O esquema desmoronou
Fraude na Parmalat prejudica milhares de investidores e revela que muitos ainda desprezam os sinais de alerta dados pelas más práticas de governança

ed06_p030-035_pag_2_Img_001Para quem imaginava que a overdose de crises corporativas nos últimos anos teria sido suficiente para deixar os “gatos” escaldados, o tempo reservava uma surpresa. Mais um escândalo contábil, desta vez na Europa, foi capaz de pegar na contramão investidores, auditores, bancos de investimento, reguladores e classificadores de risco de crédito. Nem precisou que fosse uma fraude mais elaborada ou uma companhia acima de qualquer suspeita. Bastou um caso tradicional de abuso de poder em empresa de controle familiar, repleto dos exemplos de má conduta corporativa discutidos à exaustão nos últimos anos.

E não eram poucos os sinais de que a Parmalat carecia de melhores práticas de gestão. A GovernanceMetrics International, agência especializada em ratings de governança corporativa, havia classificado a multinacional do setor de alimentos como “bandeira vermelha” em junho de 2003 por considerar elevados os riscos de abuso por parte dos seus executivos e acionistas controladores (ver tabela na próxima página). A Institutional Shareholder Service (ISS), outra empresa que atribui ratings à governança das companhias, colocava a Parmalat no pior nível de um conjunto de 69 empresas italianas analisadas, acompanhada apenas de outras três companhias na mesma condição de descrédito.

Vários motivos levaram as empresas de rating a serem rigorosas com o boletim da Parmalat. A companhia dava poucos sinais de independência em seu conselho de administração. Nove dos seus membros eram internos, um externo era considerado afiliado à companhia e havia apenas três independentes. A presença familiar era marcante. O fundador, Calisto Tanzi, 65 anos, comandava a empresa ao lado do irmão, do filho, da filha e da sobrinha, todos presentes no conselho, na diretoria ou nos dois. Tanzi era o principal executivo e também o presidente do conselho.

Cada um dos comitês que compunham o conselho era composto por pelo menos um executivo da diretoria. Os participantes do comitê de auditoria e remuneração, por exemplo, também sentavam no comitê executivo – o qual apresed06_p030-035_pag_3_Img_001entava as propostas ao conselho antes de implementá-las – ao lado de Tanzi. Como prevê a lei italiana, a Parmalat tinha um grupo de auditores internos estatutários, embora de independência duvidosa. Eles eram eleitos por todos os acionistas mas, como a família controlava os votos com 51% das ações, era ela quem de fato os escolhia. Também contribuía para os baixos ratings de governança da Parmalat a ausência de uma divulgação ágil e regular dos planos de ações e demais compensações oferecidas aos executivos.

Depois de descoberta a fraude, as evidências não pararam de surpreender os mais incrédulos com o tempo que se levou para desvendá-la. Além das questões ligadas à governança da companhia, havia outros indícios mais evidentes que ficaram anos submersos enquanto Tanzi se apropriava de recursos dos demais acionistas. Se o endividamento da Parmalat crescia a cada ano e, no penúltimo trimestre de 2003, atingia 6 bilhões euros, por que seus executivos não utilizavam os 3,9 bilhões de euros em ativos contabilmente verdadeiros para saldar parte das dívidas? Tarde demais, mas a resposta finalmente virou escândalo. A conta do Bank of America nas Ilhas Cayman em que estariam os 3,9 bilhões de euros existia apenas na mente criativa dos executivos mal intencionados da Parmalat.

