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Desacerto de contas
O embate ideológico e o caos operacional criados pela lei que mudou as regras para tributação das multinacionais brasileiras

34-372Os departamentos tributários das multinacionais brasileiras, muitas delas de capital aberto, enfrentam enorme desafio. Buscam conviver com a Lei 12.973 e suas regras novas para o já controverso modelo brasileiro de tributação de lucros auferidos por controladas no exterior. A norma completou um ano em maio e é obrigatória desde janeiro. Para contrariedade das empresas, a 12.973 manteve o modelo que, para o Fisco, é o mais adequado à saúde tributária nacional: a Tributação em Bases Universais (TBU), que taxa no Brasil os resultados auferidos por subsidiárias no exterior, combinada ao sistema automático, no qual o lucro é tributado na forma como aparece no balanço, mesmo que tenha sido reinvestido e não haja distribuição aos acionistas. Não bastasse o balde de água fria, o diploma foi criativo: para definir os lucros que serão seu alvo, inventou um jogo de palavras com o qual espera encerrar anos de discussões na Justiça. O resultado foi uma revolta generalizada das multinacionais. Elas questionam, entre outros aspectos, a legalidade da incidência de impostos e a compatibilidade com os tratados internacionais que vedam a dupla tributação, firmados pelo Brasil com cerca de 30 países. Com alíquotas que somam 34%, o País aplica uma das mais altas taxas de tributação do mundo — cerca de dez pontos percentuais acima da média praticada nos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE).

A TBU foi instituída no Brasil em 1995; o modelo automático, em 2001. Nesse mesmo ano, o tema foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), em ação direta de inconstitucionalidade movida pela Confederação Nacional da Indústria. Foram 11 anos de discussões até que, em 2012, a mais alta corte do País decidiu apenas sobre um aspecto a respeito das controladas: a validade da tributação automática para aquelas situadas em paraíso fiscal. Não houve posicionamento final, contudo, para as demais situações, como quando a empresa está domiciliada em país com o qual o Brasil tem tratado de não bitributação. No ano passado, a situação clareou. Em decisão considerada emblemática, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que a mineradora Vale não é obrigada a pagar impostos no Brasil sobre o lucro auferido por subsidiárias situadas em locais com tratados, uma vez que já paga tributos lá fora. Houve comemoração das multinacionais, mas o clima de insegurança permaneceu: o julgamento saiu no mês anterior à publicação da nova lei, e ainda falta o posicionamento do STF sobre o tema.

Quando o governo colocou em discussão a Medida Provisória 627, embrião da Lei 12.973, chamou a atenção o novo nome para o objeto da mordida do Fisco. A base do imposto passou a ser a “parcela do ajuste do valor do investimento”, definida no texto como “equivalente” aos lucros auferidos pelas controladas diretas e indiretas no exterior, antes do imposto de renda. Com isso, o legislador quis dizer que não é lucro aquilo tributado no Brasil e, sim, o acréscimo patrimonial da controladora brasileira correspondente aos resultados de suas subsidiárias lá fora. Aprovado o texto, o governo considerou resolvida a questão dos tratados internacionais: uma vez que não se trata de lucro, não se pode falar em bitributação. As regras, portanto, poderiam ser aplicadas mesmo nas empresas sediadas em territórios com os quais o Brasil assinou tratado. A interpretação aflorou os nervos dos empresários. “A norma foi desenhada deliberadamente para dar status de evento tributável a uma simples variação patrimonial do investimento”, analisa Durval Portela, sócio da área de serviços de impostos internacionais da PwC.

O procurador da Fazenda Nacional Leonardo Curty rebate as críticas de que a lei brasileira teria buscado subterfúgios para burlar os acordos internacionais. Ele afirma que a TBU se equipara às regras para “controlled foreign corporation” (controladas no exterior), conhecidas pela sigla CFC e admitidas pela OCDE como não prejudiciais à aplicação dos tratados.

