Nos textos anteriores, descrevi as características das empresas que aprendem continuamente e são éticas. Aqui escreverei sobre a busca por um propósito genuíno além do resultado financeiro, a terceira qualidade fundamental das empresas resilientes.
Propósito tornou-se um tema popular no mundo corporativo depois que referências do mercado vieram a público falar sobre sua importância, como Larry Fink (CEO da BlackRock) em 2018, os 181 CEOs da Business Roundtable no ano passado e, mais recentemente, os signatários do Manifesto 2020 do Forum de Davos.
Isso levou a um certo “hype” ou promoção excessiva do tema, que virou um daqueles tópicos que as grandes empresas e suas lideranças não podem ignorar. A realidade é que, apesar de muitas companhias falarem sobre propósito atualmente, pouquíssimas conseguiram tornar esse tema algo concreto e prioritário no seu dia a dia.
O modismo, no entanto, não diminui a relevância do propósito.
Fonte de energia e coesão
Quando uma organização consegue inspirar e incutir em seus membros a percepção de que estão unidos em prol de uma causa nobre, ela passa a contar uma fonte colossal de energia, motivação e coesão.
Um senso de propósito autêntico também faz com que os demais stakeholders, como clientes, fornecedores e comunidade, se sintam parte de uma causa justa e alinhada ao bem comum para a qual vale a pena contribuir.
Ter um propósito a perseguir é um diferencial ainda maior em períodos de crises e dificuldades. Nesses momentos, é fundamental ter convicção de que dias melhores virão. E a existência de uma causa maior é a chave para fazer com que os membros da organização perseverem na construção do futuro idealizado.
“Empresa das horas boas”
Há também o outro lado da moeda. Quando não existe senso de propósito, tem-se a chamada “empresa das horas boas”. Isso é, aquela organização que segura as pessoas apenas pelo bolso e que, na primeira adversidade, tende a desaparecer por não haver nada além do dinheiro que prenda seus membros.
Peter Drucker já havia percebido isso muito tempo atrás, ao afirmar que “quando não há um compromisso coletivo com um objetivo maior, não existe sequer uma empresa. O que existe é uma turba, um bando, um agrupamento”. Ou seja, uma aventura que pode dar certo por algum tempo.
Os períodos de adversidade são o teste de fogo para as empresas demonstrarem a autenticidade de seu propósito e valores. Seu comportamento nessas situações será lembrado por seus stakeholders por muito tempo.
Iniciativas fundamentais
Para criar uma empresa genuinamente orientada para um propósito maior, são necessárias três iniciativas principais.
A primeira, e mais fundamental, é rever o próprio conceito de sucesso. Em vez de maximizar o resultado financeiro, é preciso que suas lideranças evoluam para um conceito de sucesso mais amplo que tem como objetivo maximizar o propósito da organização.
Isso não significa deixar de gerar valor para os acionistas. Pelo contrário. Alcançar um resultado financeiro satisfatório é condição essencial para a empresa continuar a financiar sua causa e, assim, gerar um impacto ainda mais positivo para seus stakeholders.
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A diferença, nesse caso, é que auferir um retorno justo para os acionistas passa a ser visto como consequência, não como fim em si mesmo, da busca pela criação de valor compartilhado e sustentável para os stakeholders.
Orientar a empresa para um propósito maior é uma grande mudança de paradigma. A segunda resolução estrutural é mudar a forma como a alta gestão está habituada a administrar a organização.
Trata-se de evoluir da pretensão de tentar prever e controlar o futuro para desenvolver a capacidade de sentir e responder continuamente ao ambiente externo utilizando o propósito da organização como norte para as decisões.
É incrível que, em um século 21 tão volátil, acelerado e imprevisível, a maioria das empresas ainda gaste uma quantidade enorme de energia, tempo e recursos tentando prever e controlar o futuro. Em particular, por meio de processos detalhados de planejamento estratégico que muitas vezes mais parecem um verdadeiro ritual de “dança da chuva” coletiva.
O poder da responsividade e da flexibilidade
Cada vez mais, as empresas precisam se concentrar na responsividade e na flexibilidade. O que não quer dizer que não exista um rumo. A direção a seguir, e os parâmetros do que fazer ou não diariamente, passam a ser determinados pelo propósito, pelos valores e pela visão estratégica da organização.
Uma das consequências dos planos estratégicos rígidos e excessivamente detalhados é a prática do cascateamento de metas. Cada indivíduo recebe suas metas e passa a segui-las cegamente, mesmo quando o cenário externo já mudou completamente.
Esse verdadeiro dogma é resultado da obsessão dos líderes corporativos em tentar controlar o incontrolável.
A solução corresponde à terceira iniciativa para criar uma empresa com propósito: eliminar grande parte da parafernália de indicadores — incluindo os confusos modelos de avaliação de desempenho individual — e passar a se concentrar em cascatear sentido, valores e exemplo em vez de cascatear números.
Significa fazer com que as lideranças em todos os níveis se dediquem primordialmente a incutir todos os dias um senso de propósito e sentido nos membros de suas equipes (o porquê de estarem ali) em vez de se concentrar em monitorar inúmeros indicadores estabelecidos unilateralmente (“o que” fazer).
Pode parecer radical, mas há várias evidências científicas e casos concretos de empresas que mostram que sistemas de gestão extremamente complexos — que têm como objetivo controlar e padronizar tudo e todos — geram muito mais custos do que benefícios às organizações.
Prof. Dr. Alexandre Di Miceli da Silveira é fundador da Virtuous Company Consultoria e autor de Ética Empresarial na Prática: Soluções para a Gestão e Governança no Século XXI e Governança Corporativa: O Essencial para Líderes. O articulista agradece a Angela Donaggio pelos comentários e sugestões.
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