No caminho certo?
Uma análise das regras da CVM para o crowdfunding de investimento
Ilustração: Rodrigo Auada

Ilustração: Rodrigo Auada

Financiar empresas nascentes com o dinheiro do grande público investidor. Esse é o propósito do equity crowdfunding, modalidade de captação de recursos que arrecadou 569,5 milhões de dólares nos EUA em 2016, segundo estudo de acadêmicos da Universidade de Chicago. O montante não tem nada de desprezível, e poderia ser ainda maior se a Securities and Exchange Commission (SEC), autoridade que disciplina o mercado americano, não regulasse as ofertas direcionadas ao investidor de varejo de maneira tão pesada e burocrática.

Uma vez que a Instrução 588 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que trata do crowdfunding de investimento no Brasil, foi inspirada na legislação americana, será que o regulador brasileiro também cometeu excessos? Uma conclusão depende, incialmente, de uma análise da situação regulatória nos Estados Unidos.

Dois pesos, duas medidas

Em 2012, o então presidente Barack Obama assinou o Jumpstart Our Business Startups Act (Jobs Act), com o intuito de facilitar a criação de alternativas de financiamento aos pequenos empreendedores em um período pós-recessão. Um dos objetos da lei (tratado nos títulos II e III do documento), é o equity crowdfunding, modelo de captação de recursos em massa por meio de plataformas eletrônicas.

Implementado em 2013, o título II (“Access to capital for job creators”) destina-se ao financiamento de companhias por accredited investors, nome em inglês dado a investidores que têm patrimônio mínimo de 1 milhão de dólares (sem incluir o imóvel de residência) ou que obtiveram renda anual de pelo menos 200 mil dólares nos três exercícios anteriores. À semelhança dos investidores qualificados no Brasil, supõe-se que tenham maior conhecimento sobre o mercado e, por isso, não há limites para seus investimentos. Sob esse título, os emissores contam com dispensa de registro da oferta na SEC, devendo apenas preencher um formulário com informações básicas sobre a companhia, seus principais executivos e dados essenciais da oferta, como duração, data de início e tamanho.

Já o título III (“Crowdfunding”), aplicado desde maio de 2016, permite que companhias captem recursos com o público em geral até o limite 1 milhão de dólares por ano. Dado o risco desse tipo de investimento, a SEC estabeleceu que investidores com rendimento anual inferior a 100 mil dólares podem aplicar, no máximo, 5% da sua renda (ou 2 mil dólares, o que for maior) em ofertas de equity crowdfunding. Caso a renda anual supere esse patamar, o percentual de alocação sobe para 10%.

Outra peculiaridade do título III está nos deveres de transparência impostos às companhias, que precisam divulgar um formulário no início da oferta e relatórios anuais de gestão. Esse formulário inicial deve conter, entre outros dados, o estatuto social da companhia, seus endereços físico e eletrônico, o plano de negócios, a composição da diretoria, a identificação dos sócios e o método de precificação dos títulos ofertados. Caso a captação anual seja superior a 100 mil dólares, as demonstrações financeiras do emissor devem ser revisadas por um contador; se ela ultrapassar 500 mil dólares, as contas precisam ser aprovadas por auditores independentes.

Essas exigências tornam o título III mais complexo, oneroso financeiramente e desinteressante para companhias que não querem divulgar detalhes sobre seu plano de negócios. Por causa disso, ofertas feitas por essa modalidade captaram cerca de 39,7 milhões de dólares, em contraposição aos 217,2 milhões de dólares arrecadados por ofertas reguladas pelo título II — considerando o primeiro ano de vigência de cada norma.

As ofertas dos títulos II e III precisam, ainda, ser intermediadas por broker-dealers devidamente registrados e autorizados pela SEC e que sejam de membros da Finra (Financial Industry Regulation Authority, entidade americana de autorregulação de intermediários). Esses agentes funcionam como gatekeepers, devendo tomar as medidas necessárias para reduzir riscos de fraude e garantir a observação da regulação, sujeitando-se a padrões rígidos de due diligence, sob pena de sanções disciplinares e multas.

Regra única

No Brasil, o equity crowdfunding surgiu em 2014 com a estreia da plataforma Broota, fundada por Frederico Rizzo. Antes da Instrução 588, as emissões eram reguladas pela Instrução 400, que dispensava o registro de pequenas e microempresas e das ofertas por elas feitas no montante de até 2,4 milhões de reais por ano.

Diferentemente da SEC, a CVM criou uma regra única para o crowdfunding. Empresas com receita anual de até 10 milhões de reais podem fazer ofertas por meio de financiamento coletivo na internet com dispensa automática do registro tanto da oferta quanto do emissor. A captação máxima anual é de 5 milhões de reais, com intervalo mínimo de 120 dias entre duas ofertas bem-sucedidas. A norma permite que a emissão seja concluída se for alcançado um valor mínimo fixado previamente, que deve ser superior a dois terços do valor total da emissão.

Para ter acesso a esse tipo de financiamento, os emissores precisam preencher o anexo 8 da Instrução 588 com informações sobre a empresa e seu plano de negócios (objetivos do empreendimento, principais produtos e serviços a serem ofertados, público-alvo e região de atuação), e sobre a oferta em si — método utilizado na determinação do preço dos títulos emitidos, prazo e valor total. O emissor deve descrever quais informações se compromete a divulgar após a oferta, como, por exemplo, indicadores de desempenho, informações financeiras, projetos de novos produtos — e com que periodicidade fará essa divulgação. Essa liberdade dada pela CVM para que cada emissor decida o que reportar foi importante, na visão de Rizzo: “…era evidente que as melhores startups não utilizariam o crowdfunding se fossem obrigadas a compartilhar dados estratégicos ou sensíveis com investidores desconhecidos”, escreveu no artigo “Instrução 588 na Prática”, publicado em 19 de julho de 2017 nas plataformas digitais da CAPITAL ABERTO.

