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Mania de ações
A história do inacreditável mercado acionário indiano, em que IPOs são vendidos em outdoors e 30 milhões de cidadãos investem na bolsa de valores

, Mania de ações, Capital AbertoQuem vai à Índia pela primeira vez é antes avisado: “prepare-se para um mundo de contrastes”. Mas nada diminui o choque de se deparar com eles ao vivo e em (muitas) cores. Nesse território, que é 40% de um Brasil e abriga quase seis vezes a nossa população, convivem, lado a lado, edifícios modernosos erguidos para abrigar famílias ricas emergentes e favelas sem portas, teto ou mobília, cobertas por plástico de azul berrante e equipadas com antenas parabólicas. Nos templos hindus e muçulmanos espalhados pela cidade, a paz é silenciosa e rara. Nas ruas, prevalece o caos. Semáforos e faixas de segurança ignorados por motoristas e pedestres somam-se ao som ininterrupto das buzinas que vêm dos carros e dos rickshaws — as simpáticas e frágeis carruagens de duas ou três rodas, movidas por motor ou pedaladas, que lotam e perturbam as vias já congestionadas. De olho na volumosa classe média local, estimada em cerca de 300 milhões de pessoas, outdoors com publicidade de todo tipo decoram o improvável cenário urbano de Mumbai. De todo tipo mesmo. Até ações emitidas por empresas entrantes na bolsa de valores são oferecidas aos transeuntes, com informações detalhadas sobre as condições e os prazos da subscrição.

“Aqui, os IPOs são vendidos como se fossem bens de consumo”, afirma Pratip Kar, consultor e ex-dirigente da comissão de valores mobiliários, a Securities and Exchange Board of India (Sebi). E os indianos adoram a ideia. “Normalmente, cerca de 50% das ações distribuídas nos IPOs ficam com o varejo”, conta o presidente da Sebi, C.B. Bhave. O restante é arrematado, na maior parte, por investidores institucionais estrangeiros — os FIIs, como os indianos costumam chamá-los, usando a sigla em inglês.

Os investidores institucionais domésticos são bem menos ativos, para não dizer apáticos. Os fundos de pensão investem basicamente em títulos do governo, e os fundos mútuos são um fenômeno recente, ainda em estágio inicial. A culpa pelo atraso atende pelo nome de UTI — Unit Trust of India —, um fundo operado pelo governo que, durante 20 anos, foi o único veículo de investimento em bolsa aberto a receber recursos dos poupadores. “Os fundos mútuos têm grande potencial, mas ainda precisam criar produtos mais amigáveis e ampliar a distribuição”, afirma Kar.

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Além de embarcar nos IPOs com o mesmo entusiasmo que compram calças jeans, os indianos influenciam fortemente a rotina da National Stock Exchange (NSE). Pelo menos 75% do volume diário é transacionado por pessoas físicas, segundo o presidente da Bolsa, Ravi Narain. “Os aplicadores de varejo na Índia sempre acharam que conhecem o mercado de ações e que podem muito bem investir sozinhos. Não existe aqui a noção de que os gestores de recursos fariam melhor esse trabalho”, conta Narain. Em termos absolutos, o resultado dessa autoestima invejável impressiona: calcula-se que algo como 30 milhões de pessoas invistam hoje em ações na Índia.

Tão incrível quanto o número em si é o fato de que ele pode aumentar muito mais. O vasto contingente de aplicadores representa, afinal, menos de 3% da população de um país que vem crescendo à taxa média de 7,5% ao ano desde o início da década. E 10% de uma classe média superpoderosa. Estudo da McKinsey publicado em 2007 indicava que esse estrato da sociedade indiana se multiplicaria por dez até 2025, e a renda dessas famílias, por três. Tudo isso num país em que um quarto da população ainda está abaixo da linha da pobreza — ou seja, vive com menos de US$ 1 por dia. Uma contradição bem ao estilo da “incredible India”, a expressão cunhada pelo Ministério do Turismo para fazer propaganda do país.

