O Caso Sadia | Parte I
Sete erros que levaram a companhia a sucumbir no escândalo dos derivativos cambiais

Após um acidente aéreo, uma comissão de experts é constituída para investigar o ocorrido. Depois de uma extensa análise do caso, divulga-se um relatório que apresenta causas e recomendações para a prevenção de episódios similares. Colapsos empresariais poderiam ser tratados da mesma forma. A queda de uma grande empresa é resultado de um conjunto de erros, omissões e, às vezes, ações intencionais. Entretanto, ao contrário dos desastres com aeronaves, as grandes falhas corporativas não passam por nenhum processo sistemático de dissecação. Consequentemente, de tempos em tempos, o mercado se depara com colapsos cujas origens, muitas vezes, são semelhantes a fracassos anteriores.


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Um dos casos que merecem uma análise profunda é o da Sadia. Em poucos meses, a empresa passou de paradigma de sucesso a uma situação de insolvência financeira, que a levou a ser incorporada pela principal rival. Para analisar essa história, o artigo está dividido em duas partes. Nesta edição, abordamos as questões internas que ocasionaram os problemas da companhia.

A Sadia aparentava ser uma opção de investimento muito atraente. Tinha grande porte e tradição, estava muito bem posicionada em um setor com forte crescimento no Brasil e no exterior e era rentável — havia obtido um retorno sobre o patrimônio líquido da ordem de 25% nos quatro exercícios anteriores à quebra, em setembro de 2008, e lucros em todos os seus 64 anos de história.

A empresa também parecia ter um modelo de governança exemplar. Era listada no Nível 1, um dos três segmentos diferenciados da BM&FBovespa; e possuía American depositary receipts (ADRs) na Bolsa de Nova York desde 2001, submetendo-se aos requisitos da lei norte-americana Sarbanes-Oxley. Criado em 1964, seu conselho de administração possuía comitê de auditoria desde 1994, e a família controladora havia sido separada da gestão diária já em 2004. Era uma das raras companhias em nosso mercado a classificar como independentes a maioria dos membros de seu conselho (6 de 11 assentos). Entre os conselheiros estrelados havia ex-presidentes dos maiores bancos nacionais e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), um CEO de empresa do Novo Mercado e um dos maiores consultores de gestão do País. Havia quatro comitês no conselho (auditoria, finanças, tributário e de recursos humanos) e um conselho fiscal permanente. Não faltavam nem comitês de gestão dedicados às questões de finanças e riscos (eram quatro no total). A companhia tinha, inclusive, uma política financeira aprovada pelo conselho de administração contemplando regras para a gestão de riscos.

Como grande exportadora, a Sadia necessitava proteger sua receita em moeda estrangeira contra variações cambiais. Ao apostar, todavia, na continuidade da tendência de apreciação do real, a companhia passou a operar com derivativos cada vez mais exóticos, deixando de usar esses instrumentos como simples proteção para também especular no mercado de câmbio. Com a erupção da crise financeira de 2008 e a disparada do dólar, as decisões da alta administração deixaram a Sadia com um enorme prejuízo financeiro: cerca de R$ 3,8 bilhões.

Com uma estrutura administrativa aparentemente consistente e adequada às melhores práticas, por que a empresa acabou se envolvendo em operações especulativas dessa magnitude? Podem-se elencar ao menos sete fatores internos de governança que contribuíram para isso:

1. Modelo de governança — A companhia apresentava uma estrutura organizacional disfuncional que contribuiu substancialmente para os problemas. Primeiro: o diretor financeiro era simultaneamente responsável por tomar risco e por realizar seu controle, já que a gerência de riscos da companhia se reportava a ele. Um erro básico foi bem ilustrado pelo relator do processo na CVM: “As pessoas envolvidas com o sistema de gerenciamento de riscos não podem estar unicamente subordinadas aos executivos responsáveis pelas operações. Executivos financeiros possuem interesses conflitantes com a gestão de riscos e devem ser monitorados de forma independente”. Segundo: o diretor financeiro não se reportava ao diretor-presidente, como é de praxe, mas, sim, ao presidente do conselho de administração, deixando o CEO desinformado acerca de suas atividades. Em terceiro lugar, o presidente do conselho de administração tinha um papel confuso. Em vez de atuar de forma colegiada com os demais conselheiros, gozava de poderes especiais, com direito a expediente diário na empresa. Todos os interrogados pela CVM — exceto o próprio presidente do conselho — reconheceram essa anomalia.

