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Efeitos colaterais
As intenções costumam ser as melhores, mas os resultados dos incentivos tributários podem se tornar perversos para o mercado de capitais

efeitos-colateraisO sistema tributário brasileiro é caótico. Repleto de detalhes obscuros e incertezas. Em nenhum outro país do mundo as empresas demoram tanto para cumprir com suas obrigações fiscais. Departamentos contábeis e jurídicos no Brasil gastam 2.600 horas por ano para manter os impostos em dia, de acordo com dados da PwC — em segundo lugar está a Bolívia, com menos da metade desse tempo, 1.025 horas.

A porcentagem do lucro paga pelas empresas nacionais na forma de contribuições obrigatórias também é alta: 69% do lucro tributável (o ganho que sobra após todas as deduções), segundo o Banco Mundial. É a décima maior do mundo e bastante pesada para uma nação em desenvolvimento. Em meio a esse cenário, qualquer desoneração tributária é festejada; no mercado de capitais, em particular, ela pode fazer toda a diferença. A análise da validade de conceder esse tipo de estímulo, contudo, não é simples. Por trás de um isento feliz, geralmente há um concorrente desiludido.

Letras turbinadas
Um exemplo de incentivo tributário é a isenção de imposto de renda (IR) a pessoas físicas que investem em letras de crédito imobiliárias (LCI) e em letras do agronegócio (LCA). O benefício, em vigor desde 2004, foi crucial para o robusto crescimento da emissão e da distribuição desses títulos. Para se ter uma ideia, o estoque de LCIs registradas na Cetip em janeiro de 2009 era de cerca de R$ 10,7 bilhões. Em outubro deste ano, já estava em quase R$ 138 bilhões. A versão agrícola teve uma expansão um pouco mais tímida, embora ainda assim consistente (veja tabela abaixo).

Não é difícil entender o motivo dessa evolução acentuada. Ao se ver livre do IR, o comprador de uma LCI consegue obter rendimento entre 80% e 95% da taxa DI (que acompanha de perto a Selic). Quanto mais arriscado o banco emissor da letra, maior a remuneração. Isso porque, independentemente do lastro da operação, a responsabilidade por honrar o pagamento é da instituição financeira. Ainda que o banco vá à bancarrota, porém, o investidor tem um conforto: o ressarcimento do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), no valor de até R$ 250 mil por CPF.

Considerando que vivemos num país com déficit habitacional de quase 6 milhões de moradias, em que um terço da riqueza produzida (PIB) vem do agronegócio, parece razoável o governo querer estimular o fluxo de dinheiro dos poupadores para papéis que alavanquem os setores imobiliário e agrário. O problema é que tantos atrativos têm provocado uma competição injusta com outros títulos privados. Nem os certificados de recebíveis voltados ao fomento dos mesmos setores (CRI e CRA), também isentos de IR para a pessoa física, progrediram como as letras. De 2009 até outubro deste ano, o estoque de CRIs subiu cerca de 620%, de R$ 7,25 bilhões para quase R$ 52 bilhões, contra uma aumento de quase 1.200% das LCIs. Já os CRAs atingiram R$ 1,7 bilhão, ante R$ 36,7 bilhões da LCA.

A vantagem das letras sobre os certificados é explicada por duas razões. Em primeiro lugar, elas são emitidas por bancos, o que lhes proporciona alta capilaridade na distribuição. Além disso, contam com a garantia da instituição financeira e, se tudo der errado, com o colchão do FGC. Quando o benefício tributário foi adicionado a essas vantagens naturais, as letras se tornam imbatíveis.

A dúvida sobre a eficácia da medida passa, então, por uma visão política: quem se quer, afinal, estimular com a regalia fiscal? Enquanto os certificados levantam recursos para empresas, sejam elas incorporadoras imobiliárias, sejam cooperativas agrícolas ou outros emissores, as letras angariam dinheiro para os bancos. “A questão é que as letras não resultam, necessariamente, em estímulo à economia”, comenta Alexandre Zákia, CEO da gestora CultInvest. Luiz Fernando Figueiredo, sócio da gestora Mauá Sekular, vai além. O benefício às letras, afirma, está prejudicando não apenas as emissões do setor produtivo como a parcela da indústria de fundos de investimento que corre risco investindo em renda variável — caso dos fundos de ação e multimercado. “Devido a esses incentivos, a indústria de fundos caminha para a morte”, sentencia.

Na comparação com os títulos incentivados, fundos de investimento saem perdendo

Incentivo para quem?
De fato, na comparação com os títulos isentos, os fundos parecem desvantajosos. São mais arriscados e cobram IR sobre a rentabilidade, que vai de 15% a 22,5%, dependendo dos ativos em carteira e do prazo da aplicação. Os investimentos em fundos também não possuem cobertura do FGC nem garantia do gestor ou administrador. Para piorar, é preciso arcar com uma taxa de administração, que pode chegar a 4% em alguns casos, e se sujeitar ao come-cotas — cobrança antecipada de imposto de renda, realizada em maio e novembro, que diminui o valor das cotas e, dessa forma, os rendimentos futuros. “É uma aberração, um tratamento injusto. O imposto deveria ser cobrado no resgate, como acontece com qualquer outro investimento”, diz Zákia.

