O mico de dois em um
Companhias que classificam títulos híbridos como patrimônio líquido ganham cartão vermelho da CVM

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A distribuidora de energia elétrica Energisa seria a pioneira. Em janeiro de 2011, lançou títulos perpétuos no montante de US$ 200 milhões que ganhariam destaque como a primeira emissão de títulos híbridos de uma companhia brasileira. O pulo do gato desse instrumento é permitir que os recursos captados sejam registrados no balanço como ingresso de capital e não como aquisição de dívida, abrindo espaço para as companhias se alavancarem mais. Duas características, segundo os auditores, conferiam aos bonds da Energisa a possibilidade de serem contabilizados dessa forma: a ausência de data de vencimento dos títulos (são perpétuos) e a possibilidade de diferimento do pagamento dos juros — quando necessário, o emissor pode postergar o cupom. Porém, o que era para ser uma grande novidade virou um mico. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) questionou o tratamento contábil da operação e, passado um ano da oferta, determinou que a distribuidora de energia refizesse suas demonstrações financeiras.

Desde 2010, quando os balanços societários das companhias abertas passaram a seguir integralmente os International Financial Reporting Standards (IFRS), difundiu-se a ideia de que a contabilidade deveria se guiar pela máxima da “essência sobre a forma”. A frase virou a senha do mercado para justificar um registro contábil mais favorável para as companhias diante de emissões de títulos compostos (aqueles que mesclam características de passivo e de patrimônio líquido) e de híbridos (os que, além dessa combinação, embutem uma provisão condicionada a um evento). No caso da Energisa, esse evento era a não distribuição de lucros. Pelo desenho da oferta, o diferimento do pagamento de juros dos bonds só poderia ocorrer se a Energisa, dentro dos limites legais, suspendesse a distribuição de dividendos.

O receio da CVM é que, ao contabilizar uma emissão de dívida como patrimônio, as companhias induzam o investidor ao erro. “Esse risco de ’misleading’ não pode de modo algum existir, sob pena de comprometer a credibilidade de nosso mercado”, destacou a autarquia no ofício circular no 01/2013. O documento, que traz orientações gerais sobre aspectos que os emissores devem observar na elaboração das demonstrações contábeis, dedica um item aos instrumentos financeiros compostos e híbridos.

No caso da Energisa, a CVM avaliou que as características que tornavam os donos de bonds equiparáveis a acionistas — ausência de garantia do fluxo de pagamentos e de data de vencimento do papel — não eram suficientes para a distribuidora de energia contabilizar o valor levantado como patrimônio líquido. Isso porque a postergação, ainda que ocorresse, não seria eterna. E, sem a anistia dos juros a serem pagos, o mais correto seria classificar a operação como um passivo.

O impacto da interpretação da CVM no balanço da Energisa foi significativo. Na primeira versão do informativo trimestral (ITR) do período de janeiro a março de 2011, em que a operação foi tratada como patrimônio, o nível de endividamento da companhia (relação de todos os itens do passivo com o ativo total) era de 61,70%. Após a reapresentação do documento, o indicador subiu para 69,9%. Desprovida da vantagem de alavancar a sua capacidade de investimento sem prejudicar os índices de liquidez, a Energisa não viu mais sentido em carregar os títulos. Ainda mais diante do custo elevado — como a oferta dos bonds contemplava a opção de diferir os juros, a Energisa ofereceu aos investidores, como atrativo, uma remuneração elevada. Diante disso, em agosto de 2012, decidiu recomprar toda a dívida por US$ 202 milhões, valor superior ao total emitido.

DEBÊNTURES CONVERSÍVEIS — Depois do sinal vermelho dado aos bonds híbridos, as companhias partiram para a emissão de outro título que mescla dívida e equity: as debêntures conversíveis em ações. Mais uma vez, entretanto, esbarraram na CVM. Em outubro de 2012, a autarquia determinou que o grupo Marfrig republicasse as demonstrações financeiras de 2011 e reapresentasse os dois primeiros ITRs do ano. O problema, segundo o regulador, estava na forma como vinha contabilizando uma emissão de R$ 2,5 bilhões em debêntures conversíveis em ações. O frigorífico registrava, no passivo, apenas os gastos com o pagamento dos juros da oferta; o principal, por sua vez, era contabilizado no patrimônio. Na visão da CVM, contudo, não só esse valor, mas também o montante total captado, deveria ser registrado nessa conta. A Minerva usou o mesmo expediente da Marfrig para contabilizar R$ 300 milhões em debêntures conversíveis e, como resultado, também precisou refazer seus últimos balanços. Em fevereiro deste ano, a autarquia obrigou a companhia a republicar o balanço de 2011 e os dos três primeiros trimestres de 2012.

Nas duas ofertas, a conversão das debêntures em ações está prevista para 2015, data do vencimento dos títulos, a uma relação de troca variável — ela pode ser influenciada pelo preço das ações ou oscilar de acordo com outros indicadores. Como não é possível determinar de antemão o valor final da conversão e, portanto, a fatia que integrará o patrimônio, a recomendação da CVM é que toda a operação seja contabilizada no passivo.

Diante da complexidade das operações e das normas técnicas que regem a matéria — as principais constam dos documentos de número 38, 39 e 40 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) —, os auditores têm se apegado à lógica econômica para avaliar se um instrumento de dívida pode ser registrado como patrimônio. “Faz sentido imaginar que o investidor vai adquiri-lo sem a expectativa de receber nada por isso, a qualquer tempo?”, afirma Rogério Mota, sócio da área de auditoria da Deloitte. Se a resposta for negativa, o correto é classificá-lo como passivo, sentencia o auditor.

O receio da CVM é que, ao registrar uma dívida como capital, a empresa induza o investidor ao erro


EM DECLÍNIO — 
O fato de a CVM ter encrencado com as operações acima não quer dizer que repudie a emissão de instrumentos híbridos. “Nossa restrição é quanto à classificação nos casos que nos foram apresentados”, esclarece José Carlos Bezerra, superintendente de normas contábeis da autarquia. Há, contudo, quem veja nas manifestações do regulador falta de flexibilidade. “Minha percepção é de que ela está sendo conservadora. Nos casos que configuram tentativas de driblar os covenants a reação faz sentido, mas não sei se a CVM está diferenciando essas situações daquelas em que o título tem verdadeiramente a essência de patrimônio”, diz Carlos Alexandre Lobo, sócio do escritório Veirano Advogados.

Diante do posicionamento da CVM, a ânsia pelos títulos híbridos arrefeceu. “Outras companhias estavam aguardando a decisão do regulador sobre a emissão da Energisa para saber se adotariam o mesmo instrumento”, conta Danilo Simões, sócio da KPMG. Verdade seja dita, uma dívida que na prática é patrimônio é coisa rara. “É quase impossível classificar um título de dívida no patrimônio líquido”, reconhece Edison Arisa, coordenador técnico do CPC. No ofício, a CVM pondera que o cômputo dos recursos captados pelos títulos híbridos como patrimônio não traz tantos benefícios assim para as empresas. Como evidência, cita um estudo empírico realizado nos Estados Unidos com analistas buy-side. A pesquisa mostrou que a classificação de um instrumento híbrido como passivo tornou o preço alvo da ação de uma companhia, em média, maior do que quando ele foi classificado como patrimônio líquido. O regulador também aproveitou a oportunidade para esclarecer que, na visão das áreas técnicas da CVM, só há um caso em que não resta dúvidas quanto à natureza patrimonial do título: “as ações ordinárias”
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