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Caso de polícia
Brasil apresenta ao mundo o mais novo “gatekeeper” da governança corporativa: a PF

, Caso de polícia, Capital AbertoA literatura internacional de governança corporativa utiliza freqüentemente uma expressão de difícil tradução para a língua portuguesa: “gatekeepers”, profissionais de mercado que fornecem sua reputação para serviços de verificação, certificação e análise, visando proteger os investidores externos das companhias. Literalmente, o termo pode ser traduzido como guardiões das empresas ou apenas como protetores dos investidores. Neste artigo, em virtude da ausência de consenso sobre o termo ideal para o nosso contexto, utilizarei a expressão original.

Formulado pelos professores Ranier Kraakman e Ronald Gilson em um trabalho de 1984, o termo passou a ser utilizado pelo mercado nos últimos anos — inclusive, e regularmente, pela SEC, em algumas de suas normas. Dentre os principais gatekeepers, destacam-se os auditores, bancos de investimento, escritórios de advocacia, agências de rating de crédito e analistas de mercado. Alguns autores elegem também assessores e consultores externos como gatekeepers, tendo em vista que o mercado espera que eles orientem as companhias corretamente em relação a aspectos legais e de adoção de melhores práticas de governança.

É desnecessário discorrer sobre a importância de tais agentes na preparação, revisão e análise dos documentos corporativos que vão a público. Apenas como exemplo, John Coffee, professor de direito da Universidade de Columbia e notório expert em governança corporativa, aponta, em livro recente, que a falha dos gatekeepers foi o principal motivo para os escândalos corporativos no início deste século nos Estados Unidos. No nosso mercado, o caso da Agrenco mostrou, mais uma vez, a falha desses agentes na proteção dos investidores externos, que sofreram uma destruição de valor de cerca de 90% do patrimônio investido na empresa em menos de dez meses após a listagem em bolsa.

Ao mesmo tempo, o caso fez com que o Brasil apresentasse ao mundo um novo gatekeeper da governança corporativa, inexistente na literatura sobre o tema: a Polícia Federal (PF). Sem a atuação deste agente, a companhia poderia ter estendido sua atuação por um período indefinido, gerando prejuízos ainda maiores aos investidores e à sociedade como um todo. Isso porque, dentre as fortíssimas suspeitas levantadas pela PF por meio de escutas telefônicas no processo em curso, estão potenciais crimes envolvendo simulação de negócios, desvios de recursos, maquiagem de balanços, insider trading (compra e venda de ações após anúncios de planos de expansão), lavagem de dinheiro e sonegação fiscal. Independentemente da comprovação das diversas fraudes, um aspecto-chave nesse caso, que serve de lição, é o acesso à poupança pública de uma companhia frágil em termos financeiros, que se apresentava ao mercado como muito bem preparada para seu IPO.

Assim, vamos a um resumo da atuação dos principais gatekeepers da Agrenco: 1) os auditores não constataram qualquer problema com a companhia, emitindo pareceres sem ressalvas; 2) grandes escritórios de advocacia que ajudaram a estruturar a oferta pública inicial também parecem não ter encontrado problemas relevantes; 3) o órgão regulador não colocou qualquer restrição à listagem da empresa que, apesar de essencialmente brasileira, tem sede em Bermudas, um paraíso fiscal. Posteriormente, a CVM teve sua ação limitada quanto a possíveis punições, em função da submissão da empresa a outra legislação; 4) a consultoria contratada para preparar a Agrenco na adequação às melhores práticas de governança, conforme as evidências relatadas, falhou. Ademais, tal consultoria apresentava sérios conflitos de interesse, tendo em vista que sua remuneração dependia do resultado geral da oferta pública de ações; 5) agências de rating de crédito: parecem não ter tido qualquer papel nesse caso, já que a companhia não era avaliada por elas; 6) o banco de investimentos que coordenou a oferta atuou simultaneamente como credor e acionista, acarretando óbvios conflitos de interesse; e 7) o único analista de investimentos que acompanhava a companhia também era funcionário do mesmo banco de investimentos, que, portanto, atuou adicionalmente como analista da companhia. Coincidência ou não, tal especialista atribuiu em relatório de maio deste ano um preço-alvo de R$ 19,00 para as ações da empresa, o dobro do preço de lançamento e cerca de quinze vezes o preço das ações após as denúncias.

Os gatekeepers são profissionais que verificam, certificam e analisam a companhia. Protegem, portanto, os investidores externos da empresa

Como mostra da confiança dos investidores em tais profissionais, recente matéria no jornal Valor Econômico divulgou exemplos coletados em fóruns de discussão de vários investidores de classe média que haviam acreditado na recomendação de compra do banco de investimentos em meados deste ano. A instituição avaliava a Agrenco como “outperform”, com projeção de valorização de 165% em um ano. Entretanto, não foram apenas os gatekeepers que deixaram a desejar. Os gestores dos grandes fundos, alguns com investimentos de milhões nas ações da companhia, também falharam no seu dever fiduciário ao deixarem de fazer algumas perguntas difíceis, principalmente em termos de governança corporativa.

Não é complicado elencar questões que teriam denotado os problemas de governança da Agrenco, quando da oferta de ações: 1) a presença de uma mesma pessoa com múltiplos papéis — empreendedor/ principal executivo/ presidente do conselho/ controlador —, o que torna a companhia uma espécie de “empresa de um homem só”; 2) a presença de um conselho de administração com baixo nível de independência. Dos cinco conselheiros, três eram simultaneamente executivos, beneficiando-se de operações comerciais que desviavam recursos da companhia. Dos dois membros restantes, um atuava em múltiplos conselhos (o que diminui substancialmente seu tempo disponível) e também era sócio da empresa de consultoria contratada com remuneração atrelada ao sucesso do IPO.
O outro, o único de fato independente, não possuía expertise em finanças e contabilidade; 3) a ausência de um comitê de auditoria composto de conselheiros independentes; 4) a falta de regras claras ex-ante para operações com partes relacionadas, bem como de mecanismos de divulgação ex-post; e 5) a ausência de bons sistemas de controles internos e de um adequado sistema de gestão de riscos operacionais, conforme evidenciado pelos problemas de simulação de operações e contabilização.

No caso Agrenco, os vigilantes usuais falharam. Regulador, auditores e advogados, dentre outros, não ajudaram o investidor

Um livro sobre fracassos empresariais associados a problemas de governança escrito por Stewart Hamilton e Alicia Micklethwait, em 2006, encontrou seis causas principais de tais problemas. Todas poderiam perfeitamente se encaixar no caso da Agrenco: 1) conselhos de administração ineficazes; 2) decisões estratégicas erradas (expectativa de refinanciamento das dívidas a custos baixos e aumento inesperado da volatilidade do mercado de soja); 3) expansão excessiva das atividades (construção de três usinas de esmagamento de soja e processamento de óleo e biodiesel um pouco antes do IPO); 4) CEOs dominantes; 5) ganância, vaidade excessiva e desejo de poder (algo que pode ter sido incrementado pelos inúmeros conflitos de interesse das diversas partes envolvidas); e 6) falha dos controles internos.

A leitura prévia do livro pelos investidores e gestores de fundos poderia, eventualmente, tê-los alertado sobre os reais riscos incorridos. Em resumo, o caso Agrenco faz com que os investidores tenham de acompanhar atentamente os recentes desdobramentos políticos no comando da Polícia Federal, haja vista que (infelizmente) a entidade pode se confirmar como o principal gatekeeper da governança corporativa no País. Parafraseando o ex-presidente Washington Luís (1856-1957), parece que a governança corporativa no Brasil se tornou um caso de polícia.


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