Capitalistas românticos
Espécie em extinção, os colecionadores de ações ainda exibem com orgulho suas relíquias

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No modesto escritório que o agente autônomo de investimentos Amadeu Zamboni Neto, 48 anos, vive no bairro de Perdizes, em São Paulo, há espaço para a mesa da secretária, algumas cadeiras para reuniões com clientes e um armário apinhado de cautelas de ações de baixo valor, liquidez escassa e preço sentimental incalculável. Dentre as cerca de 530 peças guardadas por Zamboni estão ações do primeiro lote emitido pela estatal de telecomunicações Telebrás, papéis da fabricante de autopeças Mangels, da Companhia Energética do Maranhão (Cemar) e da Lark, operadora de logística que teve ações negociadas na Bolsa apenas três vezes nos últimos cinco anos. “Uma papelada que acumulei ao longo de uma vida de trabalho no mercado financeiro”, resume. No começo, Zamboni juntava esses papéis na esperança de reunir um lote mínimo e vendê-lo na Bovespa. Com o tempo, percebeu que eles tinham mais um valor saudosista do que financeiro. “Olha só esse papel todo azul e amarelo. Ainda tem o cupom ‘ao portador’. Não é lindo?”, derrete-se, exibindo um papel da Andrade Gutierrez Concessões.

Zamboni faz parte de um grupo cada vez menor de investidores individuais que compram papéis de baixíssima liquidez simplesmente pelo gosto de tê-los sobre a mesa do escritório. A prática de colecionar ações está associada ao modo como os papéis de companhias de capital aberto eram negociados até o fim dos anos 80, quando um investidor podia passar uma cautela de ações a um terceiro livremente, já que os papéis muitas vezes eram de quem os portasse. A emissão de ações “ao portador” foi vedada pela Lei 8.021, de 1990.

Contribuíram para o declínio do hábito de colecionar a informatização da BM&FBovespa e a digitalização das transações. “O prazer dos colecionadores é ter o papel nas mãos e exibir as cautelas aos amigos”, ressalta Felipe Mello, economista da Máxima Asset. “O que você faz com um documento de computador? Mostra para os amigos na tela do PC?” O próprio termo “colecionador de ações” está mudando de significado com o declínio das coleções propriamente ditas. “No mercado, se você disser que é um colecionador vão entender que você é um cara que gosta de investir a longuíssimo prazo, que compra sempre que pode e nunca vende nenhum papel”, observa.

O consultor jurídico e ex-ferroviário Sérgio Feijão, 51 anos, compartilha com Zamboni o apreço pelas ações raras. Na casa que Feijão divide com a mãe, em São Paulo, há papéis da Ferrovias Ferronorte, ações que nem sequer podem ser vendidas sem antes serem convertidas nos papéis do novo grupo formado a partir dessa empresa. “Quando a Ferronorte virou Fepasa, eu deveria ter trocado minhas ações originais e vendido os papéis. Mas gosto de ser acionista, que é algo muito diferente de ser um investidor. Enquanto o investidor só pensa no retorno financeiro, o acionista gosta de fazer parte da companhia e colaborar com o progresso do Brasil”, filosofa Feijão.

ATIVISMO EXCÊNTRICO — Membro da Associação para a Preservação da Memória Ferroviária, Feijão faz uso de seu status de minoritário para ter acesso às assembleias de acionistas e trocar cartões com presidentes e diretores das grandes empresas do setor no Brasil. “Eu peço a eles doações para minha associação. De outra forma não teria acesso a esses executivos”, confessa o consultor. A contragosto, ele concorda que seu hobby está em franca decadência. “Infelizmente, os ‘bons acionistas’ estão sumindo do mapa”, lamenta-se. “Outro dia a filha de um amigo do mercado financeiro me ligou perguntando o que fazer com um monte de papel velho que seu pai lhe deixou de herança. As novas gerações não querem saber de colecionar papéis”, resigna-se.

Feijão e Zamboni construíram suas carteiras de relíquias de modo quase involuntário. Ambos passaram as últimas duas décadas comprando e vendendo papéis na bolsa paulista e, entre perdas e ganhos, ficaram também com ações de liquidez zero. Zamboni conta que já vendeu alguns papéis a conhecidos, em leilões diretos na Bovespa. “Isso acontece em leilões que não chamam muito a atenção, não alteram a composição acionária das empresas, não têm alto valor e, portanto, ninguém dá bola”, diz. Apesar de, no passado, ter negociado papéis de sua coleção, Zamboni diz que não faria isso de novo. “Tenho ações, por exemplo, da LF Tel. Sou o único acionista dessa companhia fora da família controladora”, afirma orgulhoso, referindo-se à holding do grupo La Fonte, controlado pelos Jereissati.

DE PAI PARA FILHO — Aos 70 anos, o investidor paraibano radicado no Rio de Janeiro José Teixeira, o Teixeirinha, é um colecionador que ilustra bem a mudança de comportamento do mercado. Ao todo, Teixeirinha detém participações em cerca de 450 empresas. Todas adquiridas nos anos 70, 80 e 90, quando era comum comprar pequenos lotes de ações. Tem na sua mesa papéis do combalido Banerj, da fabricante de gases industriais e medicinais White Martins e do primeiro lote emitido pela Souza Cruz, listada em bolsa de valores desde 1946. “Não os vendo por nada neste mundo. Aliás, mesmo que eu quisesse vendê-los, quem os compraria?”.

A coleção de Teixeirinha deve permanecer com ele até o fim da vida. “Gosto de ir beber um uísque com os amigos e mostrar como são bonitos esses papéis. Quero deixá-los de herança para meu filho, para ele ver o que o pai fez ao longo de sua vida”, afirma. As rápidas transformações do mercado brasileiro de ações e o fim das transações em papel, no entanto, devem fazer de Teixeirinha representante de uma das últimas gerações a repassar cautelas de ações para seus descendentes.

Reorganizações societárias: objeto de desejo

Dentre os papéis mais desejados pelos colecionadores de ações estão documentos de empresas que deixaram de existir com seus nomes originais, seja porque foram compradas por terceiros ou porque passaram por um processo de reorganização societária — fusão, aquisição, cisão ou incorporação.

Papéis originais do sistema Telebrás, formado por empresas como Telerj e Telemig, são alguns dos mais disputados por esse grupo. O objeto de desejo, é claro, não são as novas ações, associadas aos grupos Oi ou Brasil Telecom, que venceram os processos de privatizações das teles no fim dos anos 90, mas sim a papelada pré-privatizações. Ações de bancos vendidos, incorporados ou liquidados, como foram os casos do Banco Econômico, Real e Banespa, também viraram meninas dos olhos dos colecionadores.

Quase sempre os papéis colecionados são as cautelas de ações, documentos que asseguram ao seu portador os direitos (a cautela) sobre o número de ações que ali consta. O hábito de colecionar subverte as regras lógicas do capital. Há quem se orgulhe, por exemplo, de ter comprado papéis da Mesbla ou Banerj, companhias que enfrentaram processos de insolvência. “Perdi muito dinheiro com essas empresas. Mas veja como é bonito esse papel com logo cromado da Mesbla?”, diz Teixeirinha. (F.F.)


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