O lado feroz da CVM
Caso Vórtx levanta críticas à autarquia quanto ao uso abusivo de medida cautelar para suspensão de atividades
Ilustração de um rosto metade tigre e metade gato

Ilustração: Rodrigo Auada

O segundo ano do mandato do presidente Marcelo Barbosa mal começou e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já se vê numa saia justa. Recentemente, a autarquia utilizou-se de uma prerrogativa legal para punir participantes do mercado de maneira preventiva — ou seja, antes da instauração de um processo administrativo sancionador (PAS) — e, com isso, causou enorme rebuliço. A punição foi dada a quatro empresas — Venture Capital Investimentos (VCI), Orla DTVM, LFRating e Vórtx. Elas foram proibidas de atuar, por um ano, em operações no âmbito da Instrução 476, que trata das emissões públicas com esforços restritos de venda, depois de a área técnica ter encontrado irregularidades numa oferta de 100 milhões de reais em debêntures iniciada pela VCI em 18 de agosto de 2017. A decisão da CVM saiu de reunião extraordinária do colegiado de 19 de julho passado e ficou registrada na Deliberação 796.

Inédita para casos envolvendo ofertas públicas de valores mobiliários pela Instrução 476, a determinação do regulador de afastar empresas do mercado sem a instauração de PAS — conhecida como “stop order” no glossário da autarquia — surpreendeu pelo seu rigor, mas esse não foi o único aspecto inesperado da história: em 31 de julho, pouco depois da suspensão, o colegiado voltou atrás na punição dada à Vórtx. Segundo a Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE), a empresa, ao exercer a função de agente fiduciário, falhou na verificação das informações relativas às garantias da oferta, que angariou recursos para a construção de uma unidade da rede Hard Rock Hotel no Ceará.

Atendendo a um pedido de reconsideração feito pela empresa em 23 de julho — cujos argumentos, aliás, foram quase integralmente refutados pela área técnica da autarquia —, o colegiado chegou à conclusão de que exagerou na dose ao determinar a suspensão da Vórtx em uma primeira avaliação. A mudança de postura, cabe destacar, não significa que o agente fiduciário tenha convencido a CVM de sua inocência. O mea-culpa do regulador tem a ver especificamente com o uso da medida cautelar sem a parcimônia necessária. Na ata da reunião em que foi aceito o pedido da Vórtx (e da qual saiu a Deliberação 798, de 1º de agosto), o colegiado reconheceu que o poder da CVM de proibir a prática de determinados atos por participantes do mercado, no âmbito de sua competência legal para estabelecer medidas cautelares, tem caráter excepcional e que o uso do instrumento deve ser feito quando houver um “conjunto de evidências que demonstre a prática reiterada de irregularidades pelo participante, indicando um padrão no seu comportamento”. No caso da Vórtx, a investigação da SRE não comprovou nada nesse sentido. Desse modo, embora haja “indícios consistentes de falta de diligência por parte da Vórtx”, o colegiado concordou que cabe a apuração da responsabilidade do agente por meio de processo sancionador.

 

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No documento, o colegiado observou ainda que “não seria oportuno nem conveniente discutir, no âmbito da atuação cautelar da CVM, os limites e deveres que recaem sobre os agentes fiduciários em ofertas públicas de valores mobiliários”, acrescentando que “essa discussão demandaria uma análise mais profunda, a ser realizada no bojo de processo sancionador”. Até o fechamento desta edição, entretanto, a SRE ainda não havia instaurado um processo sancionador para o caso. De acordo com uma fonte, o relatório final da investigação está em análise.

Embora veja indícios consistentes de falta de diligência do agente fiduciário, CVM fez um mea-culpa quanto ao uso do stop order sem parcimônia

Susto no mercado

O afã da CVM em punir os participantes da oferta assustou o mercado. “As suspensões foram amparadas num eventual descumprimento de normas e não houve possibilidade de contestação inicialmente. Fez falta o direito ao contraditório”, avalia a coordenadora de mercado de capitais do escritório Bicalho e Mollica Advogados, Carolina Marcondes. “Há vantagens e desvantagens desse movimento [de medida cautelar], mas o que fica é o remédio amargo, um tiro de calibre maior do que deveria ter sido usado”, acrescenta Carlos Ferrari, sócio do NFA Advogados.

Segundo a SRE, que no trabalho de apuração contou com parecer da Procuradoria Federal Especializada (PFE-CVM), está no artigo 9º da Lei 6.385/76 o respaldo legal para o colegiado optar por usar medida cautelar para punir participantes do mercado quando considerar necessário. O instrumento permite ao regulador manter sigilo em relação a investigações em curso, e, com isso, limita o direito ao contraditório levantado por advogados e particularmente pela Vórtx. No PAS, ao contrário, os envolvidos podem ter acesso ao processo e existem plenas possibilidades para defesa do acusado.

