Prospectos podem mentir
Ao absolver acusados em processo contra a Petrobras, CVM transfere ao investidor insegurança jurídica
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

No último dia 11 de julho, o então presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Leonardo Pereira participou de uma sessão de julgamento no colegiado da autarquia que trouxe à tona uma sinalização preocupante: a de que as companhias podem mudar de entendimento em relação a direitos apresentados no prospecto de oferta de ações. O aval simbólico — que pode transferir insegurança jurídica para os investidores — veio da absolvição, por unanimidade, dos acusados em um processo aberto pela Superintendência de Relações com Empresas (SEP) para apurar irregularidades no prospecto de emissão de ações da Petrobras na megacapitalização feita em 2010 [processo administrativo sancionador (PAS) nº RJ 2015/10276].

No processo, a área técnica se debruçou principalmente sobre o fato de o prospecto não informar de forma adequada os investidores a respeito da dinâmica da concessão extraordinária do direito de voto aos preferencialistas. Apesar das bem fundamentadas acusações feitas pela SEP, o colegiado absolveu os acusados: a Petrobras, seus ex-presidentes José Sérgio Gabrielli e Maria das Graças Foster e o ex-diretor de relações com investidores da companhia Almir Barbassa; o Bradesco BBI (líder do consórcio de distribuição pública das ações) e Bruno Boetger, um de seus diretores à época da operação. Votaram na sessão de julgamento, além de Pereira, os diretores Pablo Renteria (relator) e Henrique Machado. Não participou o diretor Gustavo Borba.

Negativa recorrente

Em processos anteriores, a CVM já havia avaliado pedidos de concessão de direito de voto feitos à Petrobras por acionistas preferencialistas, cujas ações não incluem esse direito. Eles alegavam que o direito de voto deveria ser concedido em razão da falta de distribuição de dividendos, conforme estabelece o artigo 111 da Lei das S.As, e também que a ausência de previsão no estatuto da companhia faria com que esse direito surgisse depois de um ano. A Petrobras recusou, apoiando-se no fato de a Lei do Petróleo — Lei 9.478/97, que orienta atividades da estatal — excluir essa possibilidade. A CVM concluiu que a empresa tinha razão, considerando que a Lei do Petróleo é uma lei específica e que, por isso, afasta a aplicação da Lei das S.As.

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Essa solução não é óbvia para investidores, por não ser a Lei do Petróleo muito conhecida. Mas, em situações como essa, espera-se que o prospecto tenha informações claras, suficientes para orientá-los. Especificamente no caso da capitalização de 2010 da Petrobras, o prospecto não incluía a disposição da Lei do Petróleo a respeito do direito de voto. Em vez disso, o documento dizia que preferencialistas teriam direito de voto “(…) em circunstâncias especiais, incluindo na eventualidade de deixarmos de pagar a esses acionistas o dividendo mínimo prioritário a que fazem jus, de acordo com o nosso estatuto social, por três exercícios consecutivos”. Em outras palavras, o prospecto prevê um direito que, pela Lei do Petróleo, não poderia existir. Além disso, afirma que esse direito depende da ausência de distribuição de lucros por três anos, embora o estatuto social da empresa não diga nada sobre isso.

Para a área técnica da CVM, essa postura da Petrobras enganou investidores, com prejuízo à confiança do mercado.

 Copia-e-cola

A Petrobras foi acusada de violar o art. 56 da Instrução 400/03, por ter deixado de fornecer informações verdadeiras e consistentes em seu prospecto. A crítica da SEP foi bastante contundente: “Claramente, trata-se de um texto copiado acriticamente de outros documentos, sem o cuidado da companhia em melhor informar os seus investidores”.

“Claramente, trata-se de um texto copiado de outros documentos, sem o cuidado em melhor informar os investidores”.

Em relação ao então diretor de relações com investidores da Petrobras (Barbassa), a acusação acrescentou que ele igualmente falhou na elaboração do formulário de referência. Já Gabrielli e Graça Foster declararam que, cumprindo uma exigência da regulação à época, revisaram o formulário de referência, atestando que estava adequado. Essas declarações, aliadas ao fato de o erro ser relevante, justificaram a acusação.

