Dois balanços, duas medidas
Com os primeiros demonstrativos em IFRS, milhões de reais surgem nos lucros e no patrimônio. Mas quanto isso muda a percepção do investidor sobre o preço da ação?

, Dois balanços, duas medidas, Capital AbertoÉ da subsidiária Sama que a Eternit obtém o amianto, fibra mineral com propriedades cancerígenas, matéria-prima para a fabricação de telhas e caixas d’água. Por lidar com uma substância malvista — e fonte de metade dos R$ 520 milhões de seu faturamento —, a companhia sabe da importância da transparência para amenizar eventuais prejuízos de imagem. Dentro do programa Portas Abertas, a Eternit já recebeu mais de 18 mil pessoas para apresentar os cuidados com a cadeia produtiva do amianto. Na busca pela transparência, ela também inovou ao ser uma das pioneiras, no Brasil, a aderir às normas internacionais de contabilidade, conhecidas pela sigla em inglês IFRS e por produzirem balanços mais fidedignos.

A primeira experiência foi com o balanço de 2007, divulgado no fim de abril, e trouxe uma boa surpresa. Pela norma internacional, o balanço apresentou um patrimônio líquido aproximadamente 7,5% maior do que o apurado conforme a contabilidade brasileira, revelou o diretor administrativo-financeiro da Eternit, Nelson Pazikas, no workshop “IFRS em quatro dimensões”, realizado em abril pela CAPITAL ABERTO em parceria com a firma de auditoria Deloitte. Por trás desse aumento de patrimônio, mais uma vez, está a Sama. A mineradora foi adquirida pela companhia em 1997, com um ágio (montante que excede o valor contábil do investimento) a ser amortizado até 2007. Porém, as regras do IFRS eliminam a amortização de ágio. Com isso, na hora de conciliar o balanço obtido em BR Gaap com o IFRS, a companhia teve de fazer um estorno de mais de R$ 16 milhões, relativo às despesas com ágio dos anos 2006 e 2007. O crédito foi incluído nas contas de lucros acumulados e no patrimônio líquido.

Se na Eternit uma única aquisição, de 11 anos atrás, provocou esse ajuste, pode-se imaginar o que vai ocorrer na contabilidade das companhias novatas em bolsa quando elas vierem a adotar o IFRS — obrigatório para os balanços consolidados a partir de 2010. Capitalizadas pelo IPO, elas saíram às compras insaciavelmente nos últimos meses. Segundo Diego Barreto, coordenador de Relações com Investidores (RI) da Lopes, a imobiliária tem R$ 200 milhões para contabilizar na forma de ágio, relativos a sete aquisições, e está diagnosticando os efeitos que o novo modelo contábil trará.

A Indústrias Romi também divulgou o seu primeiro balanço em IFRS no mês de abril. E, neste caso, o impacto foi no lucro líquido. No modelo internacional, para o exercício de 2007, a fabricante de máquinas registrou R$ 12,9 milhões a mais que em BR Gaap. Esse valor é referente aos gastos com a oferta de ações realizada em abril de 2007. Pelas normas internacionais, esse tipo de despesa não pode transitar pelo resultado da companhia, o que provocou o incremento na última linha do balanço. Considerando-se todos os efeitos, o lucro líquido da Romi, divulgado em abril, ficou quase 14% maior. Alguém poderia supor que essa combustão contábil se refletiria no preço das ações, mas isso não ocorreu. Segundo Luiz Cassiano Rosolen, gerente de RI, os analistas costumam desprezar gastos desse tipo. “Todo mundo já fazia a análise do resultado sem as despesas da oferta.” O benefício conquistado pela adoção do IFRS, reforça, não está em números mais robustos, mas, sim, no fato de o investidor poder comparar empresas brasileiras com as lá de fora, uma vez que estarão todas no mesmo padrão, diz ele.

