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Bases sólidas
Criada numa época em que IPO era coisa rara, Instrução 400 completa dez anos de sucesso com alguns desafios para se manter eficaz e atual

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Há uma década, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) lançava a Instrução 400. Formulada num tempo de escassez de ofertas públicas, a norma substituiu as instruções 13 (de 1980) e 88 (de 1988) ao regular emissões primárias e secundárias de valores mobiliários. Seu mérito foi criar os alicerces para o desenvolvimento do mercado de capitais: fixou regras claras para emissores e intermediários e garantiu aos investidores mais informação sobre as ofertas. Ao lado da constatação de que a Instrução 400 foi um enorme avanço, porém, está a certeza de que a sua complexidade normativa foi apenas parcialmente testada na prática. O preceito ainda não experimentou, por exemplo, uma era mais democrática do mercado de capitais brasileiro, em que empresas menores fazem IPO e os avanços da tecnologia permitem levantar recursos por meio de crowdfunding. Para fazer um balanço dos resultados alcançados pela Instrução 400 e discutir o que a espera no futuro, a capital aberto conversou com diversos agentes do mercado e, no dia 4 de dezembro, realizou um workshop sobre o tema na sede do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), em São Paulo (confira os palestrantes ao lado).

A instrução passou por adaptações ao longo da última década. Uma das principais foi a promovida pela norma 482, de abril de 2010, que trouxe a obrigatoriedade de incorporar o formulário de referência ao prospecto de distribuição e passou a exigir o estudo de viabilidade econômico-financeira de emissoras em fase pré-operacional. No escopo da regra estava, ainda, o período de silêncio, previsto no artigo 48, um dos pontos mais controversos da aplicação da norma. A 482 tratou de discipliná-lo: primeiro, delimitou seu intervalo objetivamente — ele começa 60 dias antes do pedido de registro da oferta ou da data em que a emissão for decidida ou projetada, o que ocorrer por último. E, depois, especificando o conteúdo que está dentro e fora da regra: o silêncio não se aplica aos dados habitualmente difundidos pela companhia no curso normal das suas atividades.

Tantos esclarecimentos sobre o período de silêncio têm justificativas. Logo após a edição da 400, em 2003, o medo de desrespeitar o dispositivo era tamanho que as companhias em processo de registro de oferta não ousavam se dirigir ao mercado. “Houve um silêncio absoluto, até para fatos relevantes”, recorda Carlos Augusto Junqueira, sócio do escritório Souza, Cescon, Barrieu & Flesch. Passado o primeiro impacto, as empresas perceberam que não precisavam ser tão radicais no cumprimento da regra. No entanto, com receio de serem punidas pelo regulador, continuaram a evitar ao máximo a interlocução com o público, inclusive sobre assuntos que nada tinham a ver com as suas ofertas.

A edição da Instrução 482 deveria ter acabado com o temor, mas não foi bem isso o que aconteceu. “As companhias ainda têm muitas dúvidas”, diz Eliana Chimenti, sócia do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice. Os questionamentos sobre atividades no período de silêncio, segundo ela, englobam desde o anúncio de novos empreendimentos até as apresentações nos encontros da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec).

São pontos que poderiam ter ficado mais claros desde o início, se a Instrução 400 fosse mais minuciosa. Na visão de Junqueira, um erro fundamental na elaboração da regra é a ausência de notas explicativas. Embora sem força normativa, elas servem para detalhar questões pontuais. “Na sua origem, a CVM previa que toda regra complexa deveria ter nota explicativa. A Instrução 400 tem dez anos e nenhuma nota”, critica o advogado.

O artigo 48 não deixou incertezas apenas entre as companhias. Os advogados tampouco se sentem confortáveis em relação ao dispositivo. “A Instrução 400 deixa claro que não é permitido falar sobre a oferta, mas com relação à companhia ela é totalmente subjetiva”, argumenta Carlos Lobo, sócio do Veirano Advogados. A suspensão da oferta de ações da Anima pela CVM ilustrou bem o problema. A companhia teve a sua emissão interrompida após a estreia em bolsa devido a declarações do conselheiro de administração Ozires Silva ao jornal Valor Econômico. Na reportagem, veiculada em outubro, antes do anúncio de encerramento da oferta, Silva expunha a intenção de construir um novo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) no País. Afirmava que, para isso, bateria à porta do governo com o intuito de derrubar a incidência de impostos sobre doações destinadas à área educacional. A autarquia entendeu que Silva teria dado “declarações contundentes” sobre a Anima e o seu setor de atuação, apesar de a Instrução 400 vedar a “manifestação na mídia por participantes da oferta até a publicação do anúncio de encerramento”. Para revogar a suspensão, a empresa teve que divulgar fato relevante orientando os investidores a considerar as assertivas como posições pessoais do executivo e a se concentrar no prospecto da oferta. Na sua defesa, também informou à CVM que a entrevista havia sido feita fora do período de silêncio, porém difundida após algumas semanas.