Paternalismo

Para proteger o investidor, a CVM exige que ofertas de crowdfunding de investimento ocorram apenas em plataformas registradas na autarquia. A Instrução 588 estabelece que elas devem exercer o papel de gatekeepers, assegurando que informações prestadas pelos emissores sejam verdadeiras, consistentes e corretas. Essa obrigação é de meio e não de fim — ou seja, o que a autarquia espera das plataformas é que atuem diligentemente para verificar as informações. Na audiência pública que discutiu a minuta da Instrução 588, a CVM esclareceu que um modelo em que a plataforma opera apenas como um mural de anúncios de ofertas, sem maiores responsabilidades e sem o dever de proteger os investidores, não é aceito na maioria das jurisdições, justificando sua escolha de impor certas obrigações às plataformas locais.

Nessa mesma linha paternalista, a autarquia optou por limitar o total que pode ser aplicado por investidor: 10 mil reais por ano, exceto quando se tratar de investidor-líder (pessoa natural ou jurídica com comprovada experiência de investimento), investidor qualificado (pessoa física ou jurídica com aplicações financeiras em valor igual ou superior a 1 milhão de reais) ou investidor com renda bruta anual ou montante de investimentos financeiros superior a 100 mil reais. Nesses casos excepcionais, o investidor deve declarar que o valor investido é inferior a 10% do seu patrimônio.

Uma particularidade do equity crowdfunding brasileiro é a existência do sindicato de investimento participativo, que reúne pessoas físicas interessadas em investir conjuntamente com um investidor-líder, que seleciona oportunidades promissoras em troca de uma taxa de performance sobre o investimento. A plataforma Broota conta hoje com 19 sindicatos ativos, sendo os maiores liderados por empresas como a Dynamo Ventures, aceleradoras e investidores-anjo com experiência no mercado. Esses sindicatos têm entre 20 e 115 membros apoiadores e fizeram captações de 10 mil a 1,82 milhão de reais, com investimento individual mínimo de mil a 5 mil reais.

Críticas

Em razão do receio de afastar as empresas nascentes do equity crowdfunding, a CVM criou uma norma menos rigorosa que a do regulador americano. A opção por regime de informações mais simplificado, que não afaste desse mercado empresas que não queiram divulgar seu plano de negócios, foi um dos grandes acertos da norma. No entanto, é possível enumerar ao menos cinco críticas à Instrução 588, a seguir enumeradas.

— Prazo de 120 dias entre duas captações bem-sucedidas: pode ser prejudicial à expansão da empresa se houver necessidade de nova captação em um período inferior, podendo impedir o aproveitamento do impacto positivo da rodada anterior.

— Limite mínimo de captação: afasta empresas que precisem de valores inferiores ou que queiram usar o crowdfunding principalmente para dar visibilidade ao seu produto ou serviço, por já contarem com investimentos de anjos ou de fundos de venture capital.

— Plataformas como gatekeepers: as plataformas podem não ter incentivos suficientes para exercer esse papel, dada a ausência de previsão de responsabilidade pelo descumprimento dessa função na Instrução 588.

— Vedação de captação por companhias integrantes de grupo econômico cuja receita bruta consolidada anual seja superior a 10 milhões de reais no exercício social encerrado no ano anterior à oferta: inviabiliza o financiamento de empresas do setor imobiliário, usualmente controladoras de diversas sociedades de propósito específico (SPEs). Nos EUA, o real state crowdfunding é uma das vertentes de financiamento coletivo mais bem-sucedidas, tendo captado em 2016 cerca de 821 milhões de dólares, um crescimento de 70% em relação a 2015, de acordo com estudo conjunto das universidades de Cambridge e Chicago.

— Proibição de promoção de ofertas fora do ambiente das plataformas: impede a atração de um maior número de investidores. Num momento em que essa modalidade de investimento ainda engatinha no País, seria importante que fosse dada maior publicidade a esse mecanismo alternativo de captação de recursos e às ofertas. No entanto, na avaliação da CVM, uma alteração nesse sentido seria prejudicial aos investidores, dado que dificultaria sua supervisão em relação às informações veiculadas.

Apesar dessas questões, a Instrução 588 parece ter aumentado a transparência e segurança em relação ao funcionamento do equity crowdfunding, tornando-o uma modalidade alternativa e atraente de capitalização para empresas nascentes ou emergentes.

O financiamento dessas empresas é hoje um problema relevante no País, considerando as altas taxas de juros cobradas nos financiamentos bancários, as dificuldades para obtenção de crédito (que usualmente envolve a exigência de garantias) e o custo elevado para se fazer uma emissão de ações. Esse último ponto, aliás, explica por que apenas um seleto grupo de grandes empresas usa o mercado acionário para se capitalizar — as emissões primárias são viáveis apenas para captações superiores a 150 milhões de reais, indica pesquisa em andamento no Núcleo de Mercados e Investimentos FGV-SP, coordenada pelo professor Ary Oswaldo Mattos Filho.

Só o tempo e a experiência do mercado dirão se a Instrução 588 precisará de ajustes ou se o arcabouço regulatório atual é suficiente para garantir que mais anjos surjam na multidão para financiar o desenvolvimento econômico e empresarial do nosso País.


*Giovana Treiger Grupenmacher e Mário Sérgio Souza Seabra da Rocha são, respectivamente, advogada e mestranda em Direito pela FGV-SP e bacharelando pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador júnior no Núcleo de Estudos de Mercados e Investimentos da FGV-SP.


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