Perdas e danos

Fato é que o vaivém de avaliações do colegiado custou caro à Vórtx. A empresa, fundada em 2015, vinha desde então se destacando no mercado em serviços fiduciários, custódia e escrituração de valores mobiliários. A reportagem apurou que, nos 12 dias da suspensão, a Vórtx precisou renunciar à prestação dos serviços fiduciários em operações de certificados de recebíveis imobiliários (CRIs) e de certificados de recebíveis do agronegócio (CRAs) que precisavam ser liquidadas no período. E mesmo após a decisão inicial ter sido revertida, continuou sentindo os efeitos da punição: perdeu o papel de agente fiduciário na 68ª série da 1ª emissão de CRI da Habitasec e em três séries de CRI da Reag Securities. Cabe lembrar que a atuação em ofertas regidas pela Instrução 476 corresponde a 80% do faturamento da empresa. Números compilados pela empresa de análise de finanças estruturadas Uqbar mostram que depois de participar como agente fiduciário de emissões de CRI que somaram, em média, em 212 milhões de reais de janeiro a julho, a Vórtx viu esse montante cair para 12 milhões de reais em agosto. Em quantidade de operações a queda também é notável: de uma média de 4 nos sete primeiros meses do ano para apenas uma em agosto.

Quando eventualmente um (ou mais) PAS em torno das debêntures da VCI for instaurado, a SRE já terá um bom volume de informações sobre o caso. Em sua apuração inicial, a área técnica encontrou, por exemplo, problemas no laudo de avaliação do terreno do imóvel dado em garantia da operação, feito por uma empresa contratada pela emissora. O documento atestava que o lote tinha 838,8 mil metros quadrados, quando teria uma área muito menor, de 178,7 mil metros quadrados — o que afetaria o valor financeiro da garantia. “As informações deste laudo não apenas fizeram parte do material de divulgação da oferta entregue aos potenciais investidores, como também foi replicado no relatório de rating da agência de classificação de risco”, salienta a SRE.

Os técnicos também questionaram a avaliação da área edificada integrante da garantia das debêntures, que somaria 153,8 milhões de reais — resultado da estimativa apresentada de 2,3 mil reais por metro quadrado —, o que seria uma “ficção não baseada em fatos, pois o valor estimado para a garantia não condizia com a realidade do imóvel”. Combinando os números, a SRE concluiu que as garantias alegadas (cerca de 200 milhões de reais, da soma do terreno com a área da edificação) superavam os valores que de fato corresponderiam à realidade. Ou seja: as garantias teriam sido superestimadas pelo emissor — problema que, para a SRE, passou incólume por agente fiduciário (Vórtx), intermediário (Orla DTVM) e agência classificadora de risco (LFRating), abrindo espaço para punições.

Reavaliações

Representantes das quatro empresas envolvidas na medida cautelar foram recebidos pelo presidente da CVM em 23 de julho, primeiro dia útil depois da publicação da Deliberação 796. Embora a Vórtx tenha protocolado o pedido de revogação da punição naquela mesma segunda-feira, não houve tempo suficiente para o assunto entrar na pauta da reunião semanal do colegiado, que estava marcada para o dia 24. Foi por isso que a reversão só saiu na semana seguinte. Cabe destacar que, embora a Vórtx tenha convencido o colegiado de que uma medida cautelar não era cabível no seu caso, não foi capaz de se defender em relação à certificação das garantias. Segundo a área técnica, no seu pedido de reconsideração, a Vórtx não trouxe “fatos novos no que se refere aos problemas na avaliação do imóvel, consubstanciado na metragem errada do terreno e na atribuição injustificada de valor do metro quadrado construído”.

Especificamente em relação à Argus (LFRating), a área técnica concluiu que agência classificadora de risco produziu “uma nota de crédito artificialmente otimista e desconectada dos parâmetros de mercado”, e que a avaliação se baseou “primordialmente na qualidade das garantias estabelecidas e não em indicadores como a capacidade e previsibilidade de geração de caixa, nível de endividamento, qualidade dos ativos da emissora e análise do negócio”.  Apesar dessas falhas, o colegiado atendeu o pleito da empresa e concedeu, em 21 de agosto, um “efeito suspensivo” da proibição de que atuasse em novas ofertas no âmbito da Instrução 476, válido até que pontos específicos do pedido de reconsideração sejam analisados.

Já a Orla DTVM solicitou vista da análise técnica que fundamentou a decisão da Deliberação 796 — pedido indeferido pela SRE, que considerou que poderia “prejudicar as investigações atualmente em curso”. Assim, a Orla continua proibida de atuar em ofertas 476, mas o colegiado determinou o retorno do processo à área técnica para um reexame do pedido de vista. Até o fechamento desta reportagem não havia nenhuma nova decisão.

A emissora das debêntures, por sua vez, pediu a reconsideração da punição argumentando que, diferentemente do que diz a SRE, a operação tem “garantia válida e eficaz”, representada por imóvel “cuja correta metragem sempre foi de ciência dos debenturistas”, e que o valor do empreendimento “supera em muito o valor da emissão”. Para a área técnica, porém, os novos argumentos não foram suficientes para descontruir os fatos apurados na investigação — assim, a SRE recomendou a manutenção das medidas cautelares, no que foi atendida pelo colegiado.

 


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