Tudo explicado
Auditorias se preparam para elaborar relatório mais abrangente e detalhado
Ilustração: Beto Nejme baseado em quadro de Rembrantd, lição de anatomia / Grau 180

Ilustração: Beto Nejme baseado em quadro de Rembrantd, lição de anatomia / Grau 180

A crise financeira de 2008, que levou à bancarrota bancos americanos como o Lehman Brothers, provocou um amplo debate sobre a confiabilidade das demonstrações financeiras apresentadas pelas companhias abertas. Incrédulos, muitos investidores começaram a questionar se os auditores independentes, contratados pelas empresas para assegurar a veracidade dos balanços, não poderiam conduzir um trabalho mais apurado de detecção de fraudes e averiguação de outros riscos. Sete anos depois, a semente plantada por essa discussão dá origem ao novo relatório do auditor, cuja adoção no Brasil ocorrerá no fim de 2016.

O documento não muda o trabalho do auditor em sua essência. A novidade diz respeito, principalmente, ao conteúdo que ele irá reportar. No novo modelo, o profissional prestará mais informações sobre o processo de auditoria e os assuntos relevantes verificados durante o trabalho. O formato do parecer também muda: já no primeiro parágrafo, o auditor terá que relatar sua conclusão sobre as demonstrações financeiras para, logo em seguida, fundamentá-la. Hoje, o relato da auditoria é bem mais sucinto: diz apenas se, na opinião dos auditores, os balanços representam com fidelidade a condição financeira da companhia.

Esse nível de detalhamento já representa um avanço, mas o International Auditing and Assurance Standards Board (IAASB) foi além. Responsável pela emissão de normas e padrões internacionais de auditoria, o comitê passou a exigir também a opinião do auditor sobre a continuidade operacional da companhia. Outra ideia é que especifique, por exemplo, as contas nas quais vê mais chances de existência de erros relevantes e os fatos ou transações com efeito expressivo sobre os balanços. Esses tópicos devem ser compartilhados com as áreas de governança das empresas.

Representante da América Latina no IAASB e sócio da PwC, Valdir Coscodai elogia a iniciativa. Para ele, o novo relatório atende à demanda crescente dos stakeholders, como investidores e clientes, pela modernização na comunicação das companhias. “Esses públicos buscam relatórios mais criteriosos e uma discussão aprofundada sobre os riscos, do ponto de vista de uma parte independente”, afirma Coscodai, que participou ativamente da elaboração das novas normas. A mudança, observa, é um divisor de águas. “Há 200 anos o parecer da auditoria é o mesmo. São melhorias necessárias, que vão valorizar o trabalho do auditor”, avalia.

Na opinião de Carlos Eduardo Lessa Brandão, sócio da JFLB Consultoria e Treinamento, os novos padrões reforçam a responsabilidade do auditor e envolvem um olhar mais acurado sobre o cenário em torno das empresas. “É importante o auditor observar não só as informações financeiras para identificar os riscos, mas também o contexto em que a companhia está inserida”, ressalta.

Primeiros passos

No Brasil, as normas do IAASB para elaboração do novo modelo de relatório estão sendo traduzidas e submetidas a consultas públicas. A previsão é que passem a valer para as demonstrações financeiras encerradas a partir de 15 de dezembro de 2016. Algumas auditorias, porém, já começaram a testá-las em experiências-piloto. É o caso da KPMG, que formula os primeiros relatórios no modelo desenhado pelo IAASB. De acordo com Rogério Andrade, sócio do departamento de práticas profissionais, o trabalho exigirá novos cuidados por parte do auditor. Como a preparação do relatório intensifica a interação com a área de governança e o comitê de auditoria, é preciso cautela, por exemplo, para que informações internas da empresa auditada não sejam divulgadas indevidamente. O auditor também pisa em ovos ao ter que opinar sobre a continuidade operacional do negócio. “Os temas mais sensíveis surgem ao longo do processo, e a obrigação do auditor é estreitar a comunicação com os órgãos de governança para verificar se existe impacto real nas demonstrações financeiras”, diz.

No exterior, Reino Unido e Holanda foram os primeiros a aplicar as normas do IAASB, em vigor nesses países desde 2013. Para avaliar a qualidade do material que vem sendo produzido, o Financial Reporting Council (FRC), responsável por estabelecer os padrões nas áreas de contabilidade e auditoria no Reino Unido, analisou 153 relatórios financeiros. Desses, 147 foram auditados pelas “big four” (KPMG, EY, PwC e Deloitte). O levantamento revela que cada firma de auditoria adotou uma abordagem diferente para cumprir os novos padrões. Ainda assim, as informações importantes estavam lá. Os relatórios faziam menção à opinião do auditor logo no primeiro parágrafo e abordavam as chamadas “questões materiais” — temas que podem impactar significativamente a companhia e influenciar as decisões dos stakeholders.

O estudo também verificou aumento do uso de gráficos e tabelas como suporte à informação e maior ênfase a assuntos ligados a riscos. Entre os cerca de 500 potenciais riscos averiguados pelos auditores nos balanços, o impairment (perda por irrecuperabilidade) de ativos aparece em 86% dos relatos. Também têm destaque tributos (70%), impairment do ágio (66%) e fraudes no reconhecimento das receitas (51%).

O nível de informação e detalhamento observado nos relatórios foi elogiado pela Investment Managing Association (IMA), entidade que representa a comunidade de investidores do Reino Unido. Porém, alguns pontos ainda precisam ser aprimorados. Os investidores sentiram falta, por exemplo, de os auditores explicarem com mais clareza por que escolheram citar certas questões materiais em detrimento de outras. O estudo do Financial Reporting Council foi realizado entre julho e setembro de 2014.

Auditor ou detetive?

As novas normas também são uma resposta do IAASB aos questionamentos sobre até onde vai a responsabilidade do auditor na detecção de fraudes contábeis. Hoje, já existem casos na Justiça brasileira de auditorias processadas por investidores que se sentiram lesados por falhas ou fraudes em balanços de grandes empresas. “O auditor tem a sua parcela de responsabilidade nesse tipo de situação, já que é responsável pela confiabilidade das informações contidas nos balanços”, defende Edison Fernandes, sócio do escritório Fernandes Figueiredo.

Não é a primeira vez que um investidor se sente lesado pela publicação de um balanço sem ressalva. Renato Chaves, sócio da consultoria Mesa Corporate Governance, relembra o caso da Sadia, em 2008. Na ocasião, a firma que auditou o balanço da companhia não fez ressalvas em relação aos riscos das operações com derivativos exóticos. A falha gerou um processo na CVM, posteriormente arquivado. “A empresa quebrou e não se falou em responsabilidade dos auditores”, lamenta Chaves.

Os profissionais da área se defendem. Membro do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), Silvio Takahashi explica que o auditor é responsável pela identificação de algum ato que levante suspeita, e não pela descoberta de casos de fraude. A mesma opinião tem Sérgio Ricardo de Oliveira, sócio da Crowe Horwath. Ele observa que, como o auditor trabalha por amostragem (e o volume de documentos gerado pelas empresas é grande), é impossível validar 100% das informações.

O problema é que hoje essa “impossibilidade” não está clara para o mercado. E o motivo, segundo auditores, seria o desconhecimento sobre o trabalho. “Há uma distância entre o que o auditor faz e aquilo que os leigos acreditam que ele faz”, observa Sérgio Varella Bruna, sócio do Lobo & De Rizzo Advogados. O novo relatório pode acabar com essa assimetria. Mais um motivo para os auditores saudarem as mudanças trazidas pelo IAASB — e para se engajarem numa comunicação mais eficiente com o mercado.


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