Amantes da desgraça
Más notícias sobre o cenário macroeconômico abrem o apetite de fundos especializados em ativos problemáticos

, Amantes da desgraça, Capital Aberto

 

A imagem de um copo com água até a metade pode ser usada como metáfora do nível de maturação da indústria de investimentos em ativos depreciados, ou “distressed assets”, no Brasil. Aos poucos, esse tipo de aplicação começa a ganhar consistência e atrair novos participantes. Empresas que estavam em dificuldades financeiras ou à beira da falência se recuperam ou mantêm-se ativas, preservando empregos e gerando renda, graças à atuação de investidores com gosto inato por risco. A parte cheia do copo é que fundos de investimento com vocação para a compra de créditos podres estão sendo criados. A vazia, que esse mercado poderia ser bem maior, não fosse a insegurança jurídica que ainda paira como um espectro sobre essas operações.

Nos Estados Unidos e na Europa, a maior recessão dos últimos tempos gerou muitas oportunidades para fundos de private equity especializados nessa modalidade de investimento. Empresas com negócios desenvolvidos e marcas bem-sucedidas, mas com receitas ceifadas pela crise e dívidas no limite, viraram alvo de fundos agressivos. O grande atrativo, além das qualidades das companhias, era a chance de pechinchar. Um dos expoentes do ativismo societário norte-americano, Carl Icahn, certa vez resumiu muito bem sua filosofia de investimento: comprar algo quando ninguém quer.

Esse comportamento rendeu ao célebre investidor a alcunha de “abutre”, antes de ficar famoso por aumentar o valor de companhias abertas promovendo transformações intensas de gestão e governança corporativa. O termo remete a especuladores que compram dívida de países à beira do colapso para, depois, cobrarem juros altíssimos na Justiça, como ocorreu com a Argentina no início dos anos 2000. Mas também se aplica a empresas e fundos de investimento que adquirem negócios em dificuldades financeiras ou carteiras de créditos não honrados pelos devedores — na linguagem técnica, os não performados (NPL); em português claro, os podres.

A necessidade de fazer caixa deverá levar os bancos a ceder suas carteiras de crédito para os investidores

CHEIRO DE PROBLEMAS — Criada em 2009 para atuar nessa área, a Velum Credit Management possui dois fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados (FIDC-NPs) com esse fim: o Credistore, com patrimônio de R$ 57 milhões; e o Ipanema, com R$ 18 milhões. Para Fabiano Ramos, diretor da gestora, os investimentos em créditos podres têm grandes chances de ganhar corpo. Ele espera que, até o fim deste ano, carteiras inadimplentes que somam cerca de R$ 30 bilhões sejam vendidas por bancos e instituições financeiras.

A movimentação significaria uma retomada dessa atividade, que está virtualmente congelada desde 2008 devido à crise mundial. Na época, várias instituições internacionais, como CarVal e Eton Park, pararam de atuar aqui e se voltaram para os próprios países, onde havia crédito podre em abundância. Outras paralisaram momentaneamente as operações, como o Merrill Lynch (absorvido pelo Bank of America) e o Morgan Stanley. Varejistas que costumavam vender suas carteiras optaram por segurá-las à espera de preços melhores, e o mercado ficou represado. Com a piora do cenário macroeconômico no Brasil e no mundo, os gestores nacionais acreditam em uma virada nas oportunidades criadas pelas empresas em aperto. “Esse mercado deverá realmente acontecer em 2013 e 2014, quando os créditos estarão mais maduros e a inadimplência, maior”, diz Rodrigo Moratelli, sócio da Orey Financial.

Não é só o crescimento do número de caloteiros na praça que impulsiona os investimentos em créditos podres. Os gestores também apostam num movimento de cessão de carteiras pelos bancos. Um dos motivos será a necessidade das instituições financeiras de fazer caixa. Nos próximos anos, os bancos terão de se adequar ao Acordo da Basileia III, que eleva a necessidade de capital próprio. Ao vender uma carteira problemática, o banco engorda o caixa e abre espaço para a cessão de novos empréstimos, melhorando os indicadores da Basileia. Além disso, consegue computar o prejuízo do calote, que serve para reduzir a base tributária. “O cenário indica mais inadimplência em 2012, mas o gatilho da venda das carteiras de crédito é a escassez de recursos”, diz Evaldo Lima, diretor da Financial Investimentos.