Originárias dos Estados Unidos, as normas CFC ganharam força a partir dos anos 1960, quando se percebeu que empresas faziam uso de paraísos fiscais para burlar o Fisco, postergando a repatriação e a distribuição de lucros. Atualmente adotadas pelas principais economias do mundo, como Estados Unidos, Alemanha e França, as regras disparam a tributação automática assim que os resultados são apurados no balanço, sem esperar pela distribuição dos lucros no país de domicílio da controladora. Porém, só são aplicadas quando há indício de abuso, como localização da controlada em paraíso fiscal e geração de renda predominantemente passiva (juros, royalties, etc). Fora dessas situações, prevalece a taxação onde os resultados foram gerados. A cobrança de tarifa sobre a controladora, quando ocorre, se dá no momento em que os recursos são repatriados e os dividendos chegam às mãos dos acionistas. Países europeus, por exemplo, têm optado por simplesmente nem tributar a matriz.

Bem diferente do que preconiza a norma brasileira, considerada genérica demais ao ferir, com um só tiro, os mal-intencionados e aqueles que lutam para manter competitivas suas atividades no exterior. “O Brasil usou o contexto internacional como justificativa, mas adotou um modelo muito peculiar, resultando na tributação automática de todo e qualquer investimento, sem considerar localização ou natureza da atividade”, critica Fernando Tonanni, sócio do escritório Machado Meyer. “Se as regras se restringissem a paraíso fiscal, não vejo problema nenhum. O Supremo também não viu. A questão é que empresas sadias estão caindo nessa vala comum”, observa Fábio Andrade, fundador do Núcleo de Estudos da Tributação Internacional (Neti). O procurador justifica a lei: “A regra brasileira visa evitar a dupla não tributação. O Brasil está exercendo legitimamente sua soberania para impedir a erosão tributária”, defende.

Menos competitivo
Há seis meses, a siderúrgica CSN contratou para a diretoria tributária Gustavo Carmona, que possui 13 anos de expe-
riência em tributação internacional. Sua missão é lidar com os efeitos da 12.973. “Nossas plantas estão na Alemanha, em Portugal e nos Estados Unidos. Isso é local de não tributação?”, contesta. E, se eventualmente houver benefício fiscal em um desses lugares, argumenta, as empresas brasileiras precisam ter o direito a se beneficiar, assim como seus competidores.

Empresários e tributaristas veem o Brasil na contramão das principais economias. Carmona cita a Inglaterra. Depois de ver empresas tirando suas sedes de lá para transferi-las a outras nações, o país eliminou as regras CFC e reduziu a alíquota do imposto de renda para 20%. Agora analisa novo corte, para 18%. Nos Estados Unidos, a revisão do sistema tributário é alvo de discussões no Congresso. A alíquota de imposto é de 35%, mas só é aplicada quando os lucros são repatriados e distribuídos. Ainda assim, nos últimos dez anos, pelo menos 50 empresas mudaram a sede para o exterior, em busca de uma carga tributária mais amena. Para conter a debandada, estuda-se um alívio nas normas CFC. “É para se pensar: se até os Estados Unidos, que introduziram o conceito, estão revendo a legislação, há alguma coisa errada no rumo que o Brasil está tomando”, diz Tonanni.

O procurador rebate. Segundo ele, a 12.973, da forma foi desenhada, é necessária justamente para o Brasil operar no mercado global. “A lei surge num momento em que se convencionou ser necessário guarnecer o País de estrutura jurídica para atuar no mercado internacional sem prejuízo das bases tributáveis.”

34-37Tributação da não renda
As novas regras para consolidação dos resultados auferidos no exterior são outro ponto que promete movimentar tribunais e setores estratégicos das companhias. Antes da lei, lucros e prejuízos de controladas indiretas eram compensados lá fora, no país de domicílio da subsidiária direta. Agora, cada resultado de empresa sob domínio indireto é trazido individualmente para o balanço da controladora no Brasil e aqui se faz a consolidação. Com isso, o governo avalia ter dado xeque-mate na estratégia de colocar holdings em paraísos fiscais ou países com os quais o Brasil estabeleceu tratado, apenas para se beneficiar de planejamento tributário.

