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Falta de regras desincentiva ICOs no Brasil
Sem uma diretriz da CVM, empreendedores locais fazem ofertas em países como Suíça e Malta
ICOs não decolam no Brasil por falta de regulação

Ilustração: Rodrigo Auada

O admirável mundo novo dos criptoativos se desenvolve num ritmo alucinante e surpreendente. Quem poderia imaginar que um dia o ex-jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho emprestaria sua imagem para uma criptomoeda e que algo chamado Ronaldinho Soccer Coin (RSC) seria oferecido a investidores por meio de uma initial coin offering (ICO)? Pois a partir de novembro ele deve levar adiante a empreitada, em parceria com a startup maltesa World Soccer Coin, para captar recursos para o financiamento de projetos ligados a futebol. Devem ser ofertadas 140 milhões de RSCs na blockchain da empresa chinesa NEO. Observe-se um detalhe: a parceria com uma empresa sediada em Malta, minúscula república no meio do Mediterrâneo, que no primeiro momento pode parecer estranha mas nada tem de arbitrária. As empresas brasileiras interessadas nesse tipo de captação fora do modelo tradicional têm buscado jurisdições com regras claras para fazer essas ofertas — e Malta foi o primeiro país a criar leis para realização de ICOs e negociações com criptomoedas.

O projeto do ex-jogador não é de grande escala. Provavelmente, não atrairia o interesse dos tradicionais fundos de venture capital ou dos bancos de investimento que coordenam ofertas de ações. Assim, Ronaldinho Gaúcho optou por seguir o exemplo de startups do mundo todo e bater em outras portas. De acordo com levantamento da firma americana Vanbex Ventures, os aportes via ICO em negócios de blockchain, no mundo, já superaram os investimentos feitos por meio de private equity ou venture capital — foram 5,5 bilhões de dólares contra 950 milhões de dólares em 2017. Apenas nos Estados Unidos 127 ICOs ocorreram no ano passado — número não tão distante das 189 ofertas iniciais de ações (IPOs) realizadas na Nyse e na Nasdaq no mesmo período, segundo dados da PwC e da Dealogic, respectivamente.

Como o mecanismo de captação de recursos via ICO é novo e diferente de tudo o que já se fez antes, vale uma breve explicação. Em um ICO, a empresa que está em busca de recursos para seus projetos emite uma moeda digital própria — que também pode ser chamada de token — e a oferece a pessoas interessadas no negócio no ambiente de uma plataforma cujo suporte está em blockchain. A tecnologia é uma espécie de livro-caixa descentralizado em que os registros são validados por computadores de usuários espalhados pelo mundo. No ICO, os tokens são vendidos — diferentemente do que acontece no caso da mais famosa das criptomoedas, o bitcoin, que é distribuído a usuários da internet conhecidos como mineradores. Numa simplificada analogia com os mercados tradicionais, em que os investidores adquirem ações para tornarem-se sócios de uma companhia aberta ou compram um título de dívida em troca do recebimento de uma taxa de juros, no mercado virtual os investidores de ICOs recebem tokens que podem ser usados para vários fins dentro de uma plataforma.

Há dois principais modelos de token: o equity token, que oferece participação no negócio da empresa emissora, e o utility token, que dá direito à utilização de uma plataforma, produto ou serviço da startup que o lançou. Retomando o caso da RSC: ela garante ao detentor do token o direito de participar de plataformas de apostas em jogos reais e virtuais, além de acesso a aplicativos de realidades virtual e aumentada que simulam um jogo do usuário ao lado de seus ídolos. O ICO de Ronaldinho Gaúcho, portanto, envolve utility tokens.

Insegurança

Se os ICOs seguem uma trajetória de crescimento meteórico no mundo — nos primeiros cinco meses de 2018, essas ofertas arrecadaram 13,7 bilhões de dólares, quase o dobro do registrado em todo o ano passado (7 bilhões de dólares), segundo a PwC e a Crypto Valley —, no Brasil essas ofertas ainda não decolaram. A razão? As startups nacionais acham arriscado lançar tokens por aqui, já que não há uma regulação específica para ICOs. Por isso, preferem lançar ofertas no exterior, em países que contam com regras — ainda que mínimas, na maioria dos casos — para a realização dessas emissões, como Suíça e Estônia.