Por ter atuado como líder do consórcio da distribuição das ações, o Bradesco BBI era o responsável pelas informações contidas no prospecto. A área técnica reconheceu que o banco não estava encarregado de dar uma “resposta definitiva” sobre controvérsias, mas que, ainda assim, deveria ter notado o problema e tomado as medidas cabíveis. O diretor Boetger também foi incluído na acusação, por infração do art. 56-A da Instrução 400/03.

Se a CVM não viu…

O diretor do Bradesco BBI foi o primeiro a apresentar sua defesa, em que narrou um fato interessante. Segundo ele, por 15 anos a Petrobras informou os investidores preferencialistas que teriam direito a voto caso os lucros não fossem distribuídos, mas reagiu de maneira oposta ao divulgado quando efetivamente os preferencialistas passaram a exigir o cumprimento do prometido (o direito a voto). Com base nessa ideia de que a promessa da Petrobras era pública e amplamente conhecida, a defesa sustentou que o diretor do banco agiu de forma diligente, respeitando o entendimento que a Petrobras tinha à época da elaboração do prospecto.

Além disso, a defesa destacou que a própria CVM, ao longo desses 15 anos, não identificou problemas no fato de a Petrobras divulgar que os preferencialistas teriam direito a voto. Esse argumento é persuasivo e pode ser assim resumido: se a autarquia não notou problemas no prospecto, por que o diretor do banco deveria ter notado?

Quando o conteúdo do direito é incerto, não seria adequado conferir ao prospecto a tarefa de estabilizar a interpretação?

De forma complementar, a defesa informou que o diretor não tem formação jurídica (“não é advogado”) e alegou que ele não tomou providências porque não foi suscitada controvérsia sobre esse ponto do prospecto. Esse argumento se baseia na chamada “business judgment rule”: o diretor diz ter agido de forma condizente com o seu cargo e a sua formação, seguindo os conselhos e respondendo aos alertas de sua equipe. A peça de defesa observou ainda que os investidores compram ações atraídos por vantagens econômicas, desconsiderando os direitos políticos. Assim, o direito a voto não seria algo pertinente, e uma falha em relação a ele não justificaria uma responsabilização.

O Bradesco BBI, por sua vez, afirmou que sua obrigação na operação era de meio, e não de resultado. Isso significa que deveria exercer a sua função de acordo com os parâmetros de diligência, mas não responder pela qualidade do resultado final do trabalho. Seguindo essa linha, a defesa argumentou que o problema no prospecto não era óbvio para os acionistas, tampouco para a equipe do banco. O que a defesa quis dizer com isso é que problemas como esse ocorrem, apesar de o banco ter agido de forma adequada. Para reforçar a interpretação de que atuou de forma diligente, o banco ressaltou ter contratado assessoria especializada no tema — e ter confiado no parecer elaborado.

Em uma linha semelhante à adotada pelo diretor do Bradesco BBI, as defesas da Petrobras e de seus executivos afirmaram que a elaboração do prospecto suscitou diversas discussões, mas que a possibilidade de voto pelos preferencialistas não esteve entre as polêmicas. Os ex-diretores disseram não ter culpa no erro do prospecto e que a informação sobre o direito de voto não era relevante para a tomada de decisão dos investidores.

A Petrobras reafirmou esses pontos de defesa. Além disso, ressaltou que as hipóteses de concessão de direito de voto informadas no prospecto de 2010 refletiam o entendimento da companhia na ocasião, modificado apenas em 2015. Com isso, a Petrobras alegou ter sido “sincera” na elaboração do prospecto — não agiu de má-fé, com intenção de ludibriar seus investidores.

A defesa do diretor de relações com investidores foi semelhante. Como a legislação enfatiza a responsabilidade que o ocupante desse cargo tem em relação ao formulário de referência, a defesa desenvolveu um pouco mais detalhadamente esse ponto, mas sem apresentar argumentos novos em comparação com as outras defesas.

Leis conflitantes

O colegiado da CVM iniciou o julgamento abordando uma questão específica: ser errado ou não divulgar que o direito a voto dependia do transcurso de três anos sem distribuição de dividendos em uma situação que o contrato social não dizia nada sobre o assunto. Os integrantes da mais alta instância de decisão na CVM concluíram que, no caso em análise, a posição era razoável e fundamentada, compatível com uma atuação diligente da companhia. Para reforçar essa interpretação, a decisão ressaltou que a companhia atuou sob orientação de parecer jurídico externo.

