A Lei 13.506 confere poderes excessivos à CVM?
Ary Oswaldo Mattos Filho e Leonardo Pereira respondem à pergunta
Ilustração de Ary Oswaldo Mattos Filho. A Lei 13.506 confere poderes excessivos à CVM?

Ary Oswaldo*/ Ilustração: Julia Padula

SIM

Primeiramente, é necessário destacar que este artigo se atém a poucos comandos da Lei 13.506/17 que dizem respeito ao mercado de valores mobiliários — não trata, portanto, dos poderes punitivos atribuídos ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central.

Um aspecto negativo é a largueza com que a lei delega poderes normativos à CVM. Muito embora seja forte a influência da maior economia central1, há que se levar em conta o sistema constitucional e legal brasileiro nessa “tropicalização”. Por exemplo: o conceito legal de oferta pública no Brasil (Lei 6.385/76, art. 19, § 3º) foi parcialmente copiado dos EUA.

É caracterizada como oferta pública aquela com acesso indiscriminado aos ofertados, sendo estes indeterminados. Mas o legislador coloca neste mesmo artigo 19 o parágrafo 5º, dando competência à CVM para baixar comandos administrativos para “definir outras situações que configurem emissão pública, para fins de registro, assim como os casos em que este poderá ser dispensado, tendo em vista o interesse público do investidor”. Ou seja, a CVM teria a competência para trazer para seu poder regulamentar e punitivo outras formas de distribuição privada de valores mobiliários, precisando apenas editar norma administrativa (qual? por quem?). Ademais, o mesmo comando de lei cinge a competência da CVM para que assim atue tendo em vista o “interesse público do investidor”. Ora, o interesse do investidor não é público, mas sim personalíssimo e, portanto, privado.

Mas o que isso tem a ver com os comandos da Lei 13.506/17? Creio que muito. O § 5º é uma norma em branco que, por isso, fere o princípio constitucional da legalidade2. Além disso, a junção do § 5º com a interpretação que vem sendo adotada pela CVM de exigir a obtenção de isenção de registro quando inexiste oferta pública pode ter o condão de levar operações para seu campo punitivo — cenário agravado pela Lei 13.506/17. O mesmo raciocínio vale para o aumento do poder discricionário da CVM com a inserção dos §§ 4º e 5º ao artigo 9º da Lei 6.385/76. Eles concedem poderes para a autarquia instaurar ou não procedimento punitivo se, a seu critério, a falta seja por ela (quem dentro da autarquia?) considerada irrelevante ou de baixa lesividade ao bem jurídico tutelado. Isso representa um poder ampliado para que defina infrações graves.

O § 5º é uma norma em branco: fere o princípio constitucional da legalidade.

Perdeu-se a oportunidade para que da lei constasse o papel decisivo da CVM para cobrar, dos por ela apenados, as perdas dos investidores ou ao menos participar do processo. Mais uma vez: nosso mercado não tem a pulverização nem a rapidez do americano. Para atrair novas médias empresas, a legislação deve dar à CVM maior papel não só punitivo, mas de cumprimento ao preceito legal que a ela cabe: fiscalizar e desenvolver o mercado de valores mobiliários.


*Ary Oswaldo Mattos Filho ([email protected]) é professor sênior da Direito GV SP

1A influência se dá por meio de organismos internacionais como a Ioco ou mesmo pelo regramento exigido para se ter acesso a outros mercados de valores mobiliários não periféricos.

2A doutrina e a jurisprudência, inclusive do STF, têm por inconstitucional o avanço que o regulador administrativo faça em sua tarefa explicitadora da lei. Em resumo, o administrador não pode assumir o papel do legislador, já que um é contratado e o outro é eleito.


Ilustração de Leonardo Pereira. A Lei 13.506 confere poderes excessivos à CVM?

Leonardo Pereira*/Ilustração: Julia Padula

NÃO

Não, eles são adequados à atual dimensão do mercado de capitais brasileiro.

Como pude reiterar em minhas falas à frente da autarquia, quanto mais diversificado for o kit de ferramentas, mais eficiente será a resposta regulatória. A Lei 13.506 representou uma verdadeira (e necessária) ampliação do conjunto de instrumentos para que a CVM possa atender de maneira mais adequada o interesse público que justificou sua criação.

Esse interesse, positivado na Lei 6.385/76, consiste em posicionar o mercado de capitais como fator relevante para o desenvolvimento do País e que estimule a formação de poupança e sua aplicação em valores mobiliários. Para isso, a CVM foi constituída como um regulador de conduta, que deve assegurar a divulgação de informações claras e tempestivas e proteger os investidores. Há muitas razões que suportam as decisões de investimento, como a existência de arcabouço regulatório (normatização, educação, registro, supervisão e sanção) balanceado.

Na parte de sanção, não é demais lembrar que uma CVM mais fortalecida não significa uma CVM arbitrária ou desmedida, tampouco que mais casos vão para o Judiciário. A lei aumenta um desafio que o regulador já enfrenta: escolher o remédio mais adequado para cada situação. O colegiado deverá, mais ainda, levar em conta as diversas circunstâncias para melhor amoldar cada caso às possibilidades positivadas na norma. As novas ferramentas são as mais adequadas para os tempos atuais, mas sua criação não difere tanto dos passos para a frente que a CVM teve que dar nos seus 40 anos.

Diversificação de ferramentas aumenta eficiência das respostas regulatórias

Desde 1976, a jurisdição da CVM vem sendo alargada conforme o desenvolvimento da economia, a sofisticação dos produtos e serviços e a inclusão de novas competências. Há, ainda, a revolução tecnológica, com HFTs na corrida por discrepâncias de preços infinitesimais (desafiando as definições de condições artificiais de mercado e manipulação da Instrução 8/79) e robôs gestores de recursos. Esse desenvolvimento é natural e desejável para um mercado em expansão (o que gera mais investidores, emissores e maior fluxo de capital para o Brasil), mas deve ser acompanhado do devido robustecimento da estrutura regulatória.

As duas últimas grandes reformas da Lei 6.385 ocorreram quase na virada do século1. Representaram avanço, mas já não eram suficientes. Até a 13.506, a multa máxima aplicável para casos em que a operação não podia ser quantificada, por exemplo, era de 500 mil reais — menos que 30% da média anual individual de remuneração de executivos de empresas representativas na bolsa (KMPG, 2017). Como desestimular práticas irregulares diante de tamanha defasagem?

O não defendido neste artigo mostra que a Lei 13.506 não representa um aumento desnecessário de poderes para o regulador. Se bem usada por um colegiado completo, com experiência e diversificado, a nova lei é um sim aos investidores, o pilar para sustentação do crescimento do mercado de capitais, e um sim para o regulador, que terá mais capacidade para exercer suas funções de orientação e aplicação de penas mais proporcionais. O contexto é de evolução tecnológica, em que novas práticas serão testadas. Essa mudança só fortalecerá o arcabouço para que esse avanço possa acontecer de forma segura.


*Leonardo Pereira ([email protected]) é conselheiro independente e ex-presidente da CVM

1Leis 9.457/97 e 10.303/01


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