Investimento com paixão
Os desafios que tornam os fundos de arte e vinhos uma complicada — e sedutora — empreitada para os gestores

 

Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

A questão era intrigante. Como pode um desenho feito a lápis, cujo custo de produção certamente não passa de 100 reais, valer 200 mil reais passadas uma ou duas décadas? João Correia, fundador da consultoria de arte Collezionista, costumava fazer esse tipo de reflexão no início de sua carreira. Depois de pelo menos 20 anos de atuação na área, muitos deles dedicados a aperfeiçoamentos em história da arte e empreendedorismo, hoje ele sabe o que está por trás de tamanha valorização das obras: uma delicada combinação de fatores simbólicos e econômicos. Por analogia, essa mistura também ajuda a explicar o fascínio e o retorno envolvidos na negociação de outros ativos exóticos, como os vinhos especiais. Apostas em obras de arte e garrafas premiadas de cabernets, chardonnays, pinot noirs e afins formam um nicho bastante restrito conhecido como “passion investments” — relativamente bem desenvolvido no exterior, mas ainda incipiente no Brasil.

Trata-se de juntar o útil ao agradável: um retorno financeiro compensador a um interesse pessoal do investidor. Assim como os fundos tradicionais e as moedas, esses investimentos não estão imunes à crise, mas algumas particularidades ajudam a minimizar o impacto. Profissionais que atuam no mercado de arte, por exemplo, observam que as crises em geral não provocam fissuras nos aspectos intangíveis do investimento, como o status que a posse de uma peça importante garante ao proprietário, o poder de influência que um colecionador adquire em relação aos artistas contemporâneos e até o papel da obra de arte como definidora de identidades nacionais.

De acordo com o Tefaf Art Market Report 2017, o mercado mundial de arte — considerando transações em leilões e galerias, excluindo as compras e vendas fechadas entre particulares (evidentemente de difícil mensuração) — movimentou 45 bilhões de dólares em 2016, praticamente o mesmo montante do ano anterior. O levantamento é feito pela Universidade de Maastricht por encomenda da Tefaf, tradicional feira anual de arte sediada na cidade holandesa. Não há dados específicos sobre a participação atual do Brasil nesse mercado, mas isso não enfraquece a percepção de que o potencial nacional seja “gigante”, na definição de Correia.

A escolha de uma obra de arte envolve a análise de diversos aspectos abstratos e etéreos, o que exige do avaliador uma verdadeira ampliação de horizontes. Ele precisa conhecer e compreender o discurso que fundamenta a estética dos artistas — ou, pelo menos, encontrar um consultor capaz de pinçar, por exemplo, uma tela com a qualidade de um grande pintor entre centenas de opções disponíveis em ateliês e galerias. “É necessário entender o que o artista está pesquisando, sem deixar de fazer uma análise de contexto cultural. O que ele está fazendo é importante para a história? Se a obra apenas relaxa e conforta o espectador, geralmente não é um bom investimento”, observa Correia. Igualmente relevantes são a verificação de autenticidade, uma vez que há obras falsificadas em circulação, a visibilidade do artista no mercado internacional e o número de lotes de cada produção.

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Quem consegue identificar os talentos emergentes pode comemorar os resultados — que, em geral, surgem no longo prazo. Caso tradicional de sucesso no mercado global de arte é o fundo de pensão British Rail Pension Fund, que chegou a ter uma carteira de 70 milhões de dólares em obras de arte e objetos de valor artístico. O fundo começou a comprar as obras em 1974, com retorno anual estimado em 11,3% (as obras foram vendidas ao longo da década de 1980).

Os investidores endinheirados podem, é claro, pessoalmente comprar as obras, mas também têm a opção de aplicar em fundos de investimento que usam o dinheiro dos cotistas para fazer as aquisições. Não há dados mais recentes, mas, segundo Correia, eram cerca de 50 fundos em 2007, número que recuou para 12 em 2010 — podem ter influenciado essa queda os efeitos da crise de 2008 e as precificações inadequadas feitas em alguns fundos.

No Brasil, o único fundo que investe em arte é o Brazil Golden Art (BGA), fundo fechado gerido pelo Brasil Plural. Foi lançado em 2011, com um patrimônio de 40 milhões de reais e 70 investidores. “Muitos já eram colecionadores”, afirma o gestor e museólogo Heitor Reis, responsável pela curadoria do portfólio e por encontrar “obras de boa qualidade e com potencial de valorização”.

No reino de Baco

A paixão pelos vinhos e a valorização dos rótulos especiais no mercado global, especificamente durante os anos de 2009 e 2010, levaram os sócios da Cultinvest Asset Management a lançar, em 2011, o primeiro fundo do País que investe na bebida, o Bordeaux Wine Fund. Eles tinham afinidade com o produto e apostavam no potencial de rendimento das garrafas — além de enxergarem as possibilidades de diversificação de investimentos e de utilização desse apelo para ações de marketing da gestora.