A atitude da autarquia foi alvo de críticas. “Suspender a oferta depois que as ações estão sendo negociadas não funciona; só tumultua o mercado. O regulador poderia utilizar outros instrumentos para advertir a companhia”, afirma Luiz Antonio Campos, sócio do BM&A, durante o workshop. Alguns advogados ouvidos pela reportagem também reclamam de a CVM julgar ocasiões semelhantes de infração ao artigo 48 de maneiras distintas. “Se pegarmos os casos julgados pelo colegiado que abrangem período de silêncio, a interpretação é uma gangorra”, diz Junqueira.

Isso ajuda a explicar por que os advogados são os primeiros a incentivar seus clientes a manter a boca fechada sobre qualquer assunto durante a oferta. Eliana conta que, após uma reunião a respeito de possível IPO, a primeira providência do escritório é enviar às partes envolvidas um memorando sobre a necessidade de preservar silêncio absoluto sobre qualquer detalhe da operação. “Sabemos que é muito difícil para a companhia controlar todo mundo que integra a oferta”, observa.

Custos menores
Se a Instrução 482 foi um marco na atualização da 400, a audiência pública aberta em 2 de dezembro para alteração da norma promete ser outro. A proposta dispensa as instituições intermediárias de publicar avisos obrigatórios de oferta pública em jornais de grande circulação. Bastará reproduzi-los nos sites da emissora, do ofertante, da instituição intermediária, da CVM e da entidade em que os valores mobiliários serão admitidos para negociação. A regra também propõe que o prospecto definitivo ou preliminar não precise ser entregue aos investidores em versão impressa. Ele poderá ser disponibilizado apenas nas páginas da internet em que os avisos da oferta forem exibidos.

As mudanças são um desdobramento das discussões realizadas no âmbito do Comitê Técnico de Ofertas Menores, cujo objetivo é facilitar o acesso de pequenas e médias empresas ao mercado de capitais. Junqueira, do Souza, Cescon, ressalta que, enquanto no Brasil uma oferta de ações levanta cerca de R$ 450 milhões em média, no mundo o número é um terço disso. “A nossa regulamentação é extremamente exigente e acaba dificultando captações de empresas menores”, reflete. Daí a defesa, por parte de alguns agentes do mercado, de que a CVM lance uma regra específica para essas emissoras. “Precisamos de outras Instruções 400 para que a CVM consiga simplificar o processo”, opina Sérgio Romani, sócio-líder de auditoria da Ernst & Young.

A necessidade de adequar a 400 a um ambiente de ofertas mais modestas resulta também de mudanças no cenário econômico — hoje muito menos favorável do que quando a norma foi promulgada. “Naquela época, vivíamos um período de boom econômico”, lembra Roberto Barbuti, co-head do banco de investimentos do Bank of America Merrill Lynch. Para quem não se recorda, em 2003, a bolsa brasileira pôs fim à pasmaceira dos anos anteriores. Ostentou alta de 97,3% e recorde histórico em número de pontos. O volume médio diário de negociação, que em 2001 era de R$ 450 milhões, atingiu R$ 1 bilhão. A retomada prosseguiu até culminar, em 2007, com 76 ofertas de ações na BM&FBovespa. Desde então, o número de emissões rolou ladeira abaixo: foram 15 em 2013; 12 em 2012; e 22 em 2011.

Nocauteados pela crise financeira mundial de 2008, os Estados Unidos também viram as ofertas públicas secar. Naquele ano, o país registrou 37 IPOs, contra 219 em 2007, segundo dados da Ernst & Young. Para sair do marasmo, o jeito foi incentivar a captação de empresas menores com descontos regulatórios. Esse foi o intuito do Jumpstart Our Business Startups Act (Jobs Act), aprovado pelo Congresso americano em abril de 2012. Entre outras coisas, o pacote de leis isenta as “emerging growth companies” (empresas com faturamento anual bruto de até US$ 1 bilhão) de atender à Lei Sarbanes-Oxley — diploma editado em 2002 para combater as fraudes contábeis — e diminui a exigência de auditoria externa dos balanços dessas companhias de três para dois anos antes do IPO.

De acordo com Donald Baker, sócio do escritório White & Case, há tempos o mercado americano reclamava do excesso de regras. O aperto regulatório ganhou força com a Sarbanes-Oxley e prosseguiu até 2010, com o lançamento da Lei Dodd-Frank, a mais abrangente revisão da legislação financeira americana desde a década de 1930. “O Jobs Act é uma resposta a esse movimento, com a simplificação das regras para ofertas públicas, após anos de aumento do rigor e das exigências feitas pela SEC”, avalia Baker.

Flavia Mouta, superintendente de desenvolvimento de mercado da CVM, pondera que mudanças legais estão longe de ser “a salvação para todos os males das pequenas empresas”. A flexibilização das normas não garante demanda do investidor por oferta dessas companhias, nem interesse dos intermediários em coordená-la — por serem menos volumosas, essas ofertas rendem comissões mais baixas. “É fácil a Instrução 400 funcionar quando envolve dezenas de milhões de reais em comissões”, provoca Junqueira, do Souza, Cescon.