AUDITORES ESTÃO PREOCUPADOS – Com mais esse episódio na cartilha dos eventos que colocaram em xeque a segurança dos investidores, não faltam lições para tentar escapar da próxima armadilha. Uma delas servirá certamente aos auditores, os primeiros a serem perseguidos na caça às bruxas que costuma suceder situações como essa. Depois da desmoralização que sofreram com as descobertas de envolvimento da Andersen na fraude da Enron e com a espetacular ruína da segunda maior firma de auditoria do mundo, eles vêem sua credibilidade novamente colocada à prova. Desta vez, estão na mira dos investigadores a Grand Thornton, que já teve dois dos seus executivos presos por suspeitas de irregularidade na auditoria da Bonlat, a subsidiária da Parmalat que teria a conta falsa em Cayman, e a Deloitte Touche Tohmatsu, auditora dos números consolidaed06_p030-035_pag_6_Img_001dos do grupo Parmalat.

Supondo-se que, ao contrário do caso Enron, desta vez a falta do auditor não tenha sido criminosa e sim decorrente de uma falha dos seus profissionais por não terem identificado a fraude, quais as chances de que esse tipo de situação ocorra mais vezes? Que tipo de expectativa o investidor deve ter em relação à atuação do auditor?

Sócios de grandes empresas de auditoria ouvidos pela Capital Aberto dão a entender que não estão livres desse risco. Afirmam que são poucas as chances de o auditor prevenir a fraude nos casos em que a alta administração estiver disposta a executála. Seus trabalhos são conduzidos por amostragem e com a colaboração dos executivos. “Se os principais administradores quiserem enganar o auditor, é muito provável que consigam”, diz um dos sócios.

Cientes disso e preocupados com os estragos provocados por eventos do tipo Enron e Parmalat, os auditores começam a tomar precauções. Nos últimos anos, eles aumentaram a percepção de risco do seu próprio negócio. Agora a ordem é ser mais rigoroso nas avaliações de risco dos novos clientes e se assegurar de que eles oferecem instrumentos de governança como um comitê de auditoria formado por pessoas independentes e um conselho de administração desvencilhado dos principais executivos. “Precisamos também ser mais conservadores no número de horas estimado para o trabalho e dispor de mais tempo em alguns casos”, afirma um dos sócios, que preferiu não se identificar.

INVESTIDOR DESATENTO – Se os escândalos recentes provaram que a presença do auditor não garante 100% de veracidade nas informações financeiras, então os investidores também precisam fazer a lição de casa. Os ratings de governança da Parmalat provaram que cada vez mais os investidores precisam estar atentos a esses detalhes e não apenas aos balanços produzidos pelos executivos (e atestados pelas firmas de auditoria). “A índole dos administradores não é diagnosticada pelo trabalho dos auditores”, comenta Fabio Alperowitch, sócio da Fama Investimentos, uma empresa de gestão de recursos.

Ele reforça a importância de analisar o caráter e o histórico dos acionistas controladores e dos administradores antes de comprar o risco dos papéis de uma companhia. “Não é por gostar da sua marca de leite, da sua campanha de marketing ou do time que a empresa patrocina que alguém pode tomar a decisão de investir nos seus títulos”, diz Alperowitch. Dados divulgados pela imprensa italiana davam conta de que a Parmalat tinha entre 70 mil e 90 mil pequenos investidores de títulos e ações antes do escândalo.

Parte dos desavisos do investidor pode ter sido provocada também por um modelo de administração de recursos largamente utilizado em todo o mundo: o das carteiras atreladas aos índices das ações mais negociadas nas bolsas. “A manada está disposta a comprar tudo o que estiver nos índices porque assim todos ganham ou perdem juntos”, avalia Mauro Cunha, diretor de investimentos da Bradesco Templeton.

Outro personagem que precisa se precaver de novos escândalos de fraude são os conselheiros de administração. Depois do caso Enron – no qual a maioria do conselho já era formada por independentes – e agora com Parmalat, em que os fatos por si só faziam suspeitar que o conselho poderia não funcionar como deveria, é cada vez maior a pressão dos investidores, credores, auditores e reguladores sobre o trabalho dos conselheiros. Eles devem zelar pelo patrimônio de todos os acionistas e terão cada vez menos chances de escapar dessa responsabilidade. “É fundamental que o investidor avalie a real independência dos conselheiros e de que forma eles se relacionam com os executivos”, afirma Antonio Carlos Vidigal, professor da cadeira de governança corporativa no Ibmec-Rio.

