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Dinheiro sem sangue
Investidores estão cada vez menos tolerantes com companhias envolvidas em violações de direitos humanos

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Os fundos de investimento dos Estados Unidos vêm se deparando com uma prática tão inusitada quanto crescente: o ativismo de seus cotistas. Acostumados a se valer de suas posições acionárias para pressionar companhias por mudanças que melhorem seus retornos, muitos pesos pesados dessa indústria, como Fidelity, Vanguard, American Funds e Franklin Templeton, tiveram de incluir em suas assembleias de cotistas — geralmente usadas para deliberar assuntos triviais, como a troca do gestor, por exemplo — propostas para o desinvestimento em empresas que operam e pagam impostos no Sudão, cujo governo é responsável pelo massacre de mais de 400 mil pessoas na região de Darfur. Segundo levantamento da Investors Against Genocide (IAG), organização não governamental que tenta dissuadir investidores de colocar dinheiro em companhias indiretamente ligadas ao genocídio sudanês, 43 assembleias de fundos discutiram o investimento “genocide free” em 2009 (até 20 de outubro), além de outras 72 que votarão sobre o tema até o fim do ano. Em 2008, 21 fundos trataram da matança no Sudão, contra nenhum nos anos anteriores.

O petróleo, carro-chefe da economia sudanesa, está no centro das discussões. Com produção diária de 500 mil barris, o país é o quinto maior produtor africano da commodity. Gigantes como PetroChina, Petronas, Sinopec e Oil and Natural Gas Corporation engordam a receita da ditadura de Omar al-Bashir, no poder desde um golpe militar ocorrido em 1989. A Organização das Nações Unidas (ONU) acusa o governo sudanês de usar mais de 70% das verbas obtidas com o petróleo para financiar matanças em Darfur, onde surgiram movimentos de etnias locais contra al-Bashir, orientado para a minoria árabe.

Nenhuma das propostas contra investimentos no Sudão conseguiu obter a maioria de votos necessária para ser aprovada. Em assembleias realizadas em julho e agosto, o percentual de votos a favor do fim do investimento no Sudão variou de 7,18% a 23,4%. Apesar disso, Eric Cohen, chairman da IAG, comemora os resultados. “Somente na Fidelity (maior gestora de recursos do mundo, com patrimônio de US$ 1,25 trilhão), houve mais de 2 milhões de cotistas dizendo ‘não’ ao genocídio”, conta ele. “Não demorará até que um fundo tenha de desinvestir”, confia.

Ele tem razões para ser otimista. Em março, a organização conseguiu uma de suas mais representativas vitórias, quando o TIAA-Cref, um dos maiores fundos de pensão dos Estados Unidos, com mais de US$ 390 bilhões sob gestão, anunciou que passará a agir ativamente contra a situação em Darfur, depois de algumas conversas com a ONG. A instituição se comprometeu a marcar reuniões com as empresas para pressionar por mudanças. “Vamos analisar o progresso das conversas. Se, em nove meses, não houver melhoria, vamos desinvestir”, diz uma nota publicada pela entidade.

PRÓ-PALESTINOS — O genocídio no Sudão é apenas uma das questões humanitárias que revoltam investidores. Em setembro, o fundo soberano da Noruega desfez sua posição nos papéis da Elbit, companhia envolvida na venda de sistemas de vigilância para territórios palestinos ocupados por Israel. Os sistemas são usados nas barreiras erguidas por Israel para separar seus loteamentos das casas palestinas. O fundo escreveu uma carta à Elbit em março, questionando a participação nos loteamentos, considerados ilegais pela ONU, mas a companhia negou-se a dar explicações. “Não vamos financiar empresas como a Elbit, que está diretamente relacionada com violações de direitos humanos”, disse Kristin Halvorsen, ministra de finanças da Noruega, em comunicado oficial feito no dia 2 de setembro.
Não é a primeira vez que o fundo soberano se solidariza com episódios que repercutem na comunidade internacional. Em março, o fundo anunciou o desinvestimento na fabricante chinesa de caminhões Dongfeng, por causa da venda de veículos militares a Mianmar. Desde 1962, o país asiático é dirigido por uma junta militar autoritária, que reprime violentamente qualquer manifestação a favor da democracia. Prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e trabalho forçado são alguns dos crimes atribuídos ao governo do general Than Shwe.

