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Roubo a céu aberto
Denúncia do Ministério Público explica como os donos do Cruzeiro do Sul armaram uma engenhosa fraude usando instrumentos do mercado de capitais

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ibgcAntes fosse uma fraude protagonizada às escuras. Paradoxalmente, no caso do Banco Cruzeiro do Sul, os autores do delito resolveram percorrer a trilha iluminada pela regulação. As investigações do Banco Central (BC) e da Polícia Federal, culminadas na denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal e aceita pela Justiça no mês passado, elucidam que a engenharia utilizada por Luis Felippe e Luis Octavio Indio da Costa, pai e filho controladores da instituição, unidos a outros 15 acusados era, na verdade, um emaranhado de trapaças fundadas no uso de instrumentos do mercado de capitais. As manobras envolveram não apenas a bolsa de valores, como também a indústria de fundos e a securitização de recebíveis. Em síntese, o objetivo dos donos parecia ser um só: forjar um banco rico para ganhar com a alta no preço das ações. A criação de lucros fictícios nos balanços e de uma demanda artificial para os papéis no pregão foram as duas principais táticas adotadas. O escândalo estourou no ano passado. O Banco Central (BC) identificou milhares de operações falsas de empréstimos com desconto em folha de pagamento, o chamado crédito consignado, principal filão do Cruzeiro do Sul. A auditoria realizada durante a intervenção apurou a existência de cerca de 320 mil contratos fictícios de crédito consignado, que simplesmente não existiam, mas permitiram a ilusória contabilização de R$ 1,249 bilhão em ativos. Individualmente, os empréstimos não passavam de R$ 5 mil, valor inferior ao ponto de corte usado pela fiscalização do Banco Central. O esquema começou a ser operado em janeiro de 2007, um mês antes de a oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) da instituição ser protocolada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Ao ingressar na bolsa, portanto, o banco apresentou aos investidores a última demonstração financeira anual sem a contaminação da fraude dos consignados. As investigações concluíram que a invenção dos empréstimos foi contínua até março de 2012, sempre com o mesmo método: os contratos eram feitos em nome de “laranjas”, apontados como funcionários de empresas de fachada, que não tinham nenhuma ideia de que seus dados bancários estariam sendo utilizados.

PARA FORA DO BALANÇO — Outra artimanha adotada para vitaminar os lucros do banco envolvia o uso de fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs). A irregularidade era ceder a carteira de empréstimos do Cruzeiro do Sul — nesse caso, os verdadeiros — para FIDCs investidos pelo próprio banco, que detinha as cotas diretamente ou por meio do FIDC BCSul Verax Multicred Financeiro. A Instrução 391 da CVM proíbe uma parte ceder recebíveis para ela mesma. As operações eram feitas em condições desfavoráveis para o fundo, mas benéficas para o banco. Na aquisição dos créditos cedidos, o FIDC de fachada aplicava uma taxa de desconto menor do que a praticada pelo mercado, gerando lucros artificiais e elevados para o Cruzeiro do Sul. O esquema funcionou entre janeiro de 2008 e meados de 2009.

O cenário fictício de demanda e liquidez criado pelos donos do Cruzeiro do Sul deu resultados

TERMOS ESTRANHOS — Além de encher o balanço de empréstimos e cessões de recebíveis falsos, os administradores do Cruzeiro do Sul inflaram artificialmente a demanda por papéis na bolsa. A partir de dezembro de 2010, os controladores manipularam as cotações. A denúncia do Ministério Público conclui que oito testas de ferro, dentre pessoas físicas e jurídicas, eram sistematicamente financiados pelo Cruzeiro do Sul para negociar as ações do banco e operar contratos a termo lastreados no papel.