IMPACTOS NO PREÇO? — Numa primeira análise, migrar de uma contabilidade para outra não deveria ser motivo para alterar o valor das companhias. Afinal, operacionalmente, as empresas continuam as mesmas. Além disso, os analistas olham principalmente para o fluxo de caixa ao projetar o desempenho futuro e determinar os preços das ações, e não para as demonstrações financeiras mais tradicionais. Conforme explica Reginaldo Alexandre, vice-presidente da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais de São Paulo (Apimec-SP), a geração de caixa sofrerá mutações somente se a conciliação com o IFRS alterar os tributos ou a distribuição de dividendos. Como a expectativa é de que a convergência para as normas internacionais não traga efeitos fiscais (leia quadro), só uma mudança no valor dos dividendos, decorrente de uma alteração significativa do lucro líquido, poderia modificar o fluxo de caixa e, portanto, o valor da ação.

“Não é a forma de apresentação dos balanços que vai mudar a avaliação das empresas”, diz Alexandre. No entanto, ele reconhece que o mercado também se apega a múltiplos influenciados pelo IFRS para dar o seu preço. Índices como Ebitda (geração de caixa) e margem, calculados a partir das demonstrações contábeis, podem variar na conciliação do BR Gaap com o IFRS. E, mesmo que as divergências sejam mínimas nos cálculos, a maior abertura de informações já seria suficiente para afetar a percepção sobre a companhia. “Muitas coisas que estavam fora do balanço aparecerão, e o investidor vai poder fazer um melhor julgamento”, diz Haroldo Levy, vice-coordenador de relações institucionais do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), que é responsável por introduzir o IFRS no Brasil.

Marcos de Callis, administrador de fundos da gestora Schroders, lembra que a mudança contábil, em si, é um fator de risco. Portanto, as companhias estão fadadas a sofrer uma desvalorização caso os efeitos da harmonização contábil não sejam bem compreendidos. “Existe a regra básica do mercado: na dúvida, o analista desconta”, afirma. É por isso que ele cobra engajamento das empresas na uniformização das práticas contábeis. A principal característica do IFRS está no fato de ser mais baseado em princípios do que em regras prescritivas, o que dá margem à interpretação subjetiva das normas. Vários dos pronunciamentos do International Accounting Standards Board (Iasb), órgão responsável pela elaboração do IFRS, também contêm exceções (os chamados “carve out”), o que aumenta a possibilidade de serem aplicados de formas distintas. “Há muito espaço para opções e exceções. É preciso radicalizar as regras”, enfatiza Callis.

CONTABILIDADE MÚLTIPLA — Para se ter uma idéia da dimensão desse problema, no Brasil de hoje, que apenas começa a tatear o IFRS, cada uma das mais de 20 incorporadoras que desembarcaram na Bovespa nos últimos anos reconhece suas receitas de maneiras diferentes, de acordo com Diego Barreto, da Lopes. “O setor deveria ‘sentar’ e alinhar seus interesses”, aconselha. Dá para imaginar o trabalho que todas essas representantes do segmento de construção civil terão para explicar os efeitos contábeis na conversão para o IFRS. E a dor de cabeça que os analistas terão para compará-las. “Chega a ser ridículo”, critica Mario Fleck, sócio da gestora Rio Bravo Investimentos. “Como o investidor vai se ‘virar’?” Para evitar esses percalços, “as empresas deveriam falar mais com os concorrentes”, recomenda Edward Ruiz, sócio da área de global offerings services da Deloitte. Também para Valter Faria, diretor-presidente da consultoria Total RI, discussões com os pares do setor são fundamentais durante o processo de adoção do IFRS, para que as comparações não fiquem prejudicadas.

Ruiz prefere elogiar o aspecto “livro aberto” do IFRS. “Num ambiente onde existem muitas regras, a probabilidade de erros de julgamento é muito maior.” Será um novo tempo, em que a essência predominará sobre a forma e exigirá dos contadores uma postura muito diferente daquela a que estão acostumados, destaca o professor da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi) e vice-coordenador técnico do CPC, Eliseu Martins. E não poderia haver mau uso dessa permissão para interpretação das normas, uma espécie de subjetivismo irresponsável? Mario Fleck refuta a idéia. “Esse tipo de coisa não resiste no tempo, pois é a consistência de resultados que sustenta o valor.”

