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Respeito e ética — nessa ordem
A missão de cidadãos e organizações é trabalhar para a consolidação de um “novo normal”
Lélio Lauretti*

Lélio Lauretti*

Em minha coleção de códigos de conduta, tenho especial apreço por um deles: tem apenas seis páginas de 15 por 21 centímetros e foi distribuído pelo Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH Eidgenössische Technische Hochschule Zürich), uma das cinco maiores universidades da Europa. Todas as recomendações que faz giram em torno da palavra respeito e tem trechos tão curiosos quanto “rir é recomendado, desde que respeitosamente”, “defender suas ideias é recomendado, desde que respeitosamente”, “flertar é permitido, desde que respeitosamente”, “discordar é permitido, desde que respeitosamente”. Ou seja, todos têm ampla liberdade para agir, desde que com respeito. A palavra ética não aparece sequer uma vez — nem é necessária. O objetivo me parece claro: construir uma “cultura ética” em torno do princípio ético fundamental do respeito.

Antes de existir a impressora criada por Gutenberg no século 15, as Escrituras Sagradas eram copiadas a mão por um grupo de especialistas conhecidos como escribas. Eles as transcreviam, página por página, às vezes convertendo as iluminuras (iniciais de página ou parágrafo) em admiráveis obras de arte. Suas canetas eram as penas de ganso, as Montblanc da Idade Média. Um detalhe impressionante dessa tarefa era que a cada vez que encontrava a palavra “Deus” (“Adonai”), o escriba descartava a pena usada e passava a usar uma nova.  Não se devia escrever Deus com uma pena usada, uma impressionante demonstração de respeito. Hoje a palavra Deus é interjeição de uso muito frequente: “Deus me livre!”, “se Deus quiser!” (há também “nossa, que absurdo!, falando de Nossa Senhora). Onde foi parar o respeito? Nem o tinhoso ficou de fora:  “que diabo de história é essa?”.

Médico, filósofo, conferencista, organista de mão cheia, um dos dois Alberts mais notáveis do século 20, Albert Schweitzer (o outro era Einstein) usou o dinheiro que ganhava em suas turnês como concertista e conferencista pela Europa para construir e manter um hospital em Lambaréné, no Gabão, na costa ocidental da África. A instituição tinha o interessante diferencial de admitir a internação da família inteira, não apenas do doente — a ideia era que, com o enfermo em tão boa companhia, a cura se tornaria mais fácil. Ao começar a desenvolver o projeto de construção, Schweitzer notou que o terreno escolhido abrigava vários formigueiros. Surpreendentemente, determinou que se encontrasse outro lugar, no qual não fosse necessário destruir formigueiros. O respeito pela vida era a coluna mestra de sua filosofia, tão bem exposta no livro Minha vida, minhas ideias. Falecido em 1965, foi sepultado na Europa, mas o coração, por decisão dele, foi guardado no Albert Schweitzer Hospital, em Lambaréné.

Os códigos de trânsito, ou os códigos penais, por mais bem elaborados que sejam, estão longe de alcançar seus objetivos centrais: evitar acidentes, evitar crimes. O que está faltando? Simples: respeito pelos códigos, que equivale ao respeito pela ética. Como esse é um dos princípios basilares da ética, estou, deliberadamente, promovendo uma inversão de ordem ao colocar respeito em primeiro lugar e ética em segundo. Mas se há respeito pode-se admitir a existência do desrespeito pela ética, quando analisada em seu papel de “ciência da moral”, como muito bem a define Adolfo Sánchez Vázquez. Vamos analisar objetivamente as duas faces dessa moeda.

Estamos desrespeitando a ética quando a encaramos como um conjunto de regras, regimentos, normas, leis etc. de cumprimento obrigatório — ou seja, quando trazemos a ética ao nível do compliance, desconsiderando sua verdadeira natureza, muito distante disso, que é a opção pelo bem.