No mercado a termo, os investidores se comprometem a comprar ou vender um pacote de ações, a um preço prefixado, para liquidação futura. Diferentemente de uma opção de ação, em que o comprador tem o direito de exercer ou não a compra ou venda, o contrato a termo implica a concretização da operação. Seu propósito é, em resumo, uma reserva de lote e preço sob condições combinadas. Como o contrato se encerra com a transferência efetiva do papel, e não apenas o ajuste financeiro, é exigido dos vendedores a termo deter, no momento da celebração, as ações que serão entregues futuramente. “Esse movimento gera uma demanda de compra dos papéis e impacta os preços”, explica o professor Alexandre Chaia, do Insper.

O cenário fictício de demanda e liquidez criado pelos donos do Cruzeiro do Sul deu resultados. Ao longo do ano 2010, foram negociadas, em média, 66.048 ações do Cruzeiro do Sul a cada pregão, segundo a base de dados Economática. No ano seguinte, a média diária subiu para 84.748 papéis. Em 2012, até a intervenção, eram 191.622 ações movimentadas a cada pregão — sendo que, nas datas de celebração de termo, a média disparava para mais de 10 milhões de ações por dia, segundo dados da BM&FBovespa. O domínio dos contratos a termo fazia com que, em diversos pregões, a quantidade de lastro necessária chegasse a representar 99,99% do movimentado na bolsa.

A pressão sobre os papéis fez com que as ações, já a partir de setembro de 2010, se descolassem do Ibovespa. Do IPO até o dia 21 daquele mês, as ações do Cruzeiro Sul caíram 13%, e o Ibovespa subiu 25%. Dessa data em diante, a situação se inverteu: as ações do banco valorizaram 20% até 30 de maio de 2012, enquanto o Ibovespa perdeu 21%.

Os controladores procuravam se aproveitar ao máximo da oscilação dos papéis. Com o banco listado no Nível 1 da BM&FBovespa, eles seriam obrigados a manter, por norma da Bolsa, um percentual de 25% das ações em circulação, mas não era bem isso o que faziam. Parte dos papéis considerados como free float estavam, na verdade, sob a máscara de contratos de total return swap (TRS) com o banco UBS Pactual em que o beneficiário era o próprio Cruzeiro do Sul. Entre abril de 2008 e novembro de 2010, quase 3% dos papéis em circulação (em torno de 4 milhões de ações) mantiveram-se vinculados a esse tipo de contrato. Na operação, o banco repassa ao cliente o fluxo financeiro gerado pela ação (oscilação de preços e proventos) em troca de uma remuneração. O último contrato selado rendeu um ganho de R$ 39,4 milhões ao Cruzeiro do Sul com a alta dos papéis.

AS RECOMPENSAS — As trapaças nos balanços e na bolsa enriqueceram seus autores ao longo dos cinco anos de fraude. A lucratividade da instituição deu um salto. No exercício 2006, o banco registrou lucro líquido de R$ 41,299 milhões. Em 2011, foram R$ 137,202 milhões. A rápida evolução do patrimônio líquido também impressiona. Saiu de R$ 236,6 milhões, em 2006, para R$ 901,2 milhões no ano seguinte, alta de 280%. A partir de 2008, o patrimônio do banco manteve-se estável, sempre em torno de R$ 1,1 bilhão. Os balanços em ótimo estado permitiram ao Cruzeiro do Sul se capitalizar em períodos de escassez das fontes de financiamento dos bancos médios. Entre 2010 e 2011, a instituição levantou um total de US$ 1,150 bilhão emitindo títulos de dívida no exterior.

Em 2010, os Indio da Costa tentaram fazer uma oferta secundária de ações — uma oportunidade, de certo, para colocar no bolso os ganhos com a manipulação dos números. De acordo com o prospecto preliminar, a intenção era vender 29,5 milhões de ações preferenciais, sendo 14,605 milhões delas em uma oferta secundária. Se levado em conta o preço de R$ 11,90 por ação, conforme estimado, embolsariam R$ 173,8 milhões, que se somariam aos R$ 133,8 milhões arrecadados anos antes no IPO. A iniciativa, no entanto, foi frustrada. O banco desistiu da operação por conta das condições adversas do mercado.