Uma forma de afastar qualquer acusação de manipulação de dados é o disclosure sobre os impactos do IFRS. Os palestrantes do workshop foram unânimes em destacar o papel de uma comunicação eficiente. Nelson Pazikas contou que a Eternit precisou de mais de 60 páginas para apresentar os resultados de 2007 em razão da necessidade de publicação de numerosas notas explicativas. Na Romi, o balanço dobrou de tamanho, segundo Roselen.

O desafio das companhias não é só comunicar bem, mas também rapidamente. Antes da Instrução 457 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que tornou obrigatória às S.As de capital aberto a apresentação das demonstrações financeiras consolidadas de acordo com as normas internacionais a partir do exercício de 2010, apenas as companhias do Novo Mercado e do Nível 2 da Bovespa ajustavam seus balanços a alguma norma estrangeira (US Gaap ou IFRS) a partir do segundo ano de listagem. Agora não há mais tempo a perder. A nova lei contábil, a 11.638, sancionada no fim de dezembro e válida para os balanços de 2008, acelerou o processo de convergência. Ela está sendo regulamentada pela CVM com base nos pronunciamentos técnicos emitidos pelo CPC — praticamente réplicas das normas do Iasb. O último deles, colocado em audiência pública em abril, trata da contabilização de ativos intangíveis, incluindo o ágio pago sobre a expectativa de rentabilidade futura (goodwill). Caso seja aprovado da forma como foi proposto, esse ágio não poderá mais ser amortizado e, além disso, deverá ter seu valor atualizado anualmente (prática conhecida como impairment).

Para que a lei e a regulamentação sejam cumpridas à risca, é necessário o envolvimento de toda a administração da companhia. Mario Fleck, também membro do conselho da Eternit, conta que os executivos levaram as questões relativas à convergência até o órgão máximo da administração. “O engajamento e a comunicação são fundamentais”, afirma Pazikas. Mas, infelizmente, o cenário corrente é desolador. Os diretores de RI deveriam estar completamente alinhados com o processo de harmonização contábil, mas muitos parecem alheios a esse movimento. “Vários RIs estão ignorantes em relação aos impactos da nova contabilidade”, lamenta Callis, da Schroders. Empresas que se mostrarem confusas na divulgação dos efeitos trazidos pelo IFRS — uma exigência da própria CVM —, ou mais lentas na adoção das regras, poderão, aí sim, sentir os efeitos negativos. “O mercado não transforma em preço da ação o que a companhia comunica, mas sim o que ele compreende”, afirma Valter Faria. Se a companhia não fizer bem o seu papel, todos vão pagar o preço.

Neutralidade fiscal virá com ato jurídico

Um das questões mais polêmicas abertas pela Lei 11.638 foi se as mudanças na confecção dos balanços terão ou não impactos fiscais. Embora a nova lei contábil tenha deixado claro que a convergência às normas internacionais de contabilidade não terá efeitos na tributação das companhias, muita gente ainda duvida que o Fisco vá deixar de aproveitar a oportunidade para aumentar a arrecadação. Até o momento, porém, não é isso o que sinaliza a Receita Federal.

O professor Eliseu Martins, vice-coordenador técnico do CPC, representa o órgão nas reuniões com um grupo da Receita que está analisando a Lei 11.638. Segundo ele, a Receita está determinada a assegurar a neutralidade fiscal sobre todos os pontos modificados pela legislação, mas admite a falta de um “ato jurídico” que garanta o impacto zero. Questionada pela CAPITAL ABERTO, a Receita afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que haverá algum tipo de regulamentação, mas se negou a fornecer mais detalhes.

A expectativa do mercado é de que esse ato normativo liquidando a dúvida fiscal seja válido a partir de 2009. Até lá, em tese, o mercado não terá essa proteção jurídica. Para contornar o problema e evitar o risco de uma tributação inesperada, o CPC pretende adiar os pronunciamentos sobre adoções de normas que possam resultar em impacto fiscal. (D.G.)


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