsabilidade de governar seus negócios, por meio de uma auto-regulação — o que tende a promover uma governança corporativa mais espontânea que aquela existente em um ambiente excessivamente regulado.

Em 2007, a LSE contou com 237 IPOs (69 estrangeiros), o que totaliza um volume negociado de US$ 47 bilhões. A participação verde-amarela na capital britânica se limita a três companhias — Itacaré, Clean Energy Brazil e Infinity Bio Energy —, todas listadas no Alternative Investment Market (AIM), o mercado alternativo da LSE destinado a empresas menores e com elevado potencial de crescimento. Em visita feita ao Brasil em agosto, o prefeito da City (distrito financeiro de Londres), Lord Mayor John Stuttard, demonstrou o desejo da bolsa inglesa por listagens brasileiras — até o momento, nenhuma grande companhia do País se aventurou pelo mercado britânico.

Perspectivas de IPOs brasileiros na Bolsa de Londres existem. Rogério Andrade, sócio da KPMG, revela que já foi procurado por algumas companhias interessadas em uma possível listagem em Londres, mas, por motivos confidenciais, não revelou nomes. “Determinados segmentos podem ter um grande potencial no mercado europeu via Bolsa de Londres e, portanto, podem optar por uma listagem lá”, diz.

Para Hood, do Mayer Brown, a listagem de grandes empresas na LSE não deverá demorar. “Acredito que, no curto prazo, haverá, em Londres, IPOs dos setores de mineração e etanol, que despertam grande interesse na Europa”, prevê. A tendência, para o advogado britânico, é que a ida de companhias brasileiras aumente nos próximos anos. Tanto que a Mayer Brown, que se instalou no Brasil em novembro, pretende preparar uma estrutura para atender a empresas interessadas em listar-se na bolsa inglesa. Paul Rodel, advogado da Debevoise & Plimpton, adverte que as companhias brasileiras precisam dispor de uma boa estrutura para a negociação dos papéis na Europa, se quiserem estar listadas em Londres. Por causa disso, ele acredita que serão poucas as companhias brasileiras que optarão pela capital britânica. Além disso, o Brasil tem, segundo Rodel, um histórico comercial e financeiro com os EUA, que não se consegue da noite para o dia. “Os norte-americanos estão familiarizados em fazer negócios com empresas brasileiras. Para que o mesmo ocorra com a LSE, levará tempo”, conta.

Curtis Smith, do Bank of New York, não descarta a possibilidade de uma migração de companhias brasileiras para a Inglaterra, mas condiciona o fato a um aumento da demanda. “Há poucos canais de distribuição para papéis brasileiros, principalmente no mercado secundário, na Bolsa de Londres. O eixo de demanda é Nova York e São Paulo. Para Londres entrar no jogo, é necessária toda uma estrutura — mesa de operações, bancos, corretoras — a ser alocada”, explica. Portanto, afirma Smith, a transição deverá ser paulatina. “Levará certo tempo. Umas poucas empresas abrirão o caminho e, depois que uma demanda estiver formada, outras irão”, prevê.

Londres quer empresas brasileiras

Graham Dallas, diretor sênior para as Américas da Bolsa de Londres, reafirma, em entrevista à CAPITAL ABERTO, o desejo da LSE em contar com listagens de grandes empresas brasileiras.

C.A: O principal beneficiado com a perda de competitividade do mercado de capitais norte-americano é Londres. Quais seriam, do ponto de vista da LSE, as causas dessa tendência?
G.D: Há uma série de razões. Talvez a mais importante é que o centro de gravidade da economia mundial esteja se distanciando dos EUA. Os países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) são o motor do crescimento do PIB global, e o movimento dos IPOs reflete essa tendência. A dependência norte-americana em relação às regras, em vez de uma postura prática, baseada em riscos, é particularmente prejudicial na hora de atrair grandes IPOs. Uma regulação que combina flexibilidade com proteção ao investidor, como a que existe em Londres, costuma ser mais adequada e eficiente. A terceira razão é o desenvolvimento espetacular dos mercados de capitais domésticos nos países emergentes. Brasil e Xangai, em especial, detêm plataformas de captação de recursos muito eficientes para as empresas desses países. Finalmente, melhorias em comércio, comunicações e tecnologia bancária possibilitaram aos investidores acesso a novos mercados.

Em sua opinião, foi o mercado norte-americano que piorou ou o inglês que melhorou?
As duas afirmações são verdadeiras. A introdução da Sarbanes-Oxley e do Patriot Act (pacote de leis antiterrorismo, criado após os ataques de 11 de setembro, que concede ao governo norte-americano o direito de, entre outras coisas, vasculhar documentos privados e interceptar comunicações), em particular, tornou o mercado dos EUA menos atrativo. Ao mesmo tempo, a Bolsa de Londres desenvolveu-se e melhorou rapidamente. A criação de um mercado europeu comum deu à capital britânica, pela primeira vez, um ambiente “doméstico” comparável, em tamanho e riqueza, ao norte-americano. Uma nova tecnologia de negociação fez de nossa bolsa a mais rápida em execução no mundo — um fator que atrai novas fontes de liquidez. Uma comunidade única de expertise se formou, empregando dezenas de milhares de profissionais de todo o mundo.

A LSE vem tomando medidas para atrair ainda mais empresas estrangeiras?
Sim, nós criamos equipes para desenvolvimento de negócios para as Américas do Norte e do Sul, Ásia/Pacífico, África, Oriente Médio, Europa Ocidental e Europa Central/ Oriental. Buscamos sempre adaptar nossos produtos e serviços às necessidades de nossos clientes.

Grandes empresas de Índia, China e Rússia já se listaram na LSE. Há o interesse de atrair IPO s de companhias brasileiras? Quais as principais barreiras?
O Brasil, para a LSE, é um mercado-chave. O chairman da LSE estará em São Paulo, em fevereiro, para uma conferência com a comunidade de investidores brasileira. Mas reconhecemos que o Brasil possui um mercado doméstico muito bem-sucedido, eficiente e sofisticado, e entendemos que o passo natural de uma empresa brasileira é listar na Bovespa. Em alguns casos específicos, acreditamos que uma listagem em Londres pode agregar valor, dando à empresa uma plataforma global e acesso ao mais amplo grupo de investidores institucionais. Nossa atividade na América Latina começou apenas em setembro de 2006, mas estamos comprometidos com a região e confiantes de que temos um papel a desempenhar nesse crescimento. (S.M.)


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