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Entre dois públicos
A influência do governo sobre suas controladas incomoda investidores e levanta o debate: é possível conciliar os papéis de estatal e companhia aberta?

, Entre dois públicos, Capital Aberto

Os porta-vozes da iniciativa privada tradicionalmente dizem sentir repulsa pelo Leviatã — figura utilizada pelo filósofo britânico Thomas Hobbes para descrever a necessidade de um Estado forte. Mas, na verdade, essa é uma relação de amor e ódio. O mesmo Estado que cobra impostos e pode dificultar a atuação dos empresários também concede empréstimos vultosos e toma medidas que atrapalham a vida dos concorrentes.

A preocupação é antiga, mas vez ou outra emerge com força, estimulada por situações controversas. Em setembro de 2010, por exemplo, as manobras para a capitalização da Petrobras deixaram ressentidos muitos acionistas minoritários. A esse episódio somou-se a discussão pública entre Guido Mantega, ministro da Fazenda, e Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras, sobre aumentar ou não o preço da gasolina. De um lado, havia a o problema da inflação, capaz de tirar o sono dos governantes; de outro, a necessidade de manter a margem de lucro diante do aumento dos preços internacionais. Para completar o quadro, a pressão pela saída de Roger Agnelli da presidência da Vale, oficializada em abril, acirrou os ânimos. Mesmo ostentando o título de maior empresa privada do País, a mineradora demonstrou não estar livre de pressões vindas do Planalto, que há tempos sinalizava o desejo de se livrar de Agnelli. Se olharmos para trás, não é difícil encontrar casos de uso ostensivo do poder estatal em companhias abertas (leia a secão Memórias na página 66).

O casamento entre o dinheiro privado e o estatal, quando se trata de empresas de capital misto e aberto, inclui ainda uma terceira figura — a dos acionistas minoritários. Esses, muitas vezes, perguntam-se se o investimento que fizeram nessas companhias vem sendo usado para gerar valor a todos os acionistas, e não somente ao Estado. Os mais liberais chegam a defender que o governo jamais deveria ser um sócio majoritário, porque nem sequer poderia assumir a função de empresário.

Cerca de 40 companhias abertas de controle estatal têm ações negociadas na Bolsa atualmente, conforme mostrou um cruzamento de dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da BM&FBovespa feito pela CAPITAL ABERTO. Esse quadro está longe de poder ser considerado uma “jabuticaba” — para usar um termo que bem descreve os fenômenos tipicamente nacionais —, porque alguns dos nossos pares no cenário internacional esbanjam uma cultura estatizante. Não encontramos dados mundiais compilados, porém países como a Rússia e a China são conhecidos pela mão pesada do Estado nas empresas. Na América Latina, além do ímpeto estatal revelado por governos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia, a Argentina utiliza os fundos de pensão das empresas controladas pelo Estado para ganhar espaço em companhias privadas.

No mundo desenvolvido, esse modelo também é presente. Um levantamento preliminar realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — grupo formado por 31 países ricos — entre seus membros indicou que, dentre 27 países pesquisados, 15 têm empresas listadas em bolsa nas quais o governo é majoritário, e 16 em que ele aparece como sócio minoritário. Os países com maior número de companhias listadas com controle estatal são a Polônia (11), Coreia do Sul (8) e Grécia (6). Áustria, Bélgica, Chile, Japão, República Tcheca, Finlândia, Noruega e Eslovênia têm três cada um; França tem duas; e Nova Zelândia, Suíça e Reino Unido, uma cada. No total, 21 têm empresas com participação estatal listadas em bolsa. Em seis (Austrália, Canadá, Estônia, Luxemburgo, México e Portugal), não há nenhuma companhia listada com ações em posse do governo federal. Em alguns desses países, foram contabilizadas apenas empresas com participação do governo federal, portanto, é provável que o número seja maior. A OCDE planeja divulgar o estudo completo ainda este ano.

MAIS PERTO, MAIS ASSUSTADOR — O conflito de interesses entre a agenda política e o lucro esperado pelos acionistas leva alguns a defenderem que empresas públicas não deveriam ir a mercado: “Elas respondem a um acionista controlador que pode se dar ao luxo de ter prejuízo em nome da política econômica”, diz Roberto Faldini, consultor de governança corporativa.

