Estratégia para concorrer
Projeto da ATS para negociação simultânea de ações exige mudanças na regulamentação e lança questões sobre a formação de preços

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Resultado de uma joint venture entre a Nyse Euronext e a brasileira Americas Trading Group (ATG), a Americas Trading System Brasil (ATS) quer acabar com o monopólio da BM&FBovespa. Seu plano é, em março, oficializar o pedido à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para operar uma plataforma de negociação de ações. Além dela, a norte-americana Direct Edge está em conversas com a autarquia e também planeja solicitar em breve a autorização para lançar uma bolsa de valores no Brasil. Essa não é a primeira vez que agentes estrangeiros declaram interesse em ter uma plataforma de ações no País. E a cada nova rodada de promessas fica mais clara a complexidade de um novo player ingressar nesse campo há muito dominado pela bolsa paulista.

O projeto da ATS esbarra, em sua essência, na regra vigente. A ATS promete lançar, até 2014, uma plataforma para negociação de ações sob a forma de um mercado de balcão organizado (leia mais no Box). O modelo de negócio não será atrair empresas novas, mas, sim, servir como um segundo ambiente de negociação para companhias já listadas na BM&FBovespa. O problema é que a Instrução 461, criada em 2007 para organizar o funcionamento dos mercados regulamentados de valores mobiliários, impede, no artigo 57, a negociação simultânea de ações em mercados de bolsa e de balcão organizado.

A principal diferença entre esses dois ambientes é a transparência dos preços e negócios realizados. Num mercado de balcão organizado, a regulação não exige a divulgação imediata das transações. É permitido à plataforma informar as referências de preço do dia anterior somente na abertura do pregão, o que confere aos investidores a chance de negociar sem interferir de imediato nas cotações. Em bolsa, ao contrário, cada negócio é divulgado e impacta os preços imediatamente. Outra diferença é que nos mercados de balcão é permitido operar sem intermediários, segundo a Instrução 461 — ainda que a Cetip, mercado de balcão organizado focado em renda fixa, tenha optado por exigir a intermediação, assim como a ATS pretende fazer.

O veto à negociação simultânea garantiu uma reserva de mercado às bolsas locais na época da desmutualização. Foi a maneira encontrada para preservar o modus operandi do setor, uma vez que já se previa a abertura de capital tanto da BM&F quanto da Bovespa (que mais tarde se juntaram, formando a BM&FBovespa). Alterar demais o ambiente regulatório poderia prejudicar o preço obtido por cada bolsa na oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês). No exterior, investidores já se preocupavam com a perda de mercado sofrida por bolsas como a Nyse em razão do crescimento dos negócios realizados em mercados de balcão, como as chamadas dark pools, que são plataformas usadas para transações de grandes lotes. O impedimento à negociação simultânea também permitiu avançar no processo de desmutualização das bolsas sem enfrentar, de imediato, algumas deficiências regulatórias. Em 2007, não havia regras que obrigassem os intermediários a executar as ordens dadas por um investidor pelo melhor preço disponível no mercado — condição essencial nos sistemas em que um mesmo ativo está disponível para negociação em mais de um ambiente. A lacuna só foi preenchida anos depois, em 2011, quando a CVM editou a Instrução 505, sobre normas e procedimentos a serem observados nas operações de valores mobiliários.

O veto à negociação simultânea garantiu reserva de mercado às bolsas locais na época da desmutualização

A regra passou a exigir que os intermediários executem as ordens nas condições definidas pelo cliente ou, na falta de indicação, “nas melhores condições que o mercado permita”, levando em conta fatores que vão além do preço, como custo, rapidez, volume e probabilidade de execução e liquidação. Outra responsabilidade imposta aos intermediários pela Instrução 505 é a de assegurar que os clientes sejam informados dos diferentes mercados em que os valores mobiliários podem ser negociados. A medida é uma clara demonstração de que, ao longo dos anos, a regulação tentou se preparar para um ambiente competitivo.

A ATS reconhece a barreira da negociação simultânea, mas não a vê como um empecilho. Alan Gandelman, presidente da plataforma, confirma a intenção de formalizar o pedido na CVM para operar mesmo com a regra em vigor. A ideia é trabalhar em conjunto com o regulador e promover os ajustes necessários à viabilidade do projeto enquanto a solicitação é analisada. Fontes consultadas pela CAPITAL ABERTO confirmam que a CVM não vê motivos para manter o veto à dupla listagem. Pelo contrário, sempre soube que uma reforma da Instrução 461 seria, em algum momento, necessária.

PREÇOS DECOMPOSTOS — Um mercado fragmentado de negociação de ações, no entanto, suscita problemas estruturais que vêm sendo discutidos em vários países. A dúvida é como assegurar a eficiência da formação dos preços quando o ativo é negociado em mais de uma praça, sob normas distintas.

, Estratégia para concorrer, Capital AbertoAtualmente, 100% das negociações públicas com ações no País ocorrem na BM&FBovespa. Isso significa que o ambiente da Bolsa — e, portanto, os preços nela praticados — representa a totalidade das intenções de compra e venda de um papel. Com a chegada de um ou mais concorrentes, a demanda se diluirá. Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, 13 bolsas de valores e cerca de 50 mercados de balcão estão em funcionamento atualmente, o que significa uma demanda altamente dispersa para os ativos transacionados em vários locais. A crítica está no fato de os preços praticados em todos esses ambientes serem habitualmente referenciados apenas nas praças principais. Dessa forma, os valores negociados podem não representar a totalidade das intenções de compra e venda do ativo.