A venda de carteiras cresce à medida que a concessão de crédito se torna mais representativa e os custos de administração das carteiras aumentam. “O volume de crédito no Brasil ainda é baixo, equivalente a 50% do PIB”, observa Salvatore Milanese, sócio da área de reestruturação de empresas da KPMG. Ele estima em torno de

R$ 130 bilhões o volume de créditos vencidos (incluindo não só o crédito bancário, mas também contas de água e energia) com 60 dias a 360 dias de atraso. A compra de créditos pelos fundos, por sua vez, soma entre R$ 15 bilhões a R$ 30 bilhões ao ano.

Para que esse mercado realmente cresça, alguns nós de natureza estrutural precisam ser desfeitos. Dentre eles, a precária qualidade das informações das carteiras de crédito e o baixo nível de profissionalização do setor, que ainda depende de departamentos de cobrança. O desconhecimento do Judiciário sobre o tema é outro fator crítico, porque inibe os investimentos diretos em empresas com dificuldades financeiras.

PONTOS DE INSEGURANÇA — A nova lei de falências e recuperação do Brasil, a 11.101, de fevereiro de 2005, abriu o caminho para essas operações.

Ela foi inspirada no Chapter 11, a bem-sucedida legislação federal norte-americana de falências. Por aqui, a compra da Parmalat pela companhia de investimentos Laep é considerada um marco nesse sentido, criando certa jurisprudência (veja quadro). A venda da Varig para o grupo Matlin Patterson também pode ser vista como um caso de sucesso. Mas esses exemplos são raros. “Ainda estamos longe de ter um mercado ativo em distressed assets”, reconhece Antonio Mazzuco, sócio do escritório Madrona, Hong, Mazzuco Sociedade de Advogados.

Concebida para facilitar a recuperação das empresas e manter os ativos produtivos em atividade, em vez de punir os empresários pelo fracasso, a lei criou um ambiente favorável para o investimento em ativos depreciados por meio de dois instrumentos: a não sucessão de passivos, que isenta o comprador de uma empresa (ou de parte dela) do pagamento da dívida fiscal e trabalhista pregressa; e a atribuição de prioridade no recebimento aos credores ou fornecedores que continuam financiando a empresa em recuperação judicial (modalidade conhecida como “debtor-in-possessing financing” ou DIP financing), de forma que ela tenha mais chances de se reerguer.

Espera-se que o mercado de ativos “distressed” aqueça em 2013 e 2014, com o aumento da inadimplência

Embora a lei tenha estipulado que esses créditos são prioritários, bancos e fornecedores relutam em continuar financiando as companhias em dificuldades. Ainda não há certeza de que a ordem dos créditos será realmente respeitada pelo Judiciário, pois falta jurisprudência sobre o assunto.

Outra inovação trazida pela lei é a possibilidade de segregar os ativos e vender apenas uma parte da empresa em dificuldades, sem sucessão dos passivos. Essa questão está mais esclarecida e oferece certo conforto, porque a matéria já foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Acontece que grande parte dos juízes do País ainda não sabe disso.

Rodrigo Ferraz, diretor de relações com investidores (RI) da Laep Investments, que comprou a Parmalat Brasil em 2005, até hoje se depara com a situação de ter sua conta bancária bloqueada em razão de ações trabalhistas contra alguma das empresas que pertenciam ao grupo. Embora ele não fosse acionista e nem administrador da Parmalat, e apesar de a Laep ter adquirido apenas a Parmalat Brasil, considerada uma unidade produtiva isolada (como prevê a lei), ele tem de se explicar todas as vezes que isso acontece. “Obtivemos o reconhecimento do STJ de que compramos uma unidade produtiva isolada e de que não somos responsáveis pela dívida das demais empresas do grupo. Mas quem investe em ativos desse tipo no Brasil tem de estar preparado para lidar com essas situações”, alerta Ferraz. Ele conta que a Parmalat Brasil já poderia ter saído da recuperação judicial, entretanto isso ainda não aconteceu porque, volta e meia, aparece gente querendo se habilitar para a lista de credores.