Para que a consolidação seja aplicável, a lei faz exigências: a controlada deve ter pelo menos 80% de renda ativa própria (fruto de exploração de atividade produtiva) e não estar situada em paraíso fiscal ou em locais com regime de subtributação — aqueles com alíquota inferior a 20%. Também é preciso estar em jurisdição que tenha acordo para troca de informações tributárias com o Brasil. “São tantas restrições que é quase uma não consolidação”, opina Giancarlo Matarazzo, sócio do escritório Pinheiro Neto. Ele questiona a constitucionalidade do novo modelo. Sem a consolidação, a tributação individualizada permite que seja desconsiderado o prejuízo em determinada subsidiária e tributado integralmente o lucro em outra, gerando o que ele chama de “tributação da não renda”. “No fim do dia, o que se tributa não é o lucro. É alguma coisa que a Receita vai encontrar na conta que ela própria fez.”

Subcontas à mostra
Ao ampliar a quantidade de informações a ser detalhada e trazer tudo para o balanço da controladora, as novas regras também geram aumento de custos e de processos. Mais do que dobrou o número de itens sobre subsidiárias diretas e indiretas no demonstrativo financeiro da multinacional. De 30, agora são 61. Para chegar à variação patrimonial da matriz brasileira decorrente dos resultados das controladas, todas as informações precisam aparecer na conta de investimentos, sob a forma de subcontas, uma para cada empresa. “Executar tudo no dia a dia e operacionalizar dentro do balanço são tarefas bem dispendiosas. Quem legislou não tem noção do que é lidar com dezenas de investimentos no exterior”, reprova uma fonte que trabalha em multinacional brasileira e prefere não se identificar.

Se antes bastavam referências consideradas básicas, como dados cadastrais, posição patrimonial e resumo da demonstração de resultados, hoje é preciso acrescentar os resultados anual e acumulado, impostos pagos e retidos na fonte e a utilização de estoque de prejuízo, além de detalhes sobre a qualidade do lucro, com a proporção de renda ativa própria e passiva, conforme critérios da lei. Tudo na moeda do país de domicílio e também em reais. “Eu tenho sido saudado quando vou à área de TI [tecnologia da informação]; virei o maior cliente da turma lá”, brinca Luiz Felipe Lemos, gerente tributário da Braskem. Além das atividades no Brasil, a petroquímica tem operações nos Estados Unidos e na Alemanha. “Mais do que reunir essas informações, é preciso desenvolver um sistema capaz de organizar tudo. É um desafio que demanda tempo e investimento.” Entre 2015 e 2016, a Braskem vai investir R$ 1,5 milhão em TI e consultoria, um aumento de 30% no orçamento da gestão fiscal. Até o fim do ano, uma nova unidade deverá entrar em operação no México. Com isso, 40% das operações estarão baseadas no exterior. Lemos informa que a nova lei não interferirá nos planos de expansão da companhia; contudo, certamente terá impacto sobre a competitividade. “Vamos arrastar um custo Brasil maior.”

Acerto de ponteiros
A expectativa é que tempo e diálogo ajudem a encontrar um modelo capaz de conciliar interesses do Fisco e das multinacionais brasileiras. “Tenho a tendência de olhar o copo sempre meio cheio. Minha esperança é que o volume de informações gerado pela lei desperte na Receita Federal a conclusão de que grande parte das atividades lá fora não tem fins escusos”, diz Portela. O procurador Leonardo Curty pondera que, além das multinacionais bem-intencionadas, há inúmeras ações no Judiciário em que o questionamento diz respeito exclusivamente a subsidiárias em paraísos fiscais, sem atividade operacional. “Vários casos mostram que nem sempre uma controlada no exterior tem tão boa-fé assim.” Para Carmona, da CSN, a solução passa por acertar a pontaria da legislação. “Se as regras são bem definidas, conseguimos trabalhar com mais segurança e, aí sim, focar os abusos. Bahamas é estranho? Vamos atrás de Bahamas. Agora, deixa a minha Alemanha gerar lucro.”

Ilustração: Marco Mancini/Grau180.com


gLucros no exterior foi o tema do segundo encontro do Grupo de Discussão Tributação, realizado em maio, em São Paulo. Veja mais aqui.


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