“Estatais respondem a um acionista controlador que pode se dar ao luxo de ter prejuízo em nome da política econômica”

Para o investidor Rodrigo Constantino, sócio da gestora de recursos Graphus Capital, praticamente todos os setores, mesmo os estratégicos como o de petróleo, deveriam estar integralmente nas mãos da iniciativa privada. Entretanto, essa convicção não o impede de investir em ações dessas companhias. “Uma má empresa pode ser uma boa compra para o minoritário e vice-versa. Nós consideramos a roubalheira e a ingerência política e cobramos um preço por isso.”

Enquanto alguns brasileiros veem um cenário sombrio, os estrangeiros se mostram mais tolerantes. Embora percebam eventuais interferências e considerem a politização das companhias abertas um fator de desestímulo, isso não faz com que se afastem do mercado de capitais brasileiro. Na verdade, acham que, na comparação com outros emergentes como a Rússia e a China, o Brasil está extremamente avançado quando se trata da governança desse tipo de sociedade. “As brasileiras não são perfeitas, mas vejo o Brasil como um dos países que mais seguem as boas práticas em suas companhias mistas. De maneira geral, consegue agradar acionistas”, afirma John C. Wilcox, da consultoria Sodali.

Diante da aparente satisfação internacional, o presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), Walter Mendes, questiona com quais países estão nos comparando e aonde queremos chegar. Mendes aponta a Rússia e a Argentina como exemplos da capacidade do Estado de destruir o dinamismo dos mercados e afugentar os minoritários. A Amec já promoveu um seminário para mostrar sua preocupação com o crescimento da influência governamental nas companhias abertas.

DOS MALES O MENOR — Boa parte dos especialistas em mercado de capitais e governança corporativa ouvidos pela reportagem, entretanto, tem uma visão menos pessimista. Para eles, a abertura de capital é uma maneira de encontrar um meio-termo entre a potencial ineficiência da estatização completa e a impossibilidade de privatizar todas as empresas. A vantagem de listar estatais na bolsa de valores é proporcionar aos pagadores de impostos e consumidores mais acesso a informações sobre o patrimônio público. “Se a possibilidade de vender não existe porque o governo considera determinado setor estratégico, por exemplo, a abertura ao mercado é uma boa opção”, opina o professor de finanças corporativas da FGV Oscar Malvessi.

As estatais consultadas pela reportagem avaliaram positivamente as suas condutas como empresas de capital aberto. A assessoria de imprensa da Petrobras afirmou que a impressão de alguns investidores de que, em certos momentos, a companhia é administrada com foco no interesse do Estado não condiz com a realidade. “A empresa tem sido reconhecida nacional e mundialmente pela sua governança e já foi premiada diversas vezes por isso”, afirmou por e-mail. A petrolífera não cita a política de controle da inflação como um motivo para não reajustar os preços e declara que, embora busque “praticar valores de paridade aos preços competitivos de seus concorrentes internacionais”, ela só faz as alterações quando entende que a cotação atingiu um valor estável. “A política de preços adotada pela Petrobras de não repassar para o consumidor brasileiro as flutuações de curto prazo tem se mostrado competitiva ao garantir uma adequada remuneração com a venda dos derivados, gerando os recursos para seu programa de investimentos”, afirma a companhia. Já a assessoria de imprensa do Banco do Brasil chamou a atenção para o fato de ser o único entre os grandes bancos nacionais a ter ações listadas no Novo Mercado.

Desde a liberalização da economia, na década de 90, houve vários avanços no comportamento das estatais, como ressalta o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). “A situação é muito melhor que no passado, mas é preciso ficar atento para o Estado não usar essas companhias de forma paternalista”, alerta Adriane de Almeida, coordenadora do centro de conhecimento do IBGC. A sócia-diretora da Better-Governance, Sandra Guerra, evidencia a necessidade de as companhias serem mais ágeis na hora de corrigir ou esclarecer aquilo que o mercado entende como falha ou intervenção: “Fatos problemáticos têm um poder de repercussão enorme. Se não houver reação e mudanças, eles podem sinalizar um retrocesso em termos de transparência e independência”.