Conselho de administração dava poucos sinais de independência e tinha forte presença da família Tanzi

Empresas de rating, bancos de investimento e reguladores também saem prejudicados de mais esse escândalo corporativo. No primeiro caso, o argumento é de que as classificações de risco de crédito baseiam- se exclusivamente nos dados financeiros apresentados pelas companhias e validados por seus auditores. “O classificador não tem acesso às contas”, explica Sheila Shirota, diretora executiva da SR Rating. Por esse motivo, ela defende que o investidor se utilize de instrumentos mais completos de avaliação das companhias, como os ratings de governança corporativa ou os chamados ratings de ética. Esses últimos avaliam, além da governança, questões como a percepção dos funcionários, fornecedores e outras partes relacionadas, os métodos de tomada de decisão da administração e as ferramentas de controle de riscos.

A EUROPA ARREGALA OS OLHOS – O escândalo da Parmalat constrangeu a Europa. A região já havia enfrentado casos de fraude como os protagonizados pela varejista holandesa Royal Ahold e o grupo de mídia francês Vivendi Universal, mas nada tão parecido em proporções globais com o caso Enron. À época do escândalo com a gigante norte-americana de energia elétrica, muitos europeus preferiram colocar-se à parte do drama alheio. Mas algumas vozes ecoaram no sentido oposto, entre elas a do presidente do Consob, o órgão regulador do mercado de capitais italiano, Luigi Spaventa, no que pareceria uma verdadeira peça pregada pelo destino um ano e meio depois. Em seu discurso no encontro anual do Inter national Corporate Governance Network (ICGN), em julho de 2002, Spaventa instigou investidores institucionais e reguladores a não ficarem parados acreditando que o escândalo Enron seria uma realidade apenas nos Estados Unidos.

Auditores ampliam percepção de risco sobre o próprio negócio e passam a ser mais rigorosos na aceitação de novos clientes

Agora, com o episódio Parmalat, é a vez dos europeus se debruçarem sobre suas normas de governança para fazer os remendos necessários. No início de janeiro, a comissão coordenadora da Comunidade Européia informou que estaria reavaliando as regras para os auditores previstas nas diretrizes de governança corporativa formuladas em maio do ano passado. Uma das propostas seria ampliar a fiscalização sobre os auditores e determinar que cada companhia tivesse apenas uma firma de auditoria responsável por suas contas, evitando assim situações como a da Parmalat em que Deloitte e Grand Thornton auditavam partes diferentes de um mesmo grupo.

A OCDE – Organization for Economic Cooperation and Development – também se serviu dos acontecimentos na Parmalat para lançar uma minuta de revisão dos seus princípios de governança corporativa, um dos mais prestigiados em todo o mundo. Entre as novidades do novo código estão alguns direitos dos investidores como o de eleger os membros do conselho de administração e o de expressar seu ponto de vista sobre a política de compensação dos conselheiros e executivos. A OCDE também passa a recomendar que os investidores institucionais dêem transparência às suas políticas de voto e à forma como administram conflitos de interesses que possam influenciar suas atividades (ver tabela).

AS LIÇÕES DA CRISE – Manuais de recomendações, normas e leis são algumas das heranças comuns em processos de crise gerados pela ausência de mecanismos de controle. Há quem veja essas heranças como inadequadas ou até exageradas e quem as considere parte de um processo de evolução para o bom funcionamento do sistema. Ernesto Rubens Gelbcke, presidente da BDO Directa Auditores, avalia que algumas das situações de crise vividas recentemente deixaram contribuições positivas para o ambiente regulatório, especialmente na área de contabilidade e auditoria.

