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Teste de fogo
Problemas da Lei 11.101 afloram com a entrada de milhares de companhias em recuperação judicial
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Ilustração: Marco Mancini/Grau180.com

O tom é de desabafo. “Quando começamos o processo de recuperação judicial, acreditávamos que tínhamos condições de fazer tudo de forma ágil. Mas o sistema é lento e ineficiente. As chances de recuperação vão se tornando diminutas.” A declaração, feita por um ex-executivo da OAS, ilustra como os ânimos dos envolvidos num processo de recuperação judicial (RJ) se abatem ao longo do caminho. Também evidencia a distância da Lei de Recuperação e Falência, de número 11.101, do estado da arte. Em vigor há dez anos, ela enfrenta hoje o seu mais duro teste. E o resultado desse desafio pode ser a reformulação de alguns de seus dispositivos.

Se antes o clube da RJ era composto principalmente de pequenas e médias empresas, agora são as grandes companhias e os grupos econômicos que passam a se valer da Lei 11.101/05 para escapar do precipício. Muitas são de capital aberto, o que torna o processo ainda mais complexo — e com repercussão em um maior número de financiadores, tanto acionistas quanto credores. “Jamais o envolvimento das grandes empresas nos processos de RJ foi tão grande”, observa Carlos Henrique Abrão, presidente do Instituto Nacional de Recuperação Empresarial (Inre) e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Dada a crise de grandes proporções que atinge o País, nunca foi tão urgente a necessidade de reformar não só a lei, mas todo o ambiente relativo à RJ.

Nos nove primeiros meses deste ano, os pedidos de RJ dobraram em relação ao mesmo período do ano passado (de 585 para 1.177), de acordo com dados do Inre. E se antes a proporção era de oito empresas de pequeno e médio porte para duas de grande porte, agora a divisão é meio a meio. O número de falências também aumentou. Foram 1.083 casos entre janeiro e agosto deste ano, contra 635 em igual período de 2014.

A onda de dificuldades também deu um caldo em companhias com ações negociadas na BM&FBovespa: são hoje 21 em RJ. Figuram na lista empresas do grupo X (OGX, OSX e Eneva), Lupatech, Mangels, Inepar, Rede Energia, entre outras. A Operação Lava Jato também ajudou a aumentar o conjunto de grandes companhias cambaleantes. Uma delas é a OAS, empresa não listada em bolsa, mas que usava bastante o mercado de capitais para se financiar. Hoje, nove empresas do grupo estão em recuperação judicial.

Corrida contra o tempo

A OAS era uma emissora frequente de debêntures e bonds. Ao todo, possuía cerca de 600 credores financeiros, somando os detentores desses títulos e também instituições financeiras que concederam capital de giro e bancos de fomento nacionais e estrangeiros.

De acordo com o ex-executivo da empreiteira, um dos principais obstáculos da jornada pelo universo da RJ foi o tempo. A contar do deferimento do pedido, as empresas têm 60 dias para entregar um plano de reestruturação e, simultaneamente, 150 dias para aprová-lo em assembleia de credores. Durante seis meses, também contados do deferimento, a companhia fica livre de pagar obrigações incluídas no processo de RJ, o que lhe dá fôlego para se dedicar à discussão do plano e renegociar as dívidas. Porém, como o prazo é exíguo e a perda do limite de 60 dias implica decretação de falência, é comum as empresas entregarem planos mal elaborados, dificultando a análise por parte dos credores. Enquanto isso, ações e demais títulos apanham no mercado secundário.

Também é usual os planos sofrerem aditamentos ou reformulações antes de serem levados a assembleia para aprovação. Se os credores rejeitam os termos propostos, a companhia vai à falência. A consequência disso é que as empresas só colocam os planos sob votação se tiverem certeza de uma resposta positiva. O desafio é persuadir todos os credores nos 150 dias previstos pela lei de RJ: “A OAS tem muitos credores, em diversos países, e com diferentes tipos de subordinação da dívida”, explica o ex-executivo. “Para cumprir o prazo, é necessário acelerar o processo de tal forma que a empresa fica em condições ainda mais desvantajosas para negociar”, critica. Diante disso, ele defende uma reformulação da lei, de modo que haja mais tempo para a negociação e a votação do plano. A mudança, observa, geraria segurança jurídica e aumentaria a capacidade da empresa de negociar.

