Falta combinar com os russos
Companhias precisam cooperar para que o Formulário de Referência seja útil aos investidores

O mercado de capitais brasileiro celebra em 2011 um ano de vigência do Formulário de Referência, considerado um divisor de águas na qualidade das informações prestadas pelas companhias abertas do País. Sem dúvida, trata-se de um grande avanço proporcionado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) por meio de sua Instrução 480. Entretanto, para que o formulário se torne algo útil aos investidores, as companhias também devem cooperar, fornecendo informações adequadamente. Infelizmente, isso não vem ocorrendo até o momento.

Durante o ano de 2010, o item 13.11, relativo à remuneração dos administradores, monopolizou o debate, opondo regulador e diversas empresas listadas na esfera judicial. Muito maior, porém, é o problema de transparência nas questões de governança encontrado em uma recente pesquisa com os Formulários de Referência das 215 maiores companhias da Bolsa. Apesar de raras e honrosas exceções, o cenário geral é desolador. As empresas tratam suas informações como algo a ser dado a conta-gotas — apenas o mínimo necessário e exigido por lei. Logo, o valor informacional dos formulários tem sido muito baixo, demonstrando imaturidade ou mesmo má vontade na prestação de contas.

Vejamos alguns exemplos. O item 12.4 solicita que as empresas revelem a frequência das reuniões do conselho de administração. Essa é uma questão muito simples, que não oferece impactos sobre a “estratégia do negócio” nem outra justificativa para que não seja respondida a contento. Observemos, então, as respostas de quatro empresas. A primeira relata que “as reuniões são realizadas sempre que existam assuntos a serem deliberados da competência do conselho de administração”. A segunda afirma que o órgão “reunir-se-á sempre que convocado”. Uma terceira escreve que “não há uma frequência preestabelecida”. E a quarta companhia limita-se a dizer que “as reuniões ocorrem para atender às determinações legais e, extraordinariamente, quando demandadas por fatos relevantes”.

Além dessas, há inúmeras respostas estapafúrdias. Há companhias que chegam a copiar parágrafos do estatuto social que não têm qualquer relação com a pergunta feita. No geral, esse comportamento não ajuda o investidor a compreender a essência da questão: ou seja, como os conselhos dessas empresas vêm funcionando.

Mais adiante, o formulário pede em seu item 12.6 a identificação dos administradores. Nessa questão, encontramos empresas com apenas dois conselheiros reportados ou com dois terços do conselho composto de diretores. Ambos os casos indicam ou situações irregulares ou erros crassos de preenchimento. Outra preciosidade: uma grande companhia diz possuir um comitê de auditoria constituído por um conselheiro de administração e um suplente do conselho fiscal (uma evidente confusão entre as atribuições de gestão e fiscalização da empresa).

Mudando de tema, o item 13.5 requer às companhias a divulgação da quantidade dos valores mobiliários detidos por membros do conselho de administração, diretoria ou conselho fiscal. Trata-se de um dado importante, na medida em que permite entender os interesses econômicos e poderes políticos nas mãos dos administradores. De forma inexplicável, algumas empresas simplesmente passam por esse ponto com um “não aplicável”. Outra, mais criativa (e listada no Novo Mercado), afirma que “não houve”. Difícil para o investidor é imaginar o que “não houve”.

A questão 13.11, relativa à remuneração dos principais órgãos sociais, já foi muito debatida. Cerca de 25% das empresas não divulgaram tal informação, alegando o processo movido pelo Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Rio de Janeiro (Ibef — RJ), que liberou seus associados de preencherem essa parte do formulário. Mas outras respostas chamam a atenção. Algumas recorreram ao “não aplicável”, como se tal pergunta não lhes dissesse respeito. Outras reportaram remunerações médias superiores à maior delas, uma verdadeira proeza matemática.

Uma companhia, por exemplo, divulgou remuneração média anual de R$ 375 mil aos diretores, apesar de ter limitado a remuneração máxima a R$ 51,6 mil. Vale também destacar os extremos. Uma empresa apresentou remunerações média e máxima de ínfimos R$ 49 e R$ 80 aos seus diretores, respectivamente. Já outra, mais “igualitária”, afirma que as remunerações são iguais, de R$ 2,45 milhões para cada um dos seis diretores. Estranho é notar que a companhia reportou lucro líquido de apenas R$ 3,8 milhões em 2010. Estariam os executivos sendo excessivamente remunerados?

As perguntas sobre a avaliação de desempenho, sistemas de remuneração e gestão de riscos também merecem destaque: um verdadeiro festival de “copia e cola” e frases genéricas, sem explicação clara de como as empresas lidam com esses temas.

Será que a CVM está pedindo informações despropositadas com o Formulário de Referência? Procuramos verificar essa questão analisando o documento equivalente publicado por 205 companhias francesas, denominado Document de Réferénce. Escolhemos a França por ser um país fora do ambiente anglo-saxão, caracterizado por empresas de controlador definido, de forma similar às nossas.

Apesar da natural variabilidade nas informações prestadas, observamos uma qualidade média da transparência nas informações de governança bem superior à das empresas brasileiras. Como exemplo, voltemos à questão sobre as reuniões do conselho. Geralmente, as companhias francesas informam não apenas o número de encontros realizados, como também sua duração, principais temas debatidos e presença dos conselheiros nas reuniões. Outra diferença substancial diz respeito à questão da independência. Enquanto a maioria das empresas brasileiras não informa quais conselheiros são independentes, as francesas discutem os critérios usados para avaliar a independência de cada conselheiro e apresentam a relação daqueles considerados independentes após reflexão do conselho.

Portanto, as informações solicitadas pela CVM não são baseadas num “modismo anglo-saxão”. Empresas da França com estruturas acionárias semelhantes às das brasileiras usualmente respondem a questões de mesmo teor com padrão muito mais consistente.

Para finalizar, vale lembrar a pobreza das informações no Brasil sobre um item essencial: o currículo dos administradores. Como o investidor pode aferir se determinado administrador possui méritos para atuar na alta gestão de uma companhia aberta? A maior parte das empresas não mostra informações essenciais relativas a carreira, educação e cargos ocupados em outras organizações. No outro extremo, alguns conselheiros parecem tentar aproveitar-se da “oportunidade” para fazer do documento um verdadeiro mural de empregos, conforme o extrato de um currículo selecionado: “…especializado em aumentar rentabilidade; estabelecer e expandir mercados, particularmente em ambientes instáveis. Forte liderança, orientação a resultados, proatividade, senso de urgência e mão na massa são as competências desenvolvidas ao longo dos anos”.

Dado o nível de imaturidade na prestação das informações no Formulário de Referência, provavelmente faz-se necessária maior fiscalização da CVM ou mesmo uma nova regulação que detalhe o que deve ser divulgado. Outra fonte de pressão poderia vir dos investidores. Infelizmente, porém, não se observaram até o momento queixas públicas e estruturadas a respeito da escassez das informações entregues. Como diversos investidores institucionais fazem parte do bloco de controle de algumas empresas citadas neste texto, e as pessoas físicas raramente leem tais documentos, as perspectivas não são animadoras. O Formulário de Referência é, sem dúvida, um grande avanço potencial promovido pela CVM. Parafraseando Garrincha, falta agora “combinar com os russos”, para que o gol saia como o planejado.


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