Reparação seletiva
Acordo de leniência da J&F expõe desigualdade de tratamento entre investidores lesados
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

Na manhã do dia 31 de maio, o Ministério Público Federal (MPF) anunciou o acerto das bases financeiras do acordo de leniência do grupo J&F, controlador da JBS. Em negociações com os procuradores responsáveis pelas operações Bullish e Carne Fraca e com a força-tarefa das investigações Greenfield, Sépsis e Cui Bono, os irmãos Joesley e Wesley Batista concordaram em pagar em multas um valor total de 10,3 bilhões de reais. A cifra, apesar de espantosa, será paga em 25 anos, com reajuste pela inflação e sem juros. No mesmo dia, as ações ordinárias da JBS valorizaram-se 9,05%, na contramão do Ibovespa, que caiu 1,96%. O pacto, no entanto, chamou a atenção para a desigualdade de tratamento entre os investidores lesados.

O acordo prevê que do montante da multa 8 bilhões de reais (77,66%) serão destinados àqueles que, segundo as investigações, foram prejudicados pela atuação irregular da J&F. Funcef, Petros e BNDES receberão 25% do montante — 2 bilhões de reais cada um. Já União, FGTS e Caixa Econômica Federal ficarão, respectivamente, com 12,5%, 6,5% e 6,5%. O restante (2,3 bilhões de reais) será pago por meio de projetos sociais.

A primeira indagação que o acordo gera está relacionada à lista de lesados. Se todos os acionistas públicos da JBS serão beneficiados pela reparação, por que os privados ficarão de fora? A segunda dúvida reside na divisão do bolo. Funcef, Petros e BNDES receberão indenizações iguais, apesar de no quadro societário da JBS terem participações bastante distintas. Em setembro de 2016, quando veio à tona a Operação Greenfield, as fundações sequer figuravam entre os acionistas relevantes da companhia (aqueles com pelo menos 5% das ações). Já o BNDES tinha fatia de 20,36% do capital.

Se todos os acionistas públicos da JBS serão beneficiados pela multa, por que os privados ficarão de fora?

“Isso é um descalabro”, avalia a professora e advogada Érica Gorga. “Estamos vendo o Estado defendendo o dinheiro do próprio Estado e deixando de fora as partes privadas”, protesta, enfatizando que a divisão, além de não estar fundamentada, não corresponde à estrutura de propriedade da companhia. Segundo Gorga, se a multa está sendo direcionada para as partes lesadas, não faz sentido excluir os 27% do capital que estavam nas mãos de pequenos acionistas.

A reparação destinada ao BNDES e aos fundos de pensão tem ainda outro efeito: tende a inibir a abertura de uma ação civil pública — como empresas estatais, ambas poderiam recorrer ao Judiciário em busca de ressarcimento para si e para os demais minoritários. Diferentemente do que acontece nos EUA, os investidores brasileiros não podem iniciar por conta própria ações de ressarcimento no Judiciário. A Lei 7.347/85, que disciplina a matéria, restringe o rol de autores da ação civil a empresas públicas (caso do BNDES e da Caixa) e a outros propositores como as fundações e sociedades de economia mista, o MPF, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e as associações de classe.

Que público interessa?

No dia 30 de maio, diante da repercussão negativa do caso JBS, a Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) divulgou um comunicado em nome de seus associados, no qual dizia que “os problemas graves descortinados em empresas de capital aberto nos últimos anos demandam uma importante reflexão”. “Existe a ideia de que o único dinheiro a ser tutelado é o público. Mas e o dinheiro que vem do público? É um preconceito achar que o investidor privado que compra ação não precisa ser defendido”, argumenta Mauro Cunha, presidente da entidade.

A reparação destinada ao BNDES e aos fundos de pensão tem ainda um efeito colateral: inibir a abertura de uma ação civil pública

Com base no caso JBS, a Amec elencou oito pontos que merecem ser aprimorados para que o mercado de capitais brasileiro funcione de maneira mais eficiente. O primeiro é a valorização da CVM, por meio de autonomia orçamentária efetiva e maior poder de punição. Embora superavitária, a autarquia é autorizada pelo Ministério da Fazenda a gastar apenas uma parte dos recursos que arrecada. Além disso, a Lei 6.385/76 limita a 500 mil reais as multas que pode aplicar.

O segundo ponto que merece aprimoramento é justamente o sistema brasileiro de reparação de danos aos investidores. Casos como os de Aracruz e Petrobras mostram que os detentores de ADRs conseguem ressarcimento no Judiciário americano, ao contrário do que acontece com os acionistas locais. “É impossível adotarmos o sistema atual para pedir reparação”, avalia um gestor. De acordo com ele, as assets não têm recursos para financiar uma ação judicial de reparação que pode se prolongar por cinco ou dez anos. Tampouco conseguem impor essa conta aos cotistas, ainda que eles tenham sido lesados pela má conduta da companhia. “O horizonte de investimento dos cotistas é inferior ao da tramitação de um processo judicial. Esse é um desalinhamento difícil de resolver”, observa.

Se o Judiciário não se mostra um caminho viável, uma alternativa seria recorrer à Câmara de Arbitragem da B3, fórum de resolução de conflitos obrigatório para companhias listadas no Novo Mercado, como a JBS. A questão é que a justiça privada também tem seus problemas — é considerada cara, e o sigilo dos processos dificulta ações de interesse coletivo.

Diante desse cenário, cresce a importância de os investidores analisarem bem em que tipo de companhias estão investindo. No caso da JBS, entretanto, grande parte dos sócios não fez essa análise — e não por descuido. Descontados os acionistas públicos, a maior parte da base acionária da empresa é composta de fundos passivos. A constatação conduz a outra reflexão: as consequências irreparáveis da indexação dos fundos de investimento, alerta Cunha, da Amec. A JBS faz parte do Ibovespa, que orienta grande parte dos portfólios sob gestão passiva que investem em Brasil.

 


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