Comunidade européia reavalia regras para o trabalho dos auditores previstas em suas diretrizes de governança corporativa

Ele lembra que, no Brasil, as irregularidades descobertas nos bancos Nacional e Econômico levaram a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a criar a Instrução 308, regulamento que impôs uma série de normas para o trabalho do auditor. Foi introduzida a chamada revisão dos pares entre as auditorias, processo no qual cada firma é avaliada por outra em intervalos mínimos de quatro anos. O relatório da revisão é depois submetido à apreciação de um comitê de especialistas, trabalho que foi feito pela primeira vez no Brasil no ano passado. A CVM também passou a exigir um exame de qualificação para os profissionais e alguns procedimentos de controle interno de qualidade nas firmas.

A Instrução 308 criou ainda medidas polêmicas como a proibição das atividades de auditoria e consultoria para um mesmo cliente e a implementação do rodízio das firmas, a ser realizado pela primeira vez este ano. O rodízio desagradou as maiores empresas de auditoria, principalmente a PricewaterhouseCoopers, líder de mercado e a que mais perde com o rodízio.

Norma Parente, diretora da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), avalia que o caso Parmalat confirmou a importância do rodízio de firmas de auditoria. Por existir também na regulamentação italiana, o rodízio foi o motivo para que a Parmalat deixasse de ser auditada pela Grand Thornton e passasse à Deloitte Touche Tohmatsu em 1999. “Não sabemos quanto tempo se teria levado para descobrir a fraude caso não existisse o rodízio”, afirma. Para a diretora, o fato de ter havido uma abordagem nova por uma firma de auditoria diferente pode ter contribuído para a identificação de irregularidades no caso Parmalat.

Fernando Alves, presidente da PricewaterhouseCoopers no Brasil, rebate os argumentos a favor do rodízio. Ele afirma que, em última instância, o rodízio pode favorecer as fraudes por induzir a concorrência entre as firmas. A expectativa de superar a oferta do concorrente pode levar à cobrança inadequada de honorários e à redução da carga de trabalho do auditor, ampliando o risco de falhas.

Casos de fraude em grandes bancos serviram para ampliar a regulamentação da atividade de auditoria no Brasil

SEMELHANÇAS COM O BRASIL – Boas ou ruins, as reações aos casos de fraude escandalosa ainda vão precisar de tempo para mostrar se valeram a pena. Por enquanto, o que diferencia as lições do episódio Parmalat das deixadas por outros desvendados nos últimos anos são as semelhanças com o Brasil no que diz respeito às condições de governança.

Diferentemente da Enron, que era governada pelo modelo de corporação norte-americano de base acionária altamente pulverizada, a Parmalat lembra muito da realidade brasileira. Empresa familiar, de controle concentrado, a multinacional de alimentos vivia o dilema de alinhar o interesse dos proprietários (todos os acionistas) com o dos tomadores de decisão (acionistas controladores). No modelo das corporações, o caso Enron provou que o mesmo desafio existia, com a diferença de que os tomadores de decisão estavam representados pelos principais executivos e não por um grupo de acionistas controladores.

Logo após a Enron, chegou-se a questionar até que ponto o modelo das corporações não teria se mostrado mais arriscado que o das companhias de controle definido por conta do excesso de poder delegado a tomadores de decisão com pouca ou nenhuma participação no capital. Tal situação, contudo, não parece tão diferente do que se vê em algumas empresas brasileiras, principalmente após as privatizações, nas quais acionistas controladores detêm o poder de decisão a despeito dos baixos volumes de capital próprio investido. Nessas empresas, assim como ocorre nas grandes corporações dos Estados Unidos, a dobradinha poder de decisão e baixo comprometimento de capital também fazem uma aliança perigosa para o bem estar da companhia e de todos os acionistas.

Se o risco está, portanto, em todos os modelos, o caso Parmalat veio ensinar que a boa e velha honestidade, mais modernamente chamada de ética, ainda pode ser a melhor maneira de separar o joio do trigo. Cabe ao investidor dedicar mais tempo e trabalho para a escolha de seus parceiros.


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