Juliana Bumachar, sócia do Bumachar Advogados Associados, concorda: “O prazo de 60 dias para aprovação do plano e de 150 dias para votação é curto para todas as empresas, não só para as grandes”, afirma. Segundo ela, uma eventual alteração da Lei 11.101 poderia estender esses prazos. A mesma opinião tem Abrão, do Inre, que também defende mudança nesse ponto da lei.

Mordidas

O tempo não é o único inimigo num processo de RJ. A punhalada também pode vir da Receita Federal. O fisco encara o abatimento de dívida — algo que pode ser requisitado por empresas em recuperação judicial — como ganho de capital e o tributa à alíquota de 34%. O problema é que, para uma empresa com caixa minguado, o valor pode ser um ultraje. “Que sentido faz criar uma lei para permitir a solvência das empresas se o próprio governo impõe dificuldades fiscais, reduzindo as chances de sobrevivência da companhia?”, questiona o ex-executivo da OAS. Não faz sentido, argumenta, os credores abrirem mão de receber integralmente seus recursos num processo de RJ e o governo não.

Segundo Thomas Felsberg, sócio do Felsberg Advogados, a falta de harmonia entre as regulamentações de vários órgãos governamentais e a Lei 11.101 é um ponto que requer atenção — e uma ação mais ampla, que não se extingue na reforma do texto. Por isso, o advogado, um dos maiores especialistas em RJ do Brasil, defende a adoção de um plano nacional de recuperação de empresas, a exemplo do Plano Nacional de Desestatização.

Outro problema da Lei 11.101 é o fato de excluir os empréstimos feitos com alienação fiduciária do rol de créditos negociáveis no plano de recuperação. Hoje, quando a companhia entra em RJ, perde automaticamente a posse do ativo para o banco que concedeu esse tipo de crédito, chamado de extraconcursal. Essa situação faz com que muitas empresas caminhem para a recuperação praticamente sem bens. “Uma má candidata para entrar em RJ é a empresa com muitos créditos extraconcursais. E uma boa candidata é aquela que tem outras modalidades de empréstimo”, avalia Renato Maggio, sócio do Machado, Meyer. Domingos Refinetti, advogado do Stocche Forbes, concorda: “Os bancos acabam comprometendo a recuperação da empresa quando dão empréstimos com garantia de alienação fiduciária de ativos”, afirma o sócio do escritório.

A lei, contudo, teve boa intenção ao excluir esses créditos da RJ. O objetivo era estimular a diminuição do spread bancário, uma vez que os bancos conseguiriam recuperá-los mais facilmente. Mas, como diz a sabedoria popular, de boas intenções o inferno está cheio. A almejada redução não aconteceu, e o que era para ser algo benéfico virou um empecilho para as companhias escaparem do buraco. “A exclusão desses créditos foi um erro grave da lei”, critica Luís Vasco, líder de reorganização de empresas da Deloitte. Por isso, os especialistas fazem coro ao dizer que uma reformulação do diploma deveria incluir esses créditos na recuperação judicial.

Se antes o clube da recuperação judicial era composto principalmente de pequenas e médias empresas, agora são as grandes que passam a se valer da Lei 11.101/05 para escapar do precipício

Essa mudança poderia até acarretar uma transformação no comportamento dos bancos. Protegidas por esses dispositivos, muitas instituições financeiras sequer se sentam à mesa para negociar e mantêm posturas duras. Assim como o fisco, não fazem concessões, contrariando o espírito da Lei 11.101, que prevê que cada tipo de credor abra mão de parte do que lhe é devido, com o intuito de recuperar a empresa e evitar cortes de empregos. “Ouvimos do alto escalão de grandes bancos: se vocês entrarem em RJ, nunca mais fazemos negócios com vocês”, conta o ex-funcionário da OAS. A razão para essa postura é, em grande parte, cultural, mas também financeira. E a causa mais uma vez é a desarmonia da Lei 11.101 com a norma de órgãos do governo. Pela regulamentação do Banco Central, as instituições financeiras precisam provisionar 100% dos empréstimos concedidos para empresas em RJ, o que torna o negócio antieconômico.