O TIRO SOCIALISTA SAIU PELA CULATRA — A história explica boa parte do apreço dos indianos pelo mercado de ações. O tino para o comércio e a especulação está na gênese dos homens de negócios que, durante as primeiras décadas do século 19, reuniam-se sob as árvores “banyan” para comprar e vender ações de instituições financeiras e companhias de tecelagem. Há também um paradoxo e uma mãozinha do governo na origem dessa cultura. Depois de ter se tornado independente do domínio inglês, em 1947, a Índia adotou uma política socialista de controle estatal, isolamento econômico e aversão aos estrangeiros. Em 1970, o governo obrigou as multinacionais presentes no país a diluírem a participação acionária das matrizes para 40% do capital e a distribuir o restante das ações para os investidores indianos. E criou um departamento chamado Controller of Capital Issues (CCI) que, por meio de uma fórmula propositalmente perversa, estabelecia o preço das ofertas públicas dessas ações em patamar muito inferior ao valor econômico.

O que pouca gente apostaria é que várias multinacionais decidiriam aceitar a condição e ficar no país. E que seria assim, por caminhos um tanto tortos, que a Índia desenvolveria uma cultura de investimentos em ações. Sabendo do ganho certo que teriam ao comprar ações de companhias excelentes por verdadeiras bagatelas, aplicadores individuais embarcavam sem medo nas ofertas públicas. “Muita gente fez fortuna nessa época”, conta Kar. As operações não só injetaram o gosto por ações no sangue dos indianos como estimularam o desenvolvimento de uma indústria de mercado de capitais no país: banqueiros de investimento, analistas, auditores e corretores surgiram para colocar em prática o ato “socialista” do governo.

A adoração dos indianos pela bolsa de valores, contudo, sofreria um revés. Enquanto os estrangeiros aceitavam diluir suas participações para ficar na Índia, o empresariado local vivia confortavelmente numa economia controlada e com financiamento provido por bancos estatais. Até que a economia fechada estrangularia a capacidade dos bancos de emprestar e das empresas de sobreviver, deslocando para o mercado de ações, no fim da década de 80, a esperança dos empresários indianos de conseguir recursos. Sem uma estrutura regulatória para disciplinar as ofertas públicas, eles fizeram tudo o que não deviam. Prometeram aos investidores o que nunca poderiam entregar e venderam negócios que jamais existiriam. Investidores foram enganados e roubados. A cultura de aplicar em ações artificialmente criada pelas ofertas de preços controlados estava ameaçada.

Mas a economia sufocada pelo regime socialista também forçou o governo a abrir o país à entrada de capital estrangeiro. E, dentre outras medidas, a moralizar o mercado acionário. Em 1992, foi finalmente criado um órgão regulador, a Sebi, que logo estabeleceu regras para disciplinar as ofertas de ações. Emissores aprenderam a preparar prospectos e a dar transparência sobre as operações das companhias listadas. Investidores viram uma nova chance de acreditar na bolsa de valores. A “share mania” indiana logo estaria de volta.

TUDO NO PAPEL — Determinada a se provar confiável para os estrangeiros, a Sebi desenvolveu uma regulamentação de ponta para as companhias de capital aberto —preocupação que existe até hoje. Um exemplo são as regras severas de governança introduzidas em janeiro de 2006, na chamada Cláusula 49, uma norma aplicável à listagem em qualquer bolsa de valores. A cláusula exige que uma companhia com a mesma pessoa nos cargos de presidente executivo e presidente do conselho tenha ao menos 50% do conselho composto de membros independentes. Se o CEO e o chairman forem diferentes, esse percentual cai para 33%. Os comitês de auditoria são obrigatórios e devem ter ao menos metade de independentes, além de um especialista financeiro. Transformar o que está no papel em realidade, porém, é bem mais difícil do que a Sebi gostaria. Aprimorar a governança de acionistas controladores, conselheiros e executivos é um dos maiores desafios para o mercado de capitais da Índia hoje.

Os esforços para atrair os investidores estrangeiros deram certo. Em 2007, eles atingiram US$ 103 bilhões em ações de companhias indianas, contra US$ 17 bilhões no início de 2001. Ainda assim, não desbancaram os investidores individuais do posto de maiores proprietários das companhias, depois dos acionistas controladores. Dados da Sebi de junho de 2008 mostravam que, do total de ações que formavam o capital das empresas abertas indianas, 51,63% pertenciam aos controladores (normalmente, os fundadores), 12,86% a aplicadores individuais, e 9,94% aos investidores estrangeiros. A incipiente indústria local de gestão de recursos detinha a menor fatia: 3,17%. A supremacia do varejo no mercado de ações é muito bem vista pelo presidente da NSE: “Em tempos de crise financeira global, enquanto os investidores estrangeiros estão vendendo, os indianos estão comprando. Isso traz estabilidade para o nosso mercado”, afirma Narain.

