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O carnaval da Contabilidade
O que a festa que agita o Brasil tem a ver com uma ciência cheia de regras
, O carnaval da Contabilidade, Capital Aberto

Eliseu Martins*/ Ilustração: Julia Padula

Uns dez anos depois da edição da Lei das S.As., participava eu de um evento, ao lado de um grande jurista. Depois de ter discorrido sobre uma porção de exemplos de escolhas contábeis, incertezas, estimativas e de ter concluído que a Contabilidade se enquadrava completamente no campo das ciências sociais aplicadas, ouvi uma confidência do jurista: “Nossa, sempre achei que a Contabilidade fosse uma ciência exata… Pode passar no meu escritório na segunda-feira para me explicar melhor?”

Passados 30 anos, parece que muita coisa mudou, mas nem tudo. Continuo com a impressão de que a Contabilidade de fato está muito mais integrada às ciências sociais e cada vez mais distante das ciências exatas. Antes praticamente apenas os contadores falavam da matéria — para os demais ela era um grande enigma, mas que “batia” nos centavos. Hoje, com transparência muito maior das regras, subjetividade mais avançada das normas internacionais aqui sendo utilizadas e sem-número de executivos, advogados, engenheiros, investidores, analistas adentrando nesse universo (conhecendo e discutindo as normas, os CPCs), essa visão é bem mais clara e generalizada.

Mas de vez em quando paro para pensar. Será que não estamos indo além da conta? Confesso que às vezes tenho dúvidas, mas são momentâneas.

Um momento como esse surgiu há algumas semanas, quando vi o balanço de uma companhia aberta com uma enorme ressalva do auditor — recusava-se a reverter a provisão para tributos relativos à (não) incidência do PIS e da Cofins sobre o ICMS. Que estranho: o auditor achando que a provisão, que um dia reduziu o lucro lá atrás, precisava agora ser revertida e que uma receita deveria ser reconhecida; a administração da companhia, por sua vez, achando que a situação de incerteza ainda permanecia na data do balanço — não se convencia de que era mais provável que se beneficiasse do assunto.

O contexto envolve o Supremo Tribunal Federal (STF), que em março do ano passado deliberou que sobre a parte do preço que representa o ICMS não pode incidir PIS nem Cofins. Empresas que assim entendiam e que não estavam fazendo esse recolhimento com base em liminares provenientes de ações judiciais, mas que haviam feito a provisão, tinham valores nessas provisões comumente vultosos. Muitas consideravam que deveriam imediatamente reverter sua provisão e reconhecer o ganho da causa; um outro conjunto achava que, além de reverter a provisão, deveria reconhecer como crédito contra o governo o que pagaram a mais no passado e que estivesse fora do alcance da prescrição. E algumas mais estavam cheias de dúvidas: pensavam que não deveriam reverter a provisão, muito menos reconhecer qualquer crédito por pagamentos já feitos, mas que na verdade deveriam até continuar reconhecendo os tributos e constituindo a provisão ao longo do tempo.

Toda essa confusão é decorrente da famosíssima insegurança jurídica que existe no Brasil. Afinal, o Tesouro Nacional, já no STF, havia falado que entraria com embargos de declaração, considerando diversos fatos. E foi o que fez no fim de 2017, arguindo que muitos pontos ficaram nebulosos na decisão (como o de não mencionar que, na entrada dos bens e serviços, também não deveria haver a tal incidência sobre a parcela do ICMS no preço de compra), que a norma nova deveria valer apenas a partir da vigência da decisão, ou que haveria risco de o Tesouro quebrar se assim não fosse feito, entre outros argumentos.

Não é o caso agora de discutir minha opinião sobre a matéria (sim, eu a tenho e até escrevi sobre isso), mas de mostrar que a Contabilidade realmente passou a ser algo muito mais próximo do comportamento do ser humano que toma decisões do que o mero cumprimento de regrinhas arbitrariamente estabelecidas.

As diferentes posições das empresas e dos auditores (sem falar de professores e investidores) mostram que não há consenso, que as dúvidas e a insegurança jurídica são grandes. Os diferentes critérios contabilmente usados evidenciam que o fundamental é dar transparência ao que cada um considera o mais correto e apresentar as razões da escolha feita — até porque a verdade, verdade mesmo, nunca se conhece até que muita chuva danifique carros alegóricos; talvez até morramos sem saber de algumas delas.

Errada mesmo pode ser a impressão que passa ao leitor o título deste artigo: não há carnaval na Contabilidade no mau sentido. Mas aproveitando o fato de que escrevo numa terça-feira carnavalesca, utilizo a expressão só para mostrar que a Contabilidade é realmente rica e carregada de gostos — e alguns desgostos, assim como a festa de Momo: alguns a usam decentemente, outros a usam maliciosa e indecentemente, outros querem estar bem longe dela, e ainda há os que não conseguem viver sem ela.


* Eliseu Martins ([email protected]) é professor emérito da FEA-USP e da FEA/RP-USP, consultor e parecerista na área contábil


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