Esse argumento não convence o antigo executivo da OAS: “Se a empresa falir, os bancos também terão que provisionar 100%. Na RJ, ainda existe a possibilidade de a companhia se reerguer e de as provisões serem revertidas”, pondera. Para ele, os bancos poderiam se unir para evitar falências e RJ intermináveis, contribuindo para a salvação das empresas. Isso não significaria ter que abrir as torneiras de dinheiro novamente, mas criar um ambiente propício para a negociação. Ele dá um exemplo: as empreiteiras precisam apresentar cartas de crédito como garantia dos contratos (geralmente de 10% do valor da obra) e renová-las anualmente. Na sua visão, as instituições financeiras já ajudariam se garantissem a renovação desses documentos.

Esse apoio não veio para a OAS. Muito pelo contrário. A dívida em dólar do grupo era de aproximadamente US$ 2 bilhões, totalmente coberta por hedge (feito na época em que a moeda americana estava cotada a R$ 2,80). Quando as nove empresas do grupo entraram em RJ, os bancos desfizeram a proteção (possibilidade prevista em contrato), o que praticamente dobrou a dívida em reais.

Empréstimo controverso

A venda de ativos de uma companhia em recuperação judicial — ainda mais se feita paralelamente a um DIP (debtor in possession) — também pode amplificar a confusão. Pela lei, empresas em RJ devem se desfazer de ativos por meio de leilão, para que a concorrência se encarregue de garantir o preço mais alto e para que os ativos fiquem blindados contra a sucessão de dívidas.

A OAS Investimentos planeja vender sua participação de 24% na Invepar, detentora da concessão do aeroporto de Guarulhos. Uma possível compradora no leilão é a gestora canadense Brookfield Infrastructure, que, paralelamente, pode conceder um DIP de R$ 800 milhões à OAS. Pela lei, quem concede esse tipo de financiamento obtém privilégios frente aos demais credores. A vantagem é a garantia de prioridade no recebimento em caso de falência da companhia, embora alguns considerem esse atrativo insuficiente. “Essa garantia é fraca para atrair novos credores, até mesmo porque eles não desejam que a empresa quebre”, explica André Schwartzman, líder do setor de reestruturação da KPMG. Além disso, ressalta, o DIP sofre com a insegurança jurídica. Se a companhia sobrevive, os créditos extraconcursais são pagos primeiro, e o recebimento dos recursos pelos chamados DIP lenders é incerto.

Mas, no caso da OAS, o DIP oferece ainda um privilégio extra: a Brookfield tem o direito de cobrir qualquer proposta no leilão de venda da Invepar pagando 1% a mais. Caso perca, o comprador tem que restituir o valor do DIP para a gestora canadense, além de uma penalidade de 5%. Vale ressaltar que, em caso de calote do debtor in possession, a Brookfield já tem direito a 18% da Invepar, de acordo com os termos estebelecidos.

Defensor de um grupo de debenturistas contrários a essa estrutura de financiamento, Bruno Poppa, do Tepedino Advogados, critica a operação, já que ela afasta outros concorrentes. Segundo ele, os credores também reclamam do fato de terem sido informados pela imprensa sobre o DIP e de a operação ter sido fechada antes da entrada do pedido de RJ. “Não houve transparência”, diz.

Com tanta controvérsia, as reclamações foram parar na Justiça. Após algumas idas e vindas, o empréstimo foi autorizado em setembro em segunda instância, mas mediante algumas condições. Ficou definido que a OAS terá acesso a R$ 200 milhões por meio do debtor in possession (os R$ 800 milhões seriam usados ao longo de dois anos, portanto se entendeu que a empresa não tem necessidade imediata de todos esses recursos). A liberação do restante do dinheiro dependerá da comprovação de que precisa de mais capital.