Para financiar o lançamento de uma plataforma para gerenciamento de fundos de aposentadoria com uso de blockchain, a startup brasileira Auctus, por exemplo, vendeu, neste ano, 6.656 ethers (o equivalente a cerca de 5,8 milhões de reais pela cotação de setembro), num ICO feito na rede descentralizada suíça ethereum, uma das mais reconhecidas mundialmente. Essa plataforma também abrigou a oferta das chamadas niobium coins, emitidas pela Bolsa de Moedas Virtuais Empresariais de São Paulo (Bomesp) e que dão direito a serviços na Bolsa, como consultoria para desenvolvimento de moedas digitais. Apesar do nome, a Bomesp foi fundada na Áustria. “A decisão inicial de abrir uma organização em um país europeu está relacionada a uma maior segurança jurídica”, explica Fernando Barrueco, diretor da bolsa. “A falta de regulamentação no Brasil sobre os ICOs gera insegurança jurídica, o que leva as empresas brasileiras a captar dinheiro em plataformas no exterior, dos próprios brasileiros”, observa Fernando Furlan, presidente da Associação Brasileira de Criptomoedas e Blockchain (ABCB). Segundo apurou a reportagem, nenhuma startup brasileira fez ICO em plataforma local até agora.

Não à toa, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vem sendo cobrada a respeito da possibilidade de regulação das ofertas de criptomoedas. A questão é que, de acordo com a Lei 6.385/76, a autarquia não tem qualquer dever de regular esses ativos. O diploma, em seu artigo 2º, apresenta uma lista bastante específica dos valores mobiliários sujeitos à regulação da CVM. Atualizado pela última vez em 2011, o trecho obviamente não cita os criptoativos. “Estamos tendo demonstrações, por parte de alguns participantes desse mercado, de falta de entendimento do papel da CVM nesse campo. Em princípio, não temos a função de regular, já que não se trata de valor mobiliário”, comenta Dov Rawet, superintendente de registro de valores mobiliários da autarquia.

O mesmo impasse vem sendo enfrentado pelo regulador americano, a Securities and Exchange Commission (SEC). Durante discurso em julho, o diretor de finanças corporativas da SEC, William Hinman, desconsiderou a classificação do ether como um valor mobiliário. Ele fundamentou seu raciocínio nos parâmetros estabelecidos em 1946 pela famosa disputa judicial “SEC vs. W.J. Howey Co.”, que resultou no que se conhece como teste Howey. Entre os requisitos para a configuração de um valor mobiliário está a existência de remuneração aos investidores, que deve ser baseada no esforço dos empreendedores — o que, segundo Hinman, não acontece no caso do ether, com sua estrutura descentralizada. A CVM fez o teste para caracterização do niobium e igualmente obteve resultado negativo para “valor mobiliário”. “Os ICOs que temos visto são de utility tokens, que armazenam níveis complexos e multifacetados de valor, o que pode dizer respeito a propriedade, utilidade e recompensas, por exemplo”, detalha Suzi Hong Tiba, sócia do BSH Law Advogados.

Essa complexidade explica por que esses tokens são os que mais desafiam os reguladores. “Trata-se de uma tecnologia muito disruptiva, para a qual ainda não temos um entendimento claro. Conseguir harmonizar definições é importante antes de se dar o passo da regulação”, analisa Fernando Ulrich, economista-chefe de criptomoedas da XP Investimentos. “Quando o ether foi lançado, cogitou-se que ele seria um valor mobiliário, mas hoje está definido que ele é um utility token”, complementa. A dúvida sobre se o ether deveria ser considerado um valor mobiliário decorre do fato de que, embora ele ofereça ao comprador um produto ou serviço, há nele um aspecto de valor mobiliário — a expectativa de lucro, um dos aspectos estabelecidos no teste Howey. “Há pessoas que adquirem tokens mais pela sua expectativa de valorização do que pelos direitos que oferece”, pondera a pesquisadora em mercado de capitais, inovação e empreendedorismo da Faculdade de Direito da FGV Giovana Grupenmacher. Como a quantidade de tokens é predeterminada pelo seu código de criação, quanto mais pessoas adquirem esses ativos, mais escassos eles se tornam, o que aumenta seu preço no mundo real — ou seja, eles são suscetíveis à velha e analógica lei da oferta e da procura. Sócia do Mattos Filho Advogados, Larrisa Arruy argumenta, entretanto, que não cabe ao regulador criar barreiras para um produto por causa da possibilidade de ele ser usado para especulação. “O que ele pode fazer é alertar os investidores sobre os riscos”, defende.

