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Ex-sócio falsifica papéis de trabalho e Deloitte paga multa recorde
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

Desde segunda-feira, 5 de dezembro, quem chega à sede da Deloitte no Brasil, em São Paulo, é “recepcionado” por Altair Rossato. No posto desde junho, o presidente da firma aparece em um vídeo transmitido ininterruptamente em todos os televisores espalhados pela firma. A comunicação direta com os 5,5 mil funcionários faz parte da estratégia da subsidiária brasileira para enfrentar sua maior turbulência no País: na mesma segunda-feira chegava ao mercado a notícia de que a firma desembolsará cerca de R$ 32,5 milhões em penalidades por fraude em documentos e emissão de relatórios falsos.

A maior punição veio dos Estados Unidos. O Public Company Accounting Oversight Board (PCAOB), regulador das firmas que auditam companhias sujeitas à Lei Sarbanes-Oxley, receberá US$ 8 milhões. A multa é emblemática: trata-se da primeira sanção decorrente de fraude e falta de cooperação em investigações aplicada a uma das quatro grandes firmas mundiais de auditoria, as chamadas Big Four (leia mais sobre o PCAOB no quadro). No Brasil, a Deloitte desembolsará outros R$ 5,3 milhões, resultado de um termo de compromisso firmado com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O PCAOB acusa o sócio líder da Deloitte José Domingos do Prado de ter modificado papéis que elucidavam sua má conduta ao validar as demonstrações financeiras da Gol. A descrição das falhas e da adulteração dos papéis é parte do relatório divulgado pela equipe de investigação do PCAOB na última segunda-feira.

Dinheiro a mais

Uma das falhas da auditoria teria acontecido na conta de reserva de recursos para manutenção de aeronaves e equipamentos. Em 2009 e 2010, esses ativos somavam R$ 522,7 milhões e R$ 456,7 milhões, respectivamente — o equivalente a 6% e 5% do total de bens e direitos. Em 2009, a equipe de auditores percebeu que a Gol falhava em rastrear o uso desses recursos, o que os impedia de atestar a veracidade dos números reportados pela companhia. Os controles não funcionavam bem e havia grandes chances de os números estarem superestimados. Baseados na promessa da Gol de que contrataria um analista para conferir o valor das reservas no ano seguinte, José Domingos do Prado consentiu que a companhia reportasse os números incertos.

Como prometido, a companhia apurou os ativos em 2010, confirmou que eles estavam mesmo errados e começou a estorná-los nos balanços trimestrais — num total de R$ 116,5 milhões em baixas. Ainda assim, terminou o ano com um residual de R$ 52,6 milhões em ativos não estornados e decidiu “baixá-los” apenas nas demonstrações do ano seguinte, quando novamente os diluiria ao longo dos trimestres. Em 2010, portanto, os ativos foram novamente computados a valores incorretos. A Deloitte, de acordo com o órgão supervisor, falhou não apenas ao consentir com a postergação da baixa do valor residual como ao ignorar a possibilidade de haver nessa prática um indicativo de fraude por parte dos executivos da Gol.

A Deloitte também teria validado problemas, segundo o PCAOB, no cômputo das receitas de venda de passagens aéreas. Nos seus papéis de trabalho, a auditoria observou uma diferença significativa entre o sistema de reservas dos bilhetes e o da contabilidade que apontava um total de R$ 38,3 milhões a mais na linha de receitas, o equivalente a 10% do lucro antes de impostos. A equipe de auditores recomendou à companhia fazer o ajuste ainda em 2010, mas os gestores preferiram fazer suas próprias análises sobre o erro antes de reconhecê-lo no balanço. A Deloitte anotou a provável superestimativa em seus papéis, mas não declarou sua impossibilidade de comprová-la no parecer da auditoria. A firma teria ainda observado falhas tecnológicas no sistema de informações financeiras da Gol, mas sem ir adiante em avaliar a gravidade dessas deficiências, segundo o PCAOB.

As duas situações fizeram com que, aos olhos do órgão supervisor, a Deloitte emitisse um relatório fora dos padrões do PCAOB sobre as demonstrações financeiras da Gol e seus controles financeiros. De acordo com o comitê, o sócio líder da auditoria e sua equipe sabiam das incertezas existentes tanto sobre as contas de reservas para manutenção de aeronaves como em relação às receitas com a venda de passagens. Os padrões de conduta do PCAOB, segundo o relatório divulgado na última segunda-feira, foram violados devido à falta de cuidado profissional e de ceticismo e às falhas na obtenção de evidências sobre os números reportados e na averiguação dos controles contábeis da Gol.