A listagem de estatais proporciona aos pagadores de impostos acesso a informações sobre o patrimônio público

A visão de Daniel Blume, analista da OCDE, difere um pouco da de seus colegas. “O investidor sabe o que está comprando quando se associa ao Estado, sabe que há outras preocupações em jogo”, observa. Para ele, é aceitável o governo usar sua posição de controlador para apoiar projetos políticos, desde que isso seja feito com transparência e previsibilidade. Um dos exemplos citados por Blume é a petrolífera norueguesa Statoil. Lá, os planos administrativos, políticos, sociais e ambientais do Estado para a companhia são expostos em reunião anual com os sócios e não podem ser mudados de uma hora para outra. “Isso permite aos acionistas saber o destino de seus recursos. A interferência precisa ser pontual e não no dia a dia, através da imprensa”, explica.

Em países ricos e conhecidos pela tradição liberal, como os Estados Unidos, é o sistema de freios da sociedade que disciplina o Estado. Segundo Stephen Davis, pesquisador da Yale School of Management, o avanço do governo federal sobre as empresas é contido pela tradição política de opositores vigilantes e pela antipatia típica dos homens e mulheres de negócios às intervenções: “Há aqui uma série de proteções aos minoritários, mas, se o governo realmente quiser exercer sua influência, será difícil pará-lo. É o custo político que previne essas ações, bem como o risco de desvalorização na bolsa. Temos uma história de resistência à presença do governo”.

o sócio que não aparece — Para alguns, a atuação indireta do Estado nos bastidores das companhias gera mais desconfiança do que o seu status de acionista controlador. Dentre as maneiras de influir nas decisões de grandes corporações, está, por exemplo, o uso político de fundos de pensão. No Brasil, a Previ, o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil, e a Petros, dos trabalhadores da Petrobras, são exemplos de players que podem servir de canais para a influência do governo. “Isso pode ser muito perigoso, e é feito à luz do dia. Quando tenta aplicar uma agenda política nas empresas investidas por fundos de pensão estatais, o governo está usando a poupança de trabalhadores para isso”, reflete Mendes.

De forma ainda mais velada e indireta, as cessões de crédito também podem se tornar um meio de manobra. O volume de empréstimos do BNDES chegou a R$ 168,4 bilhões em 2010, incomodando quem preferia que esses investimentos tivessem vindo de investidores privados. Além disso, há a atuação da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil no estímulo a setores como construção civil e agronegócio, por meio da concessão de linhas de crédito a juros subsidiados.

Sérgio Lazzarini, professor de organização e estratégia do Insper, trata das relações entre o crédito estatal e as empresas privadas no livro Capitalismo de Laços. De acordo com ele, um credor com tantos instrumentos monetários à disposição tece ligações indesejadas com o empresariado, gerando um poder de barganha para participar da nomeação de diretores, presidentes e conselheiros. “A influência do governo pode ser decisiva para os rumos do negócio, seja ele minoritário ou somente credor”, esclarece.

Saudável ou não, o modelo misto vem crescendo no mundo nos últimos anos, desde que a crise financeira de 2008 abriu espaço para uma participação maior do Estado na economia. Todos se lembram de quando o governo americano se tornou acionista da General Motors, um símbolo capitalista. O fato é que a lucratividade e o gigantismo das empresas estatais as tornam, em muitos casos, indispensáveis na composição das carteiras dos investidores. “O Brasil está em um momento bom, e é impossível pensar em aplicar na bolsa sem apostar na Petrobras e na Vale. Por isso as notícias sobre intervenções não desanimam os investidores. Mas, se o País não estiver bem, esse lado pode pesar”, reconhece o pesquisador da Harvard Business School Aldo Musacchio. Como de costume na economia, o lado da demanda é o que dita forças e disciplina comportamentos. Quem sabe os investidores representem, no futuro, um controle mais efetivo sobre a delicada conciliação entre os interesses públicos e privados.


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