A discussão em torno da eficiência da formação de preço de um mercado fragmentado está acalentada lá fora. Em dezembro passado, uma subcomissão do Senado norte-americano ouviu representantes das principais plataformas locais de negociação. Nyse Euronext e Nasdaq OMX teriam defendido que as diferenças regulatórias entre os ambientes de bolsa de valores e de balcão prejudicam o mercado ao fomentar a migração de significativos volumes de negociação para os segmentos de menor transparência.

As diferenças de regras entre uma bolsa de valores e um mercado de balcão nos Estados Unidos são mais significativas do que deveremos ver no Brasil. Uma dark pool, por exemplo, casa grandes ordens de compra e venda fora do ambiente de bolsa preservando o anonimato das partes envolvidas até que a transação esteja encerrada. Por aqui, esse modelo não poderia ser replicado, porque o artigo 22 da Instrução 505 impede o sigilo sobre os negociadores. Ainda assim, um ambiente de balcão moderno e sofisticado promete atrair investidores interessados em comprar e vender grandes lotes sem impactar as cotações.

Não se sabe como os preços formados em cada um dos ambientes serão conjugados no Brasil

Não se sabe como os preços formados em cada um dos ambientes serão conjugados no Brasil. O impasse vale tanto para os planos da ATS, que pretende ser um balcão organizado, quanto para a Direct Edge, que promete chegar constituída como bolsa de valores. O País abrigou negociações simultâneas quando as bolsas regionais operavam os mesmos papéis, independentemente do estado em que tinham sido originalmente listados. O diálogo entre elas era feito por meio de leilões. Se uma ordem era dada por um preço muito diferente do que estava sendo praticado no mercado principal, toda a negociação era suspensa para que um leilão acontecesse.

Já na época esse modelo de interferência era considerado antiquado. “Hoje, a chegada de um concorrente exigiria a criação de um sistema de informações”, opina Gilberto Biojone, consultor e membro da International Stock Exchange Executive Emeriti (Iseee). Essa “central” de cotações se assemelharia ao National Market System (NMS) que, nos Estados Unidos, monitora os diversos mercados e divulga as melhores ofertas de compra e venda de um ativo.

A autorregulação é outro aspecto a ser contornado em um cenário de mais de uma plataforma de ações atuando no Brasil. A Instrução 461 exige que todos os mercados organizados, sejam eles de bolsa ou balcão, tenham uma estrutura de autorregulação responsável por identificar possíveis violações a regras, condições anormais de negociação ou comportamentos que ponham em risco a credibilidade do mercado. Assim, ATS e Direct Edge teriam que criar suas unidades autônomas de supervisão do mercado ou contratar um prestador de serviço que assuma a tarefa. A fragmentação tende a tornar mais complexo e custoso o trabalho da CVM, que precisará manter os olhos sobre todos esses agentes, considerando as regras criadas por cada um deles. Não por acaso a consultoria britânica Oxera, em estudo de junho de 2012 produzido a partir de uma encomenda da CVM, estimou um incremento de cerca de US$ 10 milhões ao ano nos custos totais de regulação.

Um balcão para começar

De todas as candidatas a concorrer com a BM&FBovespa, a Americas Trading System Brasil (ATS) é a primeira a declarar que não nascerá como uma bolsa de valores. O projeto é iniciar como um mercado de balcão organizado voltado a negociar apenas ações de empresas já listadas para, depois, expandir os negócios e se tornar uma bolsa. A ATS também largou na frente ao anunciar seu principal executivo no Brasil: Alan Gandelman, que durante cinco anos foi presidente da corretora Icap. Além disso, se cercou de assessores de peso, como os escritórios Motta, Fernandes Rocha e BM&A.

O ponto forte do projeto da ATS, segundo Gandelman, está em seu DNA. A Nyse Euronext, sócia minoritária da ATS, será o chamariz para os estrangeiros que ainda não aplicam no Brasil. Na outra ponta está a ATG, empresa brasileira, criada há dois anos por ex-executivos da Ágora Corretora e especializada em negociação eletrônica e roteamento de ordens. “Muito fluxo já passa pela ATG, mas hoje é direcionado para a BM&FBovespa. É um caminho natural virarmos uma bolsa”, diz Gandelman, que promete oferecer uma tecnologia ainda não disponível no mercado.

O executivo aposta em dois diferenciais: a capacidade da ATS de atrair novos investidores com a tecnologia da Nyse, que oferecerá maior velocidade de execução de ordens; e a vantagem de negociar grandes lotes em um mercado de balcão. “O crescimento do volume negociado beneficiaria, inclusive, a BM&FBovespa”, ressalta Gandelman, argumentando que os negócios atraídos pela ATS repercutirão também na Bolsa. “Pretendemos ter 15% do market share em 2014”, afirma.

A necessidade de uma central de compensação e liquidação (clearing), um dos pontos mais críticos à concorrência com a BM&FBovespa, não seria um problema para a ATS. Gandelman acredita que a Bolsa não se negará a compartilhar sua central, porque poderá ganhar em duas pontas: como prestadora de serviço; e na esteira da liquidez trazida pela nova plataforma. E na hipótese de não haver acordo? Gandelman não revela seu plano B, embora afirme que ele já existe.

Já a Direct Edge pretende ser uma bolsa de valores tradicional. Segundo o seu diretor de estratégia, Anthony Barchetto, a casa promete, através da concorrência, tornar o mercado brasileiro mais competitivo, barato e acessível para o investidor. O foco é trazer sua expertise em inovação tecnológica de alto desempenho. “Vamos adaptar nosso modelo de negócios para o Brasil”, diz. (Yuki Yokoi e André Rossi)


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