Em fevereiro, a Igreja da Inglaterra, que possui mais de £ 4 bilhões investidos em ações, anunciou o desinvestimento de US$ 3,3 milhões na fabricante de equipamentos de construção civil Caterpillar. Apesar de justificar o fim dos investimentos na empresa norte-americana por razões puramente econômicas, a Igreja parece ter cedido à pressão da opinião pública, que condenou a Caterpillar pela venda a Israel de tratores e máquinas usados para demolir construções palestinas nas áreas de conflito. Dias antes da decisão de desinvestimento, a imprensa britânica publicou uma carta assinada por 23 teólogos, criticando a posição dos anglicanos na Caterpillar. “A Igreja da Inglaterra deve ser coerente com sua política de investimentos socialmente responsável e desinvestir imediatamente de empresas que lucram com a miséria de milhões de palestinos”, dizia o texto.

A Berkshire Hathaway, companhia de investimentos do bilionário Warren Buffett, protagonizou caso semelhante em 2007, com a participação que detinha na PetroChina. Pressionado por ONGs a desistir do investimento na petrolífera chinesa, Buffett relutou. Na assembleia de acionistas realizada em maio daquele ano, a administração da Berkshire recebeu proposta pelo desinvestimento, mas recomendou voto contrário, por considerar que a saída “não teria efeito benéfico no comportamento do governo sudanês”. A exemplo do que ocorreu com a instituição religiosa do Reino Unido, Buffett percebeu que sua imagem corria sério risco de sair arranhada com o imbróglio e resolveu se desfazer dos papéis da companhia chinesa. O desinvestimento, que se deu entre julho e outubro daquele ano, rendeu aos cofres da Berkshire mais de US$ 3 bilhões. O megainvestidor, contudo, não deu o braço a torcer: afirmou que se desfez das ações por razões puramente econômicas.

“O desinvestimento só deve ocorrer quando todas as tentativas de engajamento malograrem”

TERMO ULTRAPASSADO — O aumento das iniciativas em prol do investimento que não viole direitos humanos reflete uma tendência dos investidores de, cada vez mais, levar em conta critérios socialmente responsáveis na hora de escolher onde depositar suas aplicações. Relatório publicado em julho pelo Principles for Responsible Investing (PRI), conjunto de princípios de investimento socioambientais criado pela ONU em 2006, mostra que o tópico direitos humanos vem ganhando mais espaço entre os investidores. Dentre os 372 respondentes da pesquisa, 52,4% trataram do tema no engajamento com empresas no decorrer do ano. Em 2008, o percentual foi de 48%, contra 25% em 2007.
Refletir sobre o assunto não tem a ver somente com o prejuízo de imagem e a óbvia questão moral envolvida. Muitas empresas do exterior exigem que toda a cadeia de produção, incluindo os fornecedores e prestadores de serviços, esteja livre de violações de direitos humanos. “No fim das contas, a perda de oportunidades será muito mais relevante do que qualquer ganho que a companhia tiver com essa má prática”, diz Marcel Gomes, coordenador do centro de monitoramento de agrocombustíveis da Repórter Brasil, ONG que luta pelo fim do trabalho escravo no País.
“Hoje, o termo ‘ativista’ já começa a ser visto como ultrapassado entre os grandes investidores, pois praticamente todos se preocupam com os riscos associados a quaisquer problemas que envolvam as empresas”, diz James Gifford, executivo do PRI. Sinal disso, segundo Gifford, é que, de dois anos para cá, o número de signatários do PRI mais que triplicou. Em 2007, eram 180. No ano seguinte, o número pulou para 362, e, em 2009, foi a 560 signatários, que representam mais de US$ 18 trilhões em ativos.

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O Christian Brothers Investment Services (CBIS), fundo voltado a investidores institucionais católicos — um dos maiores socialmente responsáveis dos Estados Unidos, com mais de US$ 3 bilhões de patrimônio —, realizou pesquisa com clientes, no fim de 2008, e detectou que o tema direitos humanos é a principal preocupação de seus investidores, com 33% das respostas, à frente de meio ambiente (21%), e finanças (15%).

Em vez de simplesmente banir a companhia de sua carteira, o CBIS procura usar seu poder como acionista relevante para conseguir mudanças. Uma recente conquista nesse campo se deu em agosto, quando mais de 20 empresas do setor de vestuário, dentre elas gigantes como GAP, Levi Strauss e Target, se comprometeram a formular ações que garantam a ausência do algodão proveniente do Usbequistão em suas peças, após movimento orquestrado pelo fundo. O país é o terceiro maior produtor mundial de algodão e ainda mantém práticas deliberadas de trabalho infantil, uma herança de seu passado soviético.

Em movimento coordenado com outros grandes investidores, o CBIS escreveu, no decorrer do ano, cartas a todas as empresas do setor de roupas presentes em seu portfolio, cobrando ações concretas contra o algodão usbeque. “O desinvestimento teria lavado nossas mãos, mas não teria trazido o mesmo avanço obtido com o engajamento”, diz Julie Tanner, diretora de investimento responsável do CBIS.

