Tempos de crise fazem acionistas querer reabrir negócios fechados, rever decisões tomadas e, quando possível, impor as próprias vontades sobre seus sócios e suas companhias. Nesse ambiente, deliberações tomadas em assembleias gerais de acionistas têm cadeira cativa sob os holofotes.
Assembleias decidem temas vitais para o desenvolvimento dos negócios, impactando significativamente a vida das companhias — desde aumentos de capital que causam diluições (in)justificadas até eleições (i)legais de conselheiros.
Não bastassem os embates entre sócios, as assembleias enfrentam problemas ainda maiores. Discute-se hoje, por exemplo, a existência e a amplitude de um conflito de leis que regulam a invalidade das deliberações.
Sob as lentes do direito societário, o objetivo da regulação de deliberações assembleares é lhes conferir higidez, de forma a proteger acionistas, companhias e mercado da insegurança jurídica causada por uma eterna possibilidade de revisão. Já pelo prisma do direito civil, a preocupação é outra: tutelar as condições mínimas para que um evento seja apto a produzir efeitos juridicamente protegidos.
Mas seriam esses regimes antagônicos? Nos termos do artigo 286 da Lei das S.As., ficam sujeitas a anulação, por dois anos, deliberações que são violadoras de lei ou do estatuto da empresa, ou, ainda, eivadas de fraude ou simulação. É o que se costuma chamar anulabilidade de atos societários. De outro lado, nosso Código Civil estabelece que negócios jurídicos com objeto ou motivo ilícito, fraudulentos ou simulados, são nulos, e como tal, não são passíveis de convalidação.
Em suma, um ato societário pode, em diversos casos, ser considerado nulo, nos termos do Código Civil, e anulável nos termos da Lei das S.As.
Uma das principais consequências práticas dessa diferenciação dos regimes é o prazo para se promover a anulação: enquanto a anulabilidade societária deve ser alegada num prazo de dois anos, os negócios nulos podem ser anulados a qualquer tempo, inclusive por requerimento do Ministério Público.
Pois bem. Se houver um conflito entre esses regramentos no caso de uma deliberação específica, qual deve prevalecer? Respostas a essa pergunta necessariamente remetem à problemática das interfaces entre direito civil e direito societário. Se entendermos o direito societário como um microssistema independente, tenderemos a afirmar que o artigo 286 da Lei das S.As. é hegemônico ao determinar seu regime de invalidade. Consequentemente, o prazo de dois anos para questionamento da deliberação prevaleceria. Argumenta-se que o direito societário deve fornecer segurança jurídica definitiva aos atos de comércio e prover estabilidade às relações comerciais de nossos mercados.
Uma provocação: daríamos a mesma resposta caso uma deliberação determinasse que certa companhia exploraria trabalho escravo como seu objeto social?
Entendemos que a interface entre direito civil e direito societário diz respeito às estruturas fundacionais do direito privado. Para responder à provocação, remetemos ao regime geral dos fatos jurídicos do Código Civil. De um ponto de vista sistêmico, o direito societário deve regular as especificidades das relações de S.As., mas deve ser lido de forma harmônica com as bases que estruturam todo o direito privado. Entendemos as deliberações assembleares como negócios jurídicos: são manifestações livres da vontade das partes, com objetos lícitos e possíveis, revestidas de uma forma prescrita em lei, com efeitos controlados. E, como negócios jurídicos, sujeitam-se à aplicação do regime de nulidade do direito civil, que deve prevalecer.
Nossa interpretação, portanto, deve ser sistemática e o artigo 286 da Lei das S.As. deve ser visto como apenas uma das peças de um quebra-cabeça muito maior, chamado direito privado. Em contexto com o sistema normativo do direito privado, o artigo 286 deve ser compatibilizado com o regime geral da invalidade civil, de modo que sua aplicação pode ser por vezes afastada para se reconhecer a nulidade de deliberações que jamais poderão convalescer.
*Felipe Gonçalves ([email protected]), é associado do Feldens Madruga Advogados. Colaborou Ivo Bari ([email protected]), associado do Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown LLP
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