De acordo com dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercado Financeiro e de Capitais (Anbima), a participação relativa dos fundos de ação e multimercado no bolo de recursos da indústria de fundos vem diminuindo ano a ano. Em 2007, os fundos de ações chegaram a concentrar 15,51% do R$ 1,7 trilhão sob gestão no País, o equivalente a mais de R$ 260 bilhões. Em setembro de 2014, o percentual havia caído para 7,46% dos mais de R$ 2,6 trilhões, totalizando cerca de R$ 198 bilhões em recursos geridos — LCIs e LCAs somadas têm um estoque de R$ 174,5 bilhões. A participação dos fundos multimercado caiu de 23,78% para 19,1%. Entre setembro de 2013 e setembro deste ano, os fundos de ação sofreram resgates acumulados de R$ 12 bilhões, e os multimercado de R$ 41,1 bilhões. É verdade que o fenômeno pode ser explicado, em boa parte, pela volatilidade em função da época eleitoral e pela alta da Selic, de 9% para 11% no período. Ainda assim, gestores avaliam que os incentivos fiscais atribuídos a produtos bancários contribuem significativamente para a debandada de recursos.

Para evitar distorções como essa, Figueiredo defende que os descontos fiscais sejam oferecidos com parcimônia. “É muito mais lógico que investimentos arriscados, de longo prazo e no setor produtivo, tenham incentivos”, diz o gestor, observando que isentar papéis de pouco risco não contribui para mudar a cultura brasileira, acostumada com retornos polpudos e volatilidade módica depois de anos de Selic alta. A visão é compartilhada por Paulo Gouvêa, diretor de mercado de capitais da XP Investimentos. “Se a isenção fiscal atrair poupadores para o mercado de capitais, ela será bem-vinda. As LCIs e LCAs, no entanto, apenas se converteram em mais uma fonte de captação para bancos”, afirma.

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Data para acabar
A tática de atribuir descontos fiscais para ativos mais arriscados também foi usada pelo governo. Ela está presente na edição na Lei 12.431, de junho de 2011, e na Medida Provisória (MP) 651, de julho deste ano. Enquanto a primeira libera do pagamento de IR a pessoa física que comprar debênture de infraestrutura, a segunda oferece desoneração tributária ao investidor individual que adquirir, diretamente ou por meio de fundos específicos, ações de pequenas e médias empresas (PMEs) listadas em bolsa de valores.

O motivo por trás da criação de ambas as iniciativas é louvável. A Lei 12.431 visa acelerar os investimentos em obras importantes para o desenvolvimento do Brasil e de sua péssima condição logística — a pior dos BRICS, grupo composto também por Rússia, Índia, China e África do Sul. Já a MP 651, convertida, em novembro, na Lei 13.043, pretende ampliar a demanda por ações de PMEs, encorajando companhias de menor porte a usar o mercado de capitais como veículo de captação. Uma crítica que se faz à medida é o risco de poupadores serem induzidos a escolher uma alternativa mais arriscada em busca de menor carga tributária. Gouvêa refuta essa possibilidade. “O comprador sabe que a isenção só vale se houver ganho de capital; caso contrário, é inócua. A necessidade de analisar fundamentos, portanto, continua a existir”, argumenta.

Na opinião de Figueiredo, a isenção de IR proposta para as ações de PMEs é adequada. “Quando o objetivo é desenvolver um nicho incipiente, a isenção de imposto faz sentido, desde que tenha data para acabar”, ressalta. Nesse caso, assim foi feito. Ao contrário da desoneração para letras de crédito e certificados de recebíveis, o incentivo para PMEs e debêntures de infraestrutura tem data para terminar — 2023 e 2020, respectivamente. Porém, é difícil prever se, quando esse dia chegar, o benefício será de fato suspenso. Quando a lei 12.431 foi publicada, era previsto que as debêntures seriam incentivadas apenas até 2015, prazo esticado em cinco anos em junho último. Um dos problemas das isenções é a dependência que elas geram. “Acabar com o incentivo para LCAs e LCIs criaria uma situação difícil para bancos médios, que encontraram uma oportunidade de captar por meio da distribuição desses papéis”, observa Gouvêa.

Tanto a atribuição como a retirada da isenção de imposto sobre um produto financeiro são decisões delicadas. Os riscos começam com os desincentivos eventualmente gerados para outros segmentos e terminam com a possibilidade de a vantagem se transformar numa bengala para o próprio beneficiado. “Ninguém quer um mercado movido por incentivos fiscais. Mas, como temos que lidar com eles, é preciso que seus efeitos e sua eficácia sejam avaliados constantemente”, frisa Ana Luiza Salles Oliveira, sócia da PwC. Os números da indústria de fundos e dos certificados de recebíveis mostram que esse é um bom momento para revisitar o tema.

Ilustrações: Marco Mancini/Grau180.com


g“Queremos negócios movidos por incentivo fiscal?” foi tema do primeiro Grupo de Discussão Tributação, realizado pela Capital Aberto em São Paulo. Veja mais aqui.


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