A Galeazzi & Associados, consultoria conhecida por processos de reestruturação em empresas com dificuldades, há tempos desistiu desse segmento. Para ela, as possibilidades trazidas pela lei ainda não são suficientes para compensar a falta de jurisprudência e de esclarecimento do Judiciário. “Há 12 anos, mais de 80% dos nossos casos não têm a ver com distressed”, diz Luiz Galeazzi, sócio da consultoria. Um dos fatores críticos é a falta de varas especializadas no assunto. Segundo Galeazzi, há somente quatro no Brasil: duas em São Paulo, uma no Rio de Janeiro e outra em Minas Gerais.

PONTOS DE LUZ — É preciso reconhecer, contudo, que a nova lei promoveu avanços. Hoje, existem casos tanto de empresas que conseguiram manter as atividades após passarem por crises profundas (leia quadro), quanto de gestores que se especializaram em farejar esses ativos. A Orey Financial, por exemplo, criou uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para comprar opções de ações das sobras da falência de uma empresa do setor petroquímico. Para evitar discussões sobre a sucessão de passivos, a gestora optou por adquirir as opções de ações da massa falida ou do patrimônio da falência, em vez das ações. Ao término da falência, a opção pode ser exercida.

O trabalho da Orey foi o de renegociar as dívidas e reorganizar os ativos, encontrando valor, principalmente, nos imóveis da companhia. Como os ativos apurados foram superiores aos passivos, Moratelli, diretor da Orey, espera cravar um rendimento de três vezes o capital investido (R$ 10 milhões), logo que o laudo de encerramento da falência for publicado. Outro participante é a Trindade Investimentos, criada em setembro de 2010, que pretende investir com capital próprio em empresas em dificuldades e também em startups. Respaldado pela experiência como presidente da companhia de aviação BRA durante a sua recuperação judicial, Danilo Amaral, sócio da Trindade, pretende explorar as oportunidades para investir em empresas de médio porte que se encontram em maus lençóis. As companhias desse tamanho, aliás, são consideradas uma oportunidade de ouro por Vincent Baron, da consultoria Naxentia, porque têm potencial de crescimento elevado. Porém, ao mesmo tempo, é preciso ficar atento aos problemas na gestão e aos conflitos entre os sócios. Baron acredita que o mercado de private equity vá se voltar para esse segmento. “A indústria terá de se diversificar.”

Milanese, da KPMG, acredita que mais oportunidades de investimento estão prestes a surgir. Ele espera que os pedidos de recuperação judicial voltem a subir devido ao impacto da valorização do real sobre os negócios das empresas exportadoras. Mas os investidores que gostam dessa aventura precisam estar cientes das adversidades. Um dos entraves do mercado, na opinião de um dos mais conceituados advogados da área, Thomas Felsberg, do escritório Felsberg e Associados, é o fato de os credores de empresas em dificuldades aprovarem planos de recuperação judicial sem viabilidade. “E a falta de confiança do credor atrapalha a recuperação da empresa”, diz ele. Nada que não possa ser transformado em uma oportunidade de negócios para os caçadores de carcaças.

Uma reestruturação que deu certo

Um caso de reestruturação considerado bem resolvido por profissionais do mercado é o da Casa & Video — varejista tradicional no Rio de Janeiro. Às vésperas do Natal de 2008, o então controlador da empresa foi preso durante a operação Negócio da China, levada a cabo pela Polícia Federal, pela Receita Federal e pelo Ministério Público Federal, acusado de importação ilegal e sonegação de impostos. A empresa teve contas bancárias bloqueadas, seus recebíveis travados e entrou em severa crise de liquidez.

Em fevereiro de 2009, já sob gestão da consultoria Alvarez & Marsal, a companhia entrou com pedido de recuperação judicial. Em setembro, aprovou o plano de recuperação em assembleia de credores. O passo seguinte foi criar uma unidade produtiva isolada — reunindo, no caso, as lojas do Rio de Janeiro, a operação de internet e a de televendas, que tinham capacidade de gerar caixa, além da dívida renegociada de cerca de R$ 220 milhões, alongada para dez anos. Essa é a nova Casa & Video, que não está sob recuperação judicial.

Recauchutada, a empresa passou a ser controlada por um fundo de investimento em participações, cujo principal cotista, com 34% da capitalização, é Fabio Carvalho, atual presidente da empresa e ex-executivo