2. Efetividade dos comitês do conselho — Os comitês do conselho que tinham a função de monitorar os riscos aos quais a companhia estava exposta não funcionaram adequadamente. O comitê de finanças, que deveria atuar mensalmente, ficou sem se reunir desde o fim de abril de 2008 ao início de setembro do mesmo ano, cerca de um terço do seu mandato. Já o comitê de auditoria recebeu um material com a descrição das problemáticas operações com derivativos em março de 2008, quase seis meses antes do colapso. De acordo com os autos, um especialista em controladoria da Sadia que havia preparado tal material para realizar uma demonstração sobre a contabilização dos instrumentos de hedge afirmou que “na reunião do comitê de auditoria em que faria sua apresentação, não houve tempo para tal, embora o assunto constasse da agenda; devido a isso, foi definido que a apresentação seria feita em uma reunião futura, o que nunca ocorreu”.

3. Diligência dos membros do conselho de administração — Apesar de terem revalidado a política financeira da companhia em janeiro de 2008, os conselheiros desconheciam um aspecto crítico de seu teor: o responsável pelo acompanhamento das alçadas relativas às operações financeiras contratadas. Quando interrogados sobre essa questão, os conselheiros forneceram respostas desencontradas No total, nove órgãos ou personagens diferentes foram apontados pelos conselheiros, sem contar uma resposta pitoresca de um deles, que afirmou que a responsabilidade era de um certo “sistema de informática”. A CVM não encontrou registros de discussão sobre operações de hedge ou assuntos ligados ao controle das operações financeiras nas atas de reunião do conselho no segundo semestre de 2007, o que contribuiu para a posterior punição de vários conselheiros por descumprimento do dever de diligência.

4. Política financeira — A política financeira da companhia não era clara em vários aspectos-chave, tais como os responsáveis pela realização dos testes de cenários de estresse e de limitação de perdas (stop-loss). O encarregado do cumprimento da política seria o “diretor de administração, finanças e relações com investidores”, cargo que simplesmente não existia no período analisado pela CVM.

5. Mecanismos de compliance — Ainda que a política fosse bem formulada, a companhia não dispunha de controles internos efetivos que assegurassem seu cumprimento. O relatório de uma auditoria independente contratada para avaliar o caso concluiu que “não foram encontradas evidências consistentes de aplicação e reporte dos efeitos de cenários de stress, embora a política financeira fizesse referência a sua utilização, no mínimo, em bases semestrais”.

6. Resultados das operações com derivativos sobre a remuneração variável dos gestores — Aparentemente, o sistema de remuneração da área financeira — um centro eminentemente de custo e não de resultado — tinha um componente variável associado aos ganhos financeiros em operações com derivativos, o que pode ter induzido os executivos a assumir um comportamento mais propenso a riscos.

7. Transparência — Os derivativos poderiam ter sido apresentados de forma bem mais transparente aos investidores. A companhia optava por alocar parte substancial dos ganhos com derivativos não como receita financeira, mas como operacional. Além disso, mostrava no balanço apenas os resultados já realizados, deixando para as notas explicativas o valor de mercado de ganhos ou perdas ainda não realizados.

A adoção do regime de caixa, em vez do de competência, para as operações com derivativos era permitida à época em função de uma regulação relativamente frouxa sobre contabilização de derivativos — tema a ser abordado na próxima coluna sobre o caso Sadia.


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