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Bandeira vermelha

Durante o primeiro trimestre de 2011, a Gol concluiu suas análises sobre o erro na apuração das receitas de venda de passagens de 2010. Identificou que não teriam sido computados apenas R$ 38,3 milhões indevidamente, mas R$ 56,8 milhões. No balanço do primeiro trimestre, entregue às autoridades brasileiras e estrangeiras, o valor foi subtraído do total das receitas para corrigir o equívoco.

A mudança nos números chamou a atenção da Securities and Exchange Commission, o órgão regulador americano. Em dezembro do mesmo ano, a agência enviou uma carta à companhia pedindo explicações sobre dados diversos da demonstração anual de 2010 e das trimestrais de 2011, entre eles o estorno de R$ 56,8 milhões nas receitas. Questionava como a norma IAS 8 dos padrões internacionais (IFRS), relativa às situações de mudanças de estimativas e erros contábeis, tinha sido aplicada neste caso. No seu parágrafo 44, a norma descreve como a companhia deve proceder quando é impossível determinar o período específico dos efeitos de um erro contábil. Nesse caso, diz a regra, a companhia deve estornar o erro na conta de patrimônio líquido do próximo balanço. A carta da SEC trazia, segundo a narrativa da investigação iniciada anos depois, o álibi para José Domingos do Prado justificar sua inoperância diante dos erros dos gestores da Gol no cômputo das receitas.

Gato no telhado

Em março 2012, o conselho do PCAOB avisou que iniciaria uma inspeção dos trabalhos de autoria da Deloitte Brasil. Três seriam as empresas avaliadas — e uma delas, justamente, a Gol. O procedimento é padrão: periodicamente, o órgão supervisor avalia o trabalho das firmas que auditam companhias emissoras de valores mobiliários nos Estados Unidos. O PCAOB seleciona demonstrações financeiras já apresentadas ao mercado e as refaz, avaliando a qualidade e a confiabilidade do serviço de auditoria.

De acordo com as regras do PCAOB, os papéis de trabalho da auditoria devem conter uma data de conclusão depois da qual a documentação não pode ser apagada ou descartada dos arquivos. São permitidas, porém, inclusões de documentos desde que com as respectivas datas registradas, assim como os nomes de quem as arquivou e as razões para os complementos.

As investigações do PCAOB divulgadas na última segunda-feira mostraram que, a partir do anúncio da inspeção do balanço da Gol, em março de 2012, até outubro de 2013, quando o órgão supervisor pediu o arquivo completo com os papéis de trabalho do balanço de 2010 da Gol, Domingos e seus subordinados fizeram diversas alterações fraudulentas nos papéis de trabalho. O sócio líder inicialmente pediu aos seus gerentes que alterassem os papéis e, depois, complementou ele mesmo o trabalho, segundo o relato da investigação. Ao todo, 70 documentos foram alterados — 56 relativos ao balanço anual de 2010 e 14, aos trimestrais.

As mudanças nos documentos teriam dois objetivos principais: esconder o consentimento dos auditores da Deloitte com a decisão da Gol de manter em seu balanço de 2010 os R$ 52,6 milhões que não existiam em depósitos para manutenção das aeronaves (e estorná-los apenas no balanço seguinte); e forjar a aparência de que o time havia considerado o IAS 8 para tratar o erro no cômputo das receitas de vendas de passagens. Além dos papéis de auditoria, os sócios da firma alteraram uma apresentação feita à Gol durante a auditoria. O intuito teria sido incluir o IAS 8 como justificativa para as decisões tomadas e enganar os inspetores.

Os documentos da Gol não foram os únicos alterados, segundo o relato dos investigadores. Foram descobertas falsificações também nos papéis da Oi (na época, Tele Norte Leste), a segunda empresa escolhida para o trabalho de revisão (o nome da terceira não foi revelado). Quando solicitados a entregar os documentos para o PCAOB, os sócios responsáveis perceberam que os arquivos — gravados em CDs — não incluíam alguns documentos. Para resolver o problema, revela o órgão supervisor, gravaram um novo CD com as penúltimas versões da papelada e retroagiram o relógio do computador para fazer parecer que o disco tinha sido produzido na data original de arquivamento, segundo o PCAOB.

Em junho de 2014, o conselho do PCOB informou à firma que a inspeção de rotina havia sido transformada em uma investigação. No mês seguinte, os gerentes foram convidados a depor sobre as suspeitas e, novamente, fizeram uma apresentação usando os documentos falsos. Confrontado pelo PCAOB, que a essa altura já o acusava claramente de ter adulterado os documentos, Domingos refutava todas as afirmações.