Mas o ponto mais polêmico foi a decisão sobre a aplicabilidade da Lei do Petróleo vis-à-vis o art. 111, §1º da Lei das S.As. O voto sustentou que a redação original da Lei 2.004/53 (equivalente, no que nos interessa nessa discussão, à atual Lei do Petróleo) não excluía expressamente um artigo legal semelhante ao art. 111, §1º da Lei das S.As. — a Lei 2.004/53 foi alterada exatamente para que dela passasse a constar a exclusão expressa. Em um terceiro momento, com a edição da Lei do Petróleo, foi adotada a redação original da Lei 2.004/53.

Com isso, o voto do colegiado constrói um argumento com os seguintes pontos:

— apesar de dizer que preferencialistas não tinham direito a voto, a redação original da Lei 2.004/53 possibilitava a interpretação de que um dispositivo semelhante ao art. 111, §1º da Lei das S.As. fosse aplicável em seu lugar, o que na prática concedia o direito a voto;

— isso seria verdade porque a Lei 2.004/53 foi alterada para excluir essa possibilidade de intepretação;

— como a Lei do Petróleo adota a redação original da Lei 2.004/53, temos que, atualmente, é possível interpretar que a Lei das S.As. deve ser aplicada no lugar da Lei do Petróleo.

Fundamentado nessa avaliação, o colegiado concluiu que a informação dada pela Petrobras no prospecto em análise foi resultante de uma interpretação razoável das normas jurídicas. Essas razões também sustentaram a absolvição do Bradesco BBI e de seu diretor. O voto do colegiado igualmente aderiu à linha de defesa do banco para registrar que ele não deve ser punido em função de informações ratificadas por conselho especializado externo, caso inexistam indícios de maiores problemas.

Uma crítica

O ponto mais discutível da decisão gira em torno do seguinte artigo da Lei do Petróleo:

Art. 62. A União manterá o controle acionário da Petrobras com a propriedade e posse de, no mínimo, cinquenta por cento das ações, mais uma ação, do capital votante.

Parágrafo único. O capital social da Petrobras é dividido em ações ordinárias, com direito de voto, e ações preferenciais, estas sempre sem direito de voto, todas escriturais, na forma do art. 34 da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976.

É razoável concluir que esse artigo pode ser afastado pela previsão do art. 111, §1º da Lei das S.As.? Com um pouco de boa vontade, podemos aceitar que os acusados sabiam da existência da Lei do Petróleo e decidiram que, apesar do conteúdo do art. 62, a Lei das S.As. tinha mais força. O problema dessa linha de pensamento é que as alterações da Lei 2.004/53 — premissa que fortalece esse argumento — não foram suscitadas pelas defesas. Há outro problema de ordem lógica: se é aceitável concluir tanto pela possibilidade quanto pela impossibilidade de aplicação da Lei do Petróleo, por que a companhia conscientemente adotaria a posição que menos lhe favoreceria (lembrando que, segundo as defesas, direitos políticos não são relevantes para os investidores)?

Aceitando que ambas as interpretações são possíveis e compatíveis com o agir diligente dos acusados, surgem ainda outros problemas. Mesmo que ambos os entendimentos sejam legítimos, devemos tolerar que a companhia mude de posição sem maiores consequências? Essa questão é importante, especialmente considerando que a Petrobras mudou sua postura depois que investidores fizeram reivindicações perante a companhia.

Se a resposta for positiva, como parece sinalizar a CVM, teremos que dúvidas sobre o direito abrem margem para companhias alterarem suas posições. Levando-se em conta que há muitas discussões sobre as normas jurídicas, essa margem é considerável. Em outras palavras, ao deixar de responsabilizar a companhia pela mudança de entendimento em relação ao apresentado no prospecto, a CVM transfere aos investidores os custos da incerteza jurídica.

Quando o conteúdo do direito é incerto e envolve o interesse dos investidores, não seria mais adequado conferir ao prospecto a tarefa de estabilizar a interpretação? Ainda que a companhia possa corrigir suas posições, os pedidos não deveriam ser julgados confiando-se nos entendimentos divulgados à época da realização dos investimentos? Essas perguntas são importantes e a CVM terá dificuldades em oferecer respostas satisfatórias e, ao mesmo tempo, defender a decisão do colegiado nesse emblemático julgamento.


*Ezequiel Fajreldines dos Santos ([email protected]) é mestrando em direito e desenvolvimento na Escola de Direito de São Paulo da FGV


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