O ambiente favorável estimula as empresas a abrirem o capital. Este ano, um dos piores dos últimos tempos devido à crise financeira, a NSE já contabiliza sete IPOs, quase todos vendidos ao melhor preço da faixa sugerida pelos bancos coordenadores. Em 2008, a Índia registrou 36 ofertas iniciais de ações. No ano anterior, quando o Brasil atingiu o seu apogeu com 64 IPOs, a Índia bateu a marca de 95 operações. “Temos levantado entre US$ 8 bilhões e US$ 10 bilhões com ofertas iniciais de ações nos últimos cinco anos”, calcula Narain. A Índia possuía, em julho, 4.937 companhias listadas, o segundo maior mercado do mundo em número de empresas depois dos Estados Unidos (Nasdaq e Nyse somam 6.028 companhias). E os americanos que se cuidem. Orgulhosos de seus números quase sempre gigantescos, os indianos adoram um primeiro lugar.

Governança do céu ao inferno

A Índia é um lugar de extremos, e o seu ambiente corporativo não é diferente. Apesar de a regulamentação exigir rígidas práticas de governança, é sabido que a expressiva maioria das companhias listadas apenas “marcam caixinhas” para se adequar às normas, sem um compromisso real com governança. A dura realidade ficou evidente no começo deste ano, quando o fundador da gigante Satyam, prestadora de serviços de informática, renunciou ao admitir ter maquiado balanços e inflado lucros. Transações realizadas por seus filhos com outras empresas da família desviaram recursos da Satyam sem que os acionistas minoritários enxergassem o rombo.Ao mesmo tempo em que as más práticas prevalecem, algumas companhias se esforçam para ser imbatíveis em boa governança. “Temos cerca de 50 empresas que adotam as melhores práticas do mundo”, diz o presidente da NSE, Ravi Narain. Uma das mais respeitadas desse grupo é a companhia de TI Infosys, que não deixa dúvidas sobre sua preocupação em se diferenciar.

A companhia publica balanços em oito contabilidades distintas. Além do US Gaap — a Infosys está listada na Nasdaq — e do padrão internacional (o IFRS), produz suas demonstrações financeiras na linguagem de Reino Unido, Alemanha, Austrália, Canadá, França e Japão. “Investidores são como consumidores. Eles gostam de ver a contabilidade na própria língua”, justifica V. Balakrishnan, diretor financeiro da companhia. Além das demonstrações financeiras tradicionais, a Infosys faz questão de divulgar o demonstrativo de Economic Value Added (EVA). Seus resultados vão a público apenas duas semanas após o encerramento do trimestre. Para que os investidores de varejo tenham acesso rápido à informação, um canal de TV transmite uma entrevista ao vivo com os administradores logo após o arquivamento na Sebi. A Infosys também aderiu ao pedido da Securities and Exchange Commission (SEC) norte-americana para que companhias entregassem voluntariamente seus balanços na linguagem interativa XBRL.

As contas da empresa no banco são divulgadas aos investidores para que eles possam checar se o valor reportado no caixa está mesmo lá. A assembleia anual, realizada na sede da companhia, em Bangalore, reúne cerca de 3,3 mil acionistas e é transmitida ao vivo para os investidores que ficam em Mumbai. A companhia adere às práticas recomendadas por sete códigos de governança, dentre eles o da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Euroshareholders Corporate Governance
Guidelines 2000.

A última captação feita pela Infosys no mercado de ações foi em 1999, quando listou-se na Nasdaq. Nenhuma aquisição usando as próprias ações foi realizada ou está em vista. “Buscamos um crescimento orgânico”, diz o executivo. Por que, então, tanto esforço para se diferenciar aos olhos dos investidores? “Queremos ter uma marca respeitada em todo o mundo e achamos que a governança é fundamental para isso”, diz Parvatheesam Kanchinadham, secretário de governança. Os fundadores detêm hoje 16,5% do capital da companhia, integralmente formado por ações com voto. Investidores estrangeiros possuem 34,8%, e o varejo indiano, 16%. (S.A.)


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