James Gifford concorda que o desinvestimento deve ser usado apenas como último recurso. Na maior parte dos casos, o engajamento com a administração da companhia costuma trazer melhores resultados. “Simplesmente vender sua participação pode ser contraproducente ante os benefícios que o investidor pode obter mobilizando a companhia”, observa. Os investidores podem tentar promover as mudanças tanto através de assembleias de acionistas, quanto em reuniões privadas. “O desinvestimento só deve ocorrer quando todas as tentativas de engajamento malograrem.”
A abordagem pró-desinvestimento, para Gifford, deve ser vista com cautela até mesmo no Sudão, já que a pressão por mudanças também vem gerando resultados. A gigante petrolífera francesa Schlumberger fazia parte de uma lista negra, feita pela ONG Sudan Divestment Task Force (SDTF), de companhias direta ou indiretamente envolvidas com os genocídios em Darfur. Em 2007, a empresa se livrou da pecha depois de, influenciada por acionistas — dentre eles o CBIS —, tomar providências contra a matança. A companhia implantou uma política que exige que nenhum parceiro esteja relacionado com os conflitos.

Em casos como o da PetroChina, dona dos campos de extração de petróleo no Sudão, as tentativas de engajamento não dão certo porque a companhia é pouco aberta ao diálogo. Julie conta que o CBIS já tentou, inúmeras vezes, marcar uma reunião com a administração da PetroChina. “Nunca nos responderam. Nesse caso, não há alternativa senão o desinvestimento”, conta.

Eric Cohen, do IAG, adverte que o argumento do engajamento vem sendo usado, em muitos casos, como pretexto para a permanência dos investimentos na PetroChina. Em uma assembleia de cotistas realizada em agosto, o representante de um grande fundo de investimentos justificou a posição na petrolífera chinesa dizendo que, dessa forma, o fundo poderia usar de seu poder político para forçar mudanças na administração. “Quando perguntei quais práticas eles estavam efetivamente adotando para fazer essa pressão, ele simplesmente disse que não poderia comentar”, afirma.
Os fundos se defendem. “Nossas práticas de engajamento são sigilosas, pois delas dependem novas decisões de investimento”, alega Chuck Freadhoff, porta-voz dos American Funds, que realizará, em novembro, 15 assembleias para votar o fim dos investimentos ligados ao genocídio em Darfur.

ALHEIOS À DISCUSSÃO — No Brasil, o ativismo social de investidores está em estágio imberbe. Em junho, a Justiça concedeu liminar obrigando a Usina São Martinho a melhorar as condições de trabalho de seus cortadores de cana. Além de não fornecer equipamentos de segurança, a empresa oferecia condições sub-humanas de higiene e impunha aos cortadores jornadas exaustivas de trabalho. Outra companhia do setor sucroalcooleiro, a Cosan, tem duas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho por submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão. Procuradas, as empresas não responderam às solicitações de entrevista.

“Infelizmente, a questão de direitos humanos ainda não tem o mesmo destaque que outros critérios socioambientais, como meio ambiente e governança corporativa”, admite Walter Mendes, superintendente de renda variável do Itaú Unibanco. Embora façam parte de questionários para a inclusão de empresas em fundos de investimento responsável e no Índice de Sustentabilidade Empresarial da Bovespa (ISE), itens como trabalho escravo e infantil não entram na pauta de investidores quando alguma coisa dá errado. Evidência disso é a ausência de qualquer comunicado ao mercado nos sites de RI da Cosan e da São Martinho sobre esses processos judiciais.

Mendes prefere não comentar casos específicos, mas afirma que o fundo questiona qualquer empresa cujos fornecedores ou prestadores de serviço são acusados de desrespeitar direitos humanos. “A companhia só permanece na carteira se cancela o contrato com esse parceiro”, diz ele. O questionamento poderia ter acontecido com a Metalúrgica Gerdau, que faz parte da carteira do fundo Excelência Social, do Itaú Unibanco. Mais de 170 trabalhadores foram encontrados em regime de semiescravidão em uma carvoaria localizada em Jaborandi, no interior da Bahia, em maio deste ano. Além de viver em abrigos imundos e próximos dos fornos — aumentando o risco de intoxicação —, os trabalhadores não eram remunerados havia três meses. A Rotavi Industrial, proprietária da carvoaria, era fornecedora de liga leve para grandes empresas, dentre elas a Metalúrgica Gerdau. Assim que soube da denúncia, a metalúrgica encerrou seu relacionamento com a Rotavi, segundo a assessoria de imprensa da companhia gaúcha.


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