A CVM não demonstra inclinação a regular os tokens, mas tem adotado postura instrutiva em relação aos ICOs. Em janeiro deste ano, a autarquia divulgou uma orientação, manifestando seu entendimento de que os fundos de investimento não podem comprar utility tokens, já que estes não são ativos financeiros. Em setembro, um novo ofício autorizou os gestores a investir em ICOs fora do País, abrindo margem para que investidores acessem inclusive ofertas de empresas brasileiras no exterior. Segundo a autarquia, os investimentos devem ser feitos em jurisdições em que já exista regulação sobre o tema. “Essas orientações são importantes, pois servem de base para indicar o que a autarquia vai observar caso algo dê errado”, destaca Marina Procknor, sócia da área de fundos de investimento do Mattos Filho Advogados.

Experiências internacionais

Com uma das regulações mais permissivas do mundo, a Suíça é uma espécie de paraíso dos ICOs. Apenas no ano passado, foram captados 1,4 bilhão de dólares no país por esse mecanismo, segundo dados da PwC. Isso explica por que está em território suíço o primeiro Crypto Valley do mundo, nas proximidades da cidade de Zug. No último mês de fevereiro, o regulador do mercado financeiro local (FINMA) lançou diretrizes de operação adequadas às funções econômicas e aos propósitos de cada tipo de token, com a intenção de deter eventual lavagem de dinheiro. Foram estabelecidas diferenciações entre payment, utility e asset tokens — sendo que o último seria necessariamente considerado um valor mobiliário, devendo, portanto, cumprir as obrigações impostas a esse tipo de ativo.

A regulação da Suíça para as criptomoedas não é extensa ou inovadora — na verdade, ela apenas dita como as regras já existentes dos mercados financeiro e de capitais se aplicam a essas operações. A Estônia também regula essas ofertas a partir de legislação previamente existente, como leis para o mercado de capitais, proteção do consumidor e prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento de terrorismo. O País atrai empreendedores por oferecer dispositivos como e-Residency, programa que oferece facilidades para estrangeiros abrirem empresas e usarem o sistema bancário. Malta, onde está baseada a empresa responsável pela criptomoeda de Ronaldinho Gaúcho, foi bastante além. O parlamento local aprovou, em julho, três leis que dispõem sobre os ICOs e as negociações com criptomoedas. Entre outras regras, elas estabelecem a criação de uma autoridade digital de inovação (responsável por certificar plataformas que usam blockchain e regular o mercado de criptoativos), procedimentos para o registro de corretoras em Malta e regras para as ofertas iniciais, incluindo garantias e parâmetros para a comunicação dessas operações aos investidores.

Outro país que criou regras para os ICOs é a Coreia do Sul. Sob a alegação de que os investimentos estariam seguindo uma direção especulativa improdutiva e abrindo margem para fraudes, o país chegou a vedar as ofertas públicas de moedas digitais, inspirando-se no exemplo da China. Mas, diferentemente do país governado por Xi Jinping, em maio passado voltou atrás: os ICOs foram oficialmente legalizados e as exchanges tornaram-se instituições financeiras reguladas na Coreia do Sul.