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Hora da verdade

No fim de 2014, a Deloitte Brasil começou uma investigação interna sobre o episódio. Com a ajuda dos executivos de sua unidade antifraude nos Estados Unidos e de uma firma independente, apurou as diferenças entre os papéis de trabalho originais e os entregues aos inspetores e deflagrou as 70 falsificações. Reconheceu que Domingos havia consentido com a contabilização de ativos irreais e forjado o uso do IAS 8 como sustentação para sua atuação negligente. Um ano depois, um total de 12 executivos da firma — entre eles, três sócios seniores — haviam sido sancionados pelo PCAOB e demitidos da Deloitte Brasil.

Se o PCAOB tivesse identificado exclusivamente os erros técnicos da auditoria, provavelmente a Deloitte e seus profissionais seriam apenas advertidos. A adulteração dos documentos e o falso atestado sobre a qualidade dos controles internos da Gol, no entanto, ampliaram a dimensão do problema. Conforme a investigação avançou, outros sócios da firma envolveram-se na encrenca. Maurício Pires, líder da área de risco e Wanderley Olivetti, responsável pela área técnica da auditoria, acobertaram, segundo o PCAOB, a má conduta da equipe de Domingos. A prova definitiva do envolvimento dos dois foi a apresentação de uma gravação feita por André Paulon. Gerente à época dos fatos e depois promovido a sócio, Paulon admitiu ter alterado documentos e registrou, em seu celular, a instrução recebida dos superiores para a remoção das provas.

O PCAOB impôs sanções individuais aos 12 envolvidos. Domingos recebeu a punição mais severa: a proibição permanente para atuar como associado de uma firma de auditoria registrada no PCAOB. O executivo foi afastado das suas atividades na Deloitte ainda em 2015 e desligado definitivamente neste ano, mas sem que o real motivo de sua saída fosse divulgado. Meses depois, Domingos tornou-se sócio-líder de auditoria da Grant Thorton. Num encontro com a reportagem da CAPITAL ABERTO, Domingos contou apenas que havia se aposentado da Deloitte e que, apesar da intenção de dedicar-se à carreira acadêmica, acabou voltando ao mercado de auditoria. Diante da divulgação do caso, a Grant Thornton anunciou sua saída na última quarta-feira, dia 7.

Wanderley Olivetti e Maurício Pires também estão proibidos de atuar em firmas registradas no PCAOB nos próximos cincos. Além destes, outros nove funcionários da firma foram individualmente punidos pelo PCAOB, com sanções que incluem a proibição temporária de atuação e multas individuais de até US$ 20 mil. Todos os citados foram desligados da Deloitte nos últimos meses.

Procurada, a Gol não atendeu ao pedido de entrevista. Informou em nota que não há qualquer indício de benefício à companhia ou qualquer impacto sobre os balanços arquivados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e na SEC. José Domingos do Prado também não retornou os contatos feitos pela reportagem. Altair Rossato, atual presidente da firma de auditoria, conversou longamente com a CAPITAL ABERTO para transmitir a sua perspectiva dos fatos.

O que é o PCAOB

O Public Company Accounting Oversight Board (PCAOB), regulador das firmas de auditoria nos Estados Unidos, foi criado em 2002, logo após a edição da Lei Sarbanes-Oxley. Foi a resposta do mercado ao abalo causado por escândalos como o da Enron — a companhia foi à bancarrota depois de descobertas fraudes contábeis que inflavam seus resultados. O episódio também foi determinante para o fim da Arthur Andersen, integrante do grupo das maiores firmas de auditoria do mundo.

O PCAOB supervisiona todas as auditorias que atuam no mercado americano através de um conjunto de regras aprovadas pela Securities and Exchange Commission (SEC). Até sua criação, o setor era autorregulado. As firmas estrangeiras também caem na malha fina do PCAOB quando auditam balanços de companhias sujeitas à SOX — entre as brasileiras, além da Deloitte Brasil, integram o grupo EY, KPMG e PwC — ou quando são responsáveis pelo balanço de subsidiárias cuja empresa mãe também está sujeita à lei americana — caso da Grant Thorton.

Os regulados são supervisionados rotineiramente. Uma vez por ano, o órgão inspeciona uma firma que tenha auditado as demonstrações financeiras de mais 100 companhias sujeitas à SOX; em intervalos de três anos, examina uma das que assina balanços para menos de uma centena de empresas. Foi nessa segunda peneira que a Deloitte Brasil caiu, em 2010. (Y.Y.)


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