Os banqueiros não concretizaram a venda de um lote de ações, mas expropriaram a instituição enquanto puderam. Denúncia do Ministério Público mostra que, somente em decorrência dos empréstimos falsos, o enriquecimento ilícito de Luis Felippe Indio da Costa teria somado R$ 179,2 milhões, e o de Luis Octavio, R$ 86,9 milhões. A maquiagem dos balanços lhes teria rendido ganhos por meio de dividendos, juros sobre o capital próprio e pró-labore, apontou o Ministério Público. Os comparsas dos donos do banco também ficaram milionários: Horácio Martinho Lima, conselheiro de administração, obteve R$ 17,4 milhões com dividendos e pró-labore; e Maria Luisa Garcia de Mendonça, diretora, R$ 10,3 milhões, por meio de pró-labore.

O montante amealhado pelos controladores do Cruzeiro do Sul entre a abertura de capital e a intervenção atinge R$ 577 milhões — incluindo aí o obtido com a venda das ações no IPO. Uma fabulosa empreitada, sem dúvida, não fosse o fim trágico. Conforme estimativa de uma fonte de mercado, Luis Felippe teria despendido R$ 10 milhões para comprar o banco, na década de 90. O Cruzeiro do Sul nasceu, oficialmente, em 1989, a partir da transformação em banco da Cruzeiro DTVM. A instituição foi fundada pelo Grupo Pullman, fabricante de pães, e, até a chegada dos novos controladores, era apenas uma licença de prateleira, sem operações.

O NAUFRÁGIO — O Banco Central começou a investigar o Cruzeiro do Sul em 2009. Detectou o esquema dos FIDCs enganosos e acionou a Polícia Federal, que instaurou um primeiro inquérito — o qual, somado à investigação iniciada posteriormente, decorrente da fraude com os empréstimos consignados, culminou na denúncia do Ministério Público e nos dois processos que hoje correm na Justiça. A CVM também entrou em cena ao identificar a trama envolvendo FIDCs. Determinou ao banco refazer e republicar as demonstrações financeiras relativas ao encerramento do exercício de 2008 e os três informes trimestrais de 2009, a fim de eliminar os efeitos decorrentes da suposta cessão de R$ 233,1 milhões em créditos para os fundos. O lucro líquido de R$ 178,9 milhões de 2008, como inicialmente reportado, se transformou em um prejuízo de R$ 130,6 milhões. A nova informação, no entanto, só chegou ao mercado em 2010, quando a distribuição de R$ 63,550 milhões em dividendos e de R$ 31,385 milhões em juros sobre capital próprio já tinha sido sacramentada em assembleia-geral ordinária (AGO).

As transações do Cruzeiro do Sul no mercado de securitização só produziram tamanho efeito porque escaparam aos olhos de diversos agentes de mercado, dentre eles o auditor independente. Tanto que, em 2011, a KPMG, auditora das demonstrações contábeis do FIDC BCSul Verax Multicred (e também do Banco Cruzeiro do Sul), celebrou um termo de compromisso de R$ 1 milhão para encerrar o processo aberto pela CVM. Foi instaurado ainda um processo da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), em 2010, no qual BCSul Verax e Cruzeiro do Sul DTVM, respectivamente gestora e administradora dos FIDCs, celebraram termo de compromisso de R$ 500 mil.

Na CVM, a Verax e a distribuidora propuseram a celebração de outro termo de compromisso, dessa vez no valor total de R$ 1,050 milhão. No meio do caminho, no entanto, houve a intervenção do banco. O Fundo Garantidor de Crédito (FGC), novo administrador do conglomerado, manifestou-se contrário à celebração do acordo para preservar recursos em garantia aos credores. A CVM, por sua vez, também decidiu rejeitar a proposta por entender que ela seria “inconveniente” diante das características do caso. Sem o termo de compromisso, o caso irá a julgamento pelo colegiado.