Espaço para testes

Uma legislação feita para um mundo analógico por certo não dá conta da magnitude de inovação representada pela tecnologia blockchain. Assim, a regulação desse mercado novo provavelmente vai precisar de constantes revisões até que se chegue a uma conclusão sobre as melhores práticas. Um meio-termo adotado por alguns países é o exame do comportamento do mercado com a criação do que se conhece como sandbox regulatório — uma espécie de ambiente de testes controlado pelo regulador. A ideia é que seja permitida a flexibilização da supervisão de determinadas normas para que se verifique a pertinência de novos modelos de negócio. Nesse ambiente, em geral são feitas concessões ao cumprimento de regras para que a inovação possa se desenvolver sem grandes empecilhos. Com esse expediente, as empresas estariam protegidas de represálias, e o regulador poderia observar e avaliar erros e acertos daquele novo mercado.

“A ideia de um sandbox regulatório na CVM está em gestação. Ele poderia ser uma ferramenta para não perdermos oportunidades. Nele o empreendedor teria segurança para levar adiante suas iniciativas sem o receio de ser punido e poderia ter orientação do regulador sobre como conduzir suas atividades”, detalha Felippe Baretto, analista da CVM. Em julho passado, o Financial Conduct Authority (FCA), regulador britânico para o mercado de capitais, aceitou 11 fintechs que operam em blockchain para participar de sua quarta rodada de sandbox. O órgão usa esse dispositivo desde 2016, com o objetivo de impulsionar a inovação e, ao mesmo tempo, reter as novas ideias no país — sob a proteção do regulador, elas não ficariam inclinadas a buscar jurisdições com regras mais frouxas. Das empresas participantes, a FCA exige comunicação com transparência e respeito aos consumidores.

O ambiente de testes também pode ajudar na criação de mecanismos para se barrar práticas fraudulentas — afinal, não é desprezível o potencial dos ICOs como ferramenta de crimes como lavagem de dinheiro. No último mês de abril, a operação Tulipan Blanca, coordenada pela Europol e conduzida pela Guardia Civil espanhola, resultou na detenção de 11 pessoas por lavagem de cerca 8 milhões de euros por meio de criptomoedas. Eles lavavam quantias originadas de tráfico de drogas, convertendo dinheiro ilícito em bitcoins. “É fundamental que, globalmente, se adote uma política mais ou menos convergente para se detectar esses crimes. As obrigações para fins de prevenção à lavagem de dinheiro são básicas: identificação de clientes, manutenção de registros e monitoramento de operações, para que, diante de situações suspeitas, as unidades de inteligência financeira sejam comunicadas”, afirma Joaquim da Cunha Neto, diretor de inteligência financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Ministério da Fazenda. O alcance inesgotável da movimentação financeira virtual também atrai ataques cibernéticos. Em uma mesma semana de junho, duas bolsas de criptomoedas sofreram invasões de hackers na Coreia do Sul. A Bithumb, por exemplo, perdeu cerca de 31,5 milhões de dólares — valor que a bolsa se comprometeu a ressarcir aos clientes. De acordo com levantamento da consultoria EY de dezembro de 2017, cerca de 10% dos fundos de ICOs são perdidos em ataques hackers.

Considerados os riscos de fraude e de ataques, não é de se estranhar que os investidores estejam sendo mais seletivos na aquisição de criptoativos. Das ofertas iniciais feitas no mundo em novembro de 2017, por exemplo, apenas 23% atingiram a meta de captação, bem menos que o percentual de 93% registrado no mês de junho do mesmo ano, segundo a EY. “Os ICOs não podem ser usados como uma arbitragem para se fazer captações com regras mais leves. Em alguns casos, essas captações poderiam ser feitas com outro tipo de oferta já regulada”, destaca Arruy, do Mattos Filho. As metas, as perspectivas, as garantias e a viabilidade da empresa que emite tokens para um ICO devem constar em documento conhecido como white paper. Porém, diferentemente do prospecto de uma oferta pública de ações, o que está escrito ali não passou pelo crivo do regulador. Mais um motivo para os investidores pensarem duas vezes antes de se render à febre dos ICOs.


Algumas das declarações acima expressas foram apresentadas em workshops e grupos de discussão promovidos pela CAPITAL ABERTO.


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