O mercado global de vinhos finos gira cerca de 4 bilhões de dólares por ano e ainda é dominado pelos franceses — especificamente da região de Bordeaux —, responsáveis pelo fornecimento de dois terços dos vinhos dessa categoria. São vários os fatores que fazem um vinho se valorizar, relata Filipe Albert, gestor da Cultivest. Um deles é a implacável lei da relação entre oferta e demanda: quanto mais vinho se consome, menos vinho sobra no mercado, o que aumenta o preço. Outro ponto tem a ver com aspectos tão subjetivos quanto a posição em rankings de publicações especializadas e a nota dada por um crítico poderoso — ou ultrapoderoso, caso do americano Robert Parker.

Também relevantes são os sinais emitidos pelos produtores, e que um investidor atento deve saber decodificar. As decisões do vinicultor e do enólogo (o técnico responsável pela efetiva produção do vinho), que escolhem a proporções entre as cepas de uvas e estabelecem o destino das melhores, podem fazer muita diferença na trajetória de um rótulo especial. Quando uma vinícola contrata um enólogo de renome mostra ao mercado que está disposta a melhorar sua produção. É nesse ponto que o investidor pode enxergar uma boa possibilidade de ganhos.

A safra é fator fundamental na equação do investimento em vinhos. Especificamente no caso de regiões altamente regulamentadas — notadamente Bordeaux e Borgonha, também na França — o ano de produção pode agregar ou tirar valor de uma garrafa. Nessas áreas, são bastante restritas as possibilidades de intervenção humana na vitivinicultura, o que aumenta o peso de fatores climáticos totalmente imprevisíveis — para se ter uma ideia dessa rigidez, não se pode sequer irrigar as parreiras. Assim, os vinhos resultantes de cada safra de uvas podem ter características muito diferentes.

Essas limitações à intervenção humana não são regra no novo mundo — o que por um lado deixa os produtores de outras regiões muito mais à vontade para agir quando necessário, mas por outro provoca uma espécie de uniformização que pode desvalorizar os vinhos como investimento. Afinal, elementos como dificuldade, excepcionalidade e raridade encarecem o resultado final, de qualquer mercadoria. Um Bordeaux de uma boa safra (como as de 2009 e 2010) pode ficar guardado por muito tempo e estima-se que vá atingir seu auge aos 40 anos; armazenado corretamente, pode virar centenário e ter o preço multiplicado muitas vezes.

Assim como acontece com as obras de arte, não faltam vinhos de autenticidade duvidosa. Em geral, as garrafas que escaparam das taças dos milionários estão sob guarda de seus respectivos produtores, que as mantêm como relíquias. Se um vinho excepcional aparecer em outro lugar, pode-se desconfiar de falsificação. E Albert dá um exemplo hipotético. “Em 2013 geou em Bordeaux, a safra evidentemente não foi boa e muitos produtores não fizeram seu primeiro vinho — o rótulo mais respeitado da casa, que recebe as melhores uvas. É possível que daqui a 20 anos alguém ofereça no mercado um ‘Bordeaux 2013’”, ele especula. E aí só um investidor atento terá chances de não cair nesse tipo de armadilha.

Para além dos portais das domaines, um componente relevante do mercado do vinho é o comprador chinês. Um contexto de desaceleração econômica na China entre 2012 e 2013 foi suficiente para derrubar os preços. Nesse período, garrafas do mítico Chatêau Lafite saíram da casa dos mil euros para 500 euros. A situação levou ao fechamento de alguns fundos, cujos gestores precificavam as garrafas adquiridas a valores irreais. Quando os cotistas foram resgatar seus investimentos, perceberam que os ativos valiam muito menos do que os gestores diziam, o que obviamente impediu os saques. Típico fenômeno de bolha.

A Cultinvest encerrou as atividades do Bordeaux Wine Fund no fim de 2016, um ano além do inicialmente previsto. A ideia foi aproveitar preços em alta no período para recuperação dos anos ruins de 2012 e 2013. Albert revela que a gestora estuda iniciar um novo fundo, talvez ampliando o leque — para englobar vinhos de outras regiões produtoras —, mas o projeto depende da melhora do ambiente econômico.

O fundo de vinho da Cultinvest chegou a ter patrimônio de 5 milhões de reais. Usava o dinheiro dos cotistas para comprar os vinhos franceses, que ficavam armazenados no Bordeaux City Bond e sob a guarda de uma consultoria especializada. Como um fundo de qualquer outro ativo, o Bordeaux Wine Fund tinha um benchmark: o índice Fine Wine Investables, da bolsa especializada em vinhos Liv-ex. O indicador reúne 24 rótulos de safras que obtiveram pelo menos 95 pontos de Robert Parker, e cujos preços variam de 120 a 500 euros. A adesão à precificação da bolsa virtual foi uma maneira encontrada pelos gestores de garantir transparência ao fundo (e evitar problemas do tipo da bolha chinesa).

Os investidores do fundo tinham a opção de resgatar cotas em garrafas, desde que no exterior — a regulamentação brasileira de fundos de investimento não prevê essa modalidade de resgate. A alternativa acabou sendo a escolhida por 40% dos cotistas, segundo Albert. Para apreciadores de vinhos especiais, a “aquisição” dos vinhos por meio do fundo era vantajosa pelo preço, mais baixo que o do varejo tradicional, e pela exclusividade, já que muitos dos rótulos da carteira nem chegavam por aqui. O retorno do investimento foi, finalmente, desfrutado em cada gole.


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