As transações no mercado de securitização escaparam aos olhos de diversos agentes de mercado

EPÍLOGO — Duas semanas antes da intervenção do Banco Central, ainda houve uma manobra final dos Indio da Costa. Luis Felippe e Luis Octavio venderam quase 9 milhões de ações preferenciais que detinham diretamente com a suposta intenção de enquadrar o Cruzeiro do Sul à regra de capital mínimo em circulação estabelecida pelo Nível 1 da BM&FBovespa. No encerramento de 2011, o banco tinha pouco mais de 18% de free float. No entanto, essa pode ter sido mais uma falácia.

Na ponta compradora das ações, estava o fundo Caieiras, administrado pelo Morgan Stanley e cujos beneficiários finais, especula-se, seriam Luis Felippe e Luis Octavio. A operação teria sido usada pelos controladores para se desfazer de suas ações, uma vez que, na ocasião, já tinham sido informados de que o BC havia desvendado as inconsistências contábeis. A hipótese aventada em reportagem da Folha de S.Paulo à época é que o Morgan Stanley teria emprestado os recursos para aquisição das ações.

Em junho de 2012, o BC decretou a intervenção da instituição e passou sua administração para o FGC. Em setembro, decretou sua liquidação extrajudicial. Com a aceitação integral da denúncia do Ministério Público pela 2ª Vara Federal, Luis Felippe e Luis Octavio Indio da Costa e outros 15 acusados passam a réus em dois processos que apurarão os crimes de formação de quadrilha contra o Sistema Financeiro Nacional e contra o mercado de capitais, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, dentre outros. Um terceiro inquérito foi instaurado pela Polícia Federal para investigar o destino dos recursos retirados do conglomerado Cruzeiro do Sul. Como administradores do banco, os réus também enfrentarão uma série de processos administrativos, instaurados pelo BC e pela CVM. Procurados diretamente ou por meio de seus advogados, os denunciados citados nesta reportagem não concederam entrevista.

Em um esquema de ilícitos tão amplo, parece evidente que os donos e os profissionais do Cruzeiro do Sul não foram os únicos a ganhar. Os vultosos volumes negociados na bolsa fizeram a alegria de muitos, assim como os dividendos distribuídos sobre lucros falsos. Assessores contratados para estruturar a ciranda financeira idealizada pelos Indio da Costa, por sua vez, tiraram proveito da demanda gerada pelo esquema — e, por essa razão, provavelmente, se calaram. Como todos sabem, as estruturas do mercado de capitais demandam bons times para serem erguidas. Infelizmente, os protagonistas do Cruzeiro do Sul não estavam sozinhos.

Banqueiros resgataram cotas às vésperas da intervenção

As manobras capitaneadas pelos donos do Cruzeiro do Sul também passaram pela gestora de recursos do banco, a BC Sul Verax. Nesse caso, foram utilizados fundos de investimentos em participações (FIPs). Em outubro de 2008, a gestora teria começado a vender o FIP BCSul Verax Equity 1 e o FIP Verax Cinco Platinum em suas agências bancárias, com promessa de liquidez diária — algo impossível pela Instrução 391 da CVM, que regula os FIPs como condomínios fechados, com resgate apenas no término do prazo da aplicação ou na liquidação do fundo. A rentabilidade era atrativa — até 110% do Certificado de Depósito Interbancário (CDI).

Os recursos captados por meio dos dois fundos financiavam os Indio da Costa. Ambos alocavam 100% do patrimônio em debêntures da Patrimonial Maragato, uma empresa de fachada, cujos donos eram Luis Felippe e Luis Octavio, e somavam R$ 456 milhões. Denúncia do Ministério Público indica que pelo menos 154 cotistas foram lesados.

Para viabilizar a liquidez diária sem reduzir o patrimônio — e, dessa forma, sem ser pega pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) —, a gestora criou um falso mercado secundário de cotas, em que laranjas simulavam adquiri-las. Dessa forma, quando um cotista pedia o resgate, a cota não era contabilmente liquidada, mas, sim, vendida a um terceiro. Pelas contas do BC, o esquema viabilizou o desvio direto de R$ 171,5 milhões em favor dos controladores. (Y.Y.)


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