A lista de invenções concebidas para servir a uma necessidade, mas que por fim se notabilizam por atender a propósitos não apenas inusitados como opostos aos originais, está cada vez mais extensa. Para o bem e para o mal. Para o bem, é famosa a história do refrigerante mais consumido do mundo, a Coca-Cola, criado por um farmacêutico para servir de xarope para dores de cabeça e estomacais. Para o mal, temos o exemplo dos incidentes com o “AirTag” que, idealizado para rastrear malas, converteu-se em facilitador de ações criminosas, além de mecanismo para vigiar, por vezes de forma secreta, o paradeiro de pessoas. E, confirmando que tudo na vida tem dois lados, o desespero dos que depois descobrem ter sido perseguidos em segredo convive com o alívio de outros — como o da minha sogra que, mesmo sendo um doce de pessoa, teve que aceitar a imposição de monitoramento permanente como condição para passar as férias de julho em companhia do neto.
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Uma invenção que preencheria boa parte dos requisitos para ser acrescida à lista é a dos ambientes de negociação alternativos aos mercados de bolsa, conhecidos como “dark pools”. A denominação, por razões mencionadas adiante, é inadequada para descrever o que será permitido em mais alguns meses no Brasil. Desenhados sob a justificativa inicial de mitigar ineficiências associadas à negociação de lotes expressivos (“large in scale”), os ambientes alternativos são regulados de forma mais maleável e toleram, entre outros, divulgação diferida de informações, regras não universais de acesso e confidencialidade das cotações.
Tendo sido concebidos para solucionar um problema legítimo, ainda que restrito à categoria singular dos investidores institucionais, causa perplexidade que, nos países em que seu funcionamento está mais consolidado, os ambientes de negociação alternativos tenham se transformado em plataformas de cruzamento do fluxo de ordens de investidores de varejo — justamente o público que mais se beneficia da transparência plena e imediata e do tratamento equitativo inerentes às negociações em bolsa. Da mesma forma, surpreende a escassez de dados empíricos de que tais ambientes tenham dominância na preferência dos institucionais. Se fossem todo esse paraíso para os titulares de grandes lotes, teriam tornado obsoletas as estratégias disponíveis para essa mesma finalidade em mercados de bolsa, o que até o momento não ocorreu.
A curiosa incoerência ajuda a explicar por que, neste momento, as atenções encontram-se voltadas à rodada restrita de discussões concluída há duas semanas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) acerca dos critérios que definirão as ações passíveis de negociarem em grandes lotes. O debate vem no embalo da Resolução 135, que entrará em vigor em setembro, quando se espera que a lista das eleitas esteja pública, juntamente com o tamanho mínimo do lote qualificável como grande.
No Brasil, é vigente de forma imperial, há quase três décadas, a chamada vedação à dupla listagem. Trata-se de regra segundo a qual ações de uma companhia listada em bolsa só podem ser negociadas simultaneamente em outro mercado também organizado como bolsa. A Resolução 135 acaba de autorizar inédita exceção a essa regra, afastando-a, sob condições, para ações cujo lote ultrapasse o patamar mínimo estipulado pela autarquia. Não há como superestimar a importância desse evento. Trata-se da primeira lista das primeiras ações que pela primeira vez poderão ser negociadas simultaneamente em ambientes apartados do livro central, o que, também pela primeira vez, poderá se dar de forma bilateral.
Os contornos básicos para que isso aconteça foram já estipulados na norma e deverão ser atendidos de forma cumulativa. O lote grande deve ser único e indivisível — unicidade a ser constatada nas duas pontas —, compreender a totalidade das ações e demandar a presença de um intermediário. A CVM deixou claro que estará atenta à formação de preços e exigirá divulgação de informações, mesmo que diferida. Os parâmetros aventados para fixar o tamanho do lote foram enunciados exemplificativamente. Consideram, entre outros, volume médio diário de negociação e padrões de liquidez do ativo.
Mas falta definir o principal: a métrica de calibragem que resultará no percentual de liquidez que pode estar prestes a migrar das bolsas para ambientes de negociação regulados de maneira mais flexível. Algumas simulações de impacto feitas pelo mercado a partir dos critérios propostos pela CVM na audiência restrita situam-no em até 20%. Como sempre acontece em exercícios de alta complexidade, as análises devem incorporar uma multiplicidade de fatores, com destaque àqueles únicos à nossa paisagem. É o caso das funcionalidades de negociação que não formam preço no livro central, como os negócios diretos e as ofertas do tipo RLP (“retail liquidity provider”), que, embora em fase de teste, foram há pouco estendidos para englobar exatamente negócios com ações.
Por isso, ao se debruçar sobre a definição de grandes lotes, o mercado está sendo provocado a opinar não sobre a conveniência e a adequação de um conjunto de parâmetros, mas sim sobre a severidade das repercussões produzidas pela magnitude dos fluxos que serão apartados do livro central, passando a disputar liquidez com ele. O desafio envolve um equilíbrio delicado e escolhas nada triviais.
Estamos presenciando um raro momento de redesenho das características estruturais de nossos mercados secundários. Será preciso disciplina para que esse experimento preserve as virtudes capazes de servir às aspirações originais do tipo de investidores que se pretende beneficiar, evitando, ao mesmo tempo, adulterações que lhe imponham destino idêntico ao de seus congêneres internacionais.
*Aline Menezes é general counsel do Grupo UBS para Brasil e América Latina e integrante do Conselho de Supervisão da BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM)
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