Outra forma muito comum de desrespeitar a ética é considerá-la a antítese de corrupção — palavra que de uns tempos para cá estamos ouvindo a cada instante. Enquanto a ética vem ocupando cada vez maior espaço em nossa cultura — e tem tudo para não mudar de direção —, a corrupção entrou na categoria das “espécies em extinção”, o que quer dizer que está perdendo e vai continuar a perder sustentação a cada dia que passa. Nada de otimismo irresponsável nessa posição. Basta atentar para os seguintes fatos, de fácil comprovação:

— não existe mais garantia de sigilo total, nem em nosso dia a dia nem nas conversas superconfidenciais do presidente da República;

— em tempos de delação premiada, não se pode contar com “cumplicidades confiáveis”;

— nosso passado recente, no Brasil, confirma que a certeza de impunidade nos altos escalões já morreu de velha;

— o desaparecimento dos paraísos fiscais e do próprio papel-moeda, uma simples questão de tempo, gera mais um sério complicador para a prática da corrupção, que é “onde esconder o dinheiro?”  Mesmo hoje, certas malas já chamam muito a atenção.

Haveria ainda uma série grande de fatores que vaticinam a queda da corrupção ao nível dos ladrões de galinhas, mas o exposto me parece suficiente para compormos um réquiem para a corrupção e desautorizar qualquer definição de ética que a tenha como ponto de referência.

Do lado positivo, devemos cuidar agora das formas de respeito pela ética. A evolução do papel das empresas na sociedade, especialmente no século 20 e neste começo do 21, é muito animadora como indicativa de tendências. Milton Friedman defendia que as empresas existiam para criar riqueza para os sócios; hoje defendemos que elas são indissociáveis da sociedade como um todo e que sua missão é criar valor para a comunidade, a começar pelos sócios. Nesse papel, serão as empresas os mais fortes fatores de influência no rumo das mudanças já em curso. Grandes empregadoras, propulsoras e beneficiárias dos progressos da ciência, avessas aos desperdícios (que são custos), buscadoras incansáveis de novos mercados, promotoras da diversidade, laboratórios de solidariedade e companheirismo, elas têm plenas condições de influir positivamente no rumo das mudanças sociais cada vez mais balizadas e motivadas pela ideia do bem comum.

Nessa longa e firme caminhada para uma sociedade mais justa, alguns conceitos arraigados serão necessariamente revistos. Podemos destacar:

— os conceitos de poder e de autoridade passam a agregar o de responsabilidade; os pais são responsáveis pelo sucesso de seus filhos, os professores pelo êxito dos alunos, os líderes pelo sucesso dos liderados, os governantes pelo progresso do país;

— a dominância dos princípios econômicos nas decisões da sociedade vai cedendo lugar à prevalência dos princípios éticos. Afinal de contas, são os mercados que criam as empresas, não o inverso. Ou podemos supor que os 700 milhões de pessoas do Ocidente vão continuar a predestinar os 7 bilhões de habitantes do mundo? Basta lembrar que um terço desse total está em dois dos países que mais crescem (China e Índia);

— a ideia de elite como minoria detentora de muito poder e/ou muito dinheiro perdeu suporte em face da razão e da lógica. E vai sendo substituída pela visão da elite como o conjunto amplamente majoritário das pessoas de bem que, em qualquer classe social ou ocupação profissional, trabalham o tempo todo na construção de um mundo melhor.

Para finalizar, vamos observar que, na visão de uma sociedade orientada basicamente por princípios econômicos, a notícia é apenas mais uma mercadoria e, portanto, deve responder ao interesse de se vender mais. Com isso, chegamos a esse absurdo do mal como notícia que infeta nossas telas e produz efeitos tristemente negativos, principalmente entre os jovens, como a consagração da violência. A missão de cidadãos e organizações é trabalhar com todas as suas forças para a consolidação de um “novo normal”, que será uma cultura ética construída pelo respeito, pela confiança e pela solidariedade e cujo momento de êxito será fácil de reconhecer: a hora em que o bem virar notícia.


*Lélio Lauretti ([email protected]) é sócio-fundador do IBGC e professor dos cursos de governança corporativa do instituto


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