A lei diz que a venda de ativos importantes deve ser aprovada pelo comitê de credores ou pelo juiz que comanda a RJ. No caso da OAS, esse órgão não foi instalado. Agora, o juiz entende que a decisão deverá ocorrer na assembleia de credores, e que as vantagens previstas no leilão não podem ser conferidas automaticamente, como condição do DIP. Até o início de outubro, a OAS havia falhado duas vezes em instalar a reunião. Uma por falta de quórum; outra porque os credores pediram mais tempo para analisar o plano de reestruturação, que fora reapresentado na ocasião. No dia 14 de outubro, a companhia fez uma nova tentativa, mas novamente o prazo foi estendido (para o dia 3 de novembro), pois os credores não chegaram a um acordo sobre as condições de venda da Invepar.

Mais poder ao credor

Dada a posição de desvantagem dos credores — afinal, é a companhia devedora que elabora todo o plano de recuperação judicial —, os advogados consideram que eles deveriam ter mais voz no processo, inclusive para solicitar o ingresso no programa de RJ. Hoje, eles apenas podem negociar o plano proposto pela companhia e aprová-lo ou não. A mudança poderia ser positiva para as empresas. É comum elas aventarem a recuperação judicial apenas quando estão praticamente insolventes e, muitas vezes, sem ativos para operar. Essa situação, afirmam especialistas, poderia ser prevenida se o credor pudesse se antecipar, pedindo a RJ enquanto é tempo.

Aqui cabe uma atenção especial às empresas que têm capital aberto: “Os administradores possuem dever de diligência e deveriam saber puxar o freio de mão, requerendo a RJ na hora certa”, considera Antonio Mazzuco, sócio do MHM Advogados. Para ele, falta conhecimento aos administradores sobre a recuperação judicial. Porém, diante do número crescente de companhias em dificuldade financeira é pouco provável que essa alienação permaneça. E com mais gente dominando e testando a lei, aumentam as chances de as fragilidades serem expostas e de uma reformulação acontecer. Esse pode ser o lado positivo de um cenário em que mais uma tonelada de empresas tenta escapar da bancarrota.

Leis de recuperação e das S.As. não conversam

Dificuldades adicionais prejudicam as companhias abertas durante o processo de RJ. Uma das preocupações dos administradores diz respeito à transparência sobre a renegociação de dívidas. Decidir como agir nesse caso é uma sinuca de bico. Se a companhia decide não divulgar a informação e ela vazar, pode ser questionada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por não ter divulgado fato relevante. Também corre o risco de dar ensejo a um caso de negociação privilegiada de seus papéis (insider trading). Se, de outro lado, opta por comunicar a renegociação, pode acelerar ou tornar inevitável a RJ, ao aumentar a pressão por parte dos credores.

Para Eduardo Munhoz, sócio do E.Munhoz Advogados, a CVM poderia resolver a questão esclarecendo em qual momento a companhia deve revelar o início de uma renegociação. Também seria útil estabelecer um período para a renegociação ocorrer. Durante esse prazo, afirma o advogado, a publicação de fato relevante poderia ficar temporariamente suspensa. “O problema é que a Lei de RJ não lidou de forma expressa com as companhias abertas”,
observa Munhoz.

Uma mostra disso é a participação diminuta dos acionistas minoritários durante o processo de RJ. Eles não têm voz nenhuma. Resta-lhes a aprovação em assembleia de acionistas, geralmente realizada após a entrada do pedido na Justiça.

Nos Estados Unidos, a situação é diferente. A lei americana considera os acionistas como uma classe com direito a voto na assembleia de credores. Na opinião de Munhoz, essa prática poderia ser adotada no Brasil, numa reforma da Lei de RJ. Isso porque, mesmo figurando no fim da lista de prioridades por eventuais créditos a receber, os minoritários são partes interessadas.

Os desafios são ainda maiores para as companhias sem acionista controlador: a Lei 11.101 diz que o pedido de RJ deve ser feito por essa figura. Na falta dela, é necessário provar ao juiz que ninguém detém o controle — e essa demonstração pode não ser simples, pois os próprios agentes do mercado com frequência discutem a definição de acionista controlador. Munhoz observa que, em companhias com capital pulverizado, a participação dos acionistas pode tornar-se ainda mais irrelevante. Se o estatuto não estabelecer que a decisão de entrar em RJ deve ser deliberada pelo conselho de administração ou pela assembleia de acionistas, ela acaba sendo tomada pela diretoria. (L.D.C)


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