O equity crowdfunding — a captação de recursos com pessoas físicas processada na internet — pode ser uma maneira de as pequenas e microempresas emitirem ações sem seguir o rito da Instrução 400. O artigo 5 da norma libera essas companhias de registrar a oferta, desde que a emissão não ultrapasse R$ 2,4 milhões. Por ora, a CVM não pretende lançar preceitos específicos para o crowdfunding, embora esteja acompanhando a regulamentação de outros países — a diretriz da sua congênere americana para o assunto tem 538 páginas, segundo Flavia (leia também a matéria sobre equity crowdfunding na página 28).

Estudo de viabilidade
Situações sui generis vividas pelo mercado de capitais brasileiro este ano também abrem reflexões sobre dispositivos da Instrução 400. O artigo 32 da norma, que prevê a elaboração de estudo de viabilidade econômico-financeira por empresas pré-operacionais, passou a ser alvo de críticas após o debacle inesperado da OGX. A petroleira de Eike Batista pediu recuperação judicial no fim de outubro, cinco anos depois de ter protagonizado um dos maiores IPOs da história da bolsa brasileira e captar R$ 6,7 bilhões.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, o caso da OGX deixou claro que o artigo 32 é insuficiente para garantir a segurança dos investidores em ofertas de empresas pré-operacionais. O dispositivo obriga a apresentação do estudo de viabilidade também em outras circunstâncias — por exemplo, aquela em que os recursos captados pela emissora são destinados a novas atividades. O anexo III da Instrução 400 detalha em poucas linhas o que o estudo deve analisar: a demanda para as principais linhas de produto ou serviço da empresa, o suprimento de matérias-primas e o retorno do investimento com as premissas adotadas na sua elaboração. “A regulação do setor de empresas pré-operacionais precisa ser melhorada”, considera Thiago Giantomassi, sócio do escritório Demarest.

Em alguns países, como Estados Unidos, Austrália e Reino Unido, as ofertas de pré-operacionais seguem regras próprias. E, embora haja um limite do grau de acerto que se pode exigir dos estudos de viabilidade, as instituições que elaboram esse tipo de relatório em território americano podem ser responsabilizadas por prejuízos aos investidores caso fique comprovado que houve equívoco nas premissas e estimativas. No Brasil, ao contrário, cabe à companhia o dever de diligência quanto à veracidade das informações que ela e os intermediários prestam aos investidores nas ofertas.

Luz demais?
Com o amadurecimento do mercado de capitais, é natural que pontos até então pacíficos da Instrução 400 comecem a ser questionados. Em dez anos, a norma passou por poucas alterações, que em nada mudaram a sua espinha dorsal. Um dos principais méritos da regra foi prover o investidor com muito mais informações sobre as ofertas públicas. “O pros-
pecto exigido antes da Instrução 400 era amadorístico”, recorda Antonio Felix de Araújo Cintra, sócio do escritório Tozzini Freire.

Uma década depois, o mercado se depara com uma situação totalmente oposta a essa. “Migramos de um prospecto de 30 páginas para outro de 3 mil, que também não é o ideal”, observa André Pitta, analista de informação da BM&FBovespa e especialista em regulação de emissores.

Donald Baker, sócio do escritório White & Case, compartilha dessa visão. “Há um problema de excesso de informação no mercado brasileiro. Muita coisa apresentada no prospecto e no formulário de referência é irrelevante”, afirma. Ele critica, por exemplo, as empresas que gastam páginas a fio para elencar litígios em que a possibilidade de perda é muito baixa e o valor, irrisório. Outro inconveniente está na seção de fatores de risco, que costuma trazer informações padronizadas, em vez de apontar os perigos específicos a rondar o negócio da companhia. “Não podemos pensar que uma mesma informação serve para todas as empresas”, alerta Jean Arakawa, sócio do escritório Mattos Filho. Se antes a dificuldade era a falta de transparência, agora o perigo é a cegueira que o excesso de luz pode causar.

Adaptar-se às novas circunstâncias será o grande desafio da 400 para os próximos anos. Até o momento, não há dúvidas: ela tem atendido bem aos seus propósitos. “Há o mito de que fazer um IPO é traumático, mas a Instrução 400 é um ótimo guia”, avalia Joel Kos, diretor financeiro e de relações com investidores da Locamerica. O executivo pondera, no entanto, que a norma é útil para emissão de ações, mas nem tanto para as ofertas de dívida. “Nesses casos, prefiro a Instrução 476”, afirma Kos, referindo-se à norma da CVM que regula as ofertas públicas com esforços restritos (em que a venda é direcionada a até 50 investidores, e a compra é restrita a 20). A preferência mostra que os descontos regulatórios têm apelo. Ao retirar exigências que aumentam o custo das ofertas, a Instrução 400, ainda que timidamente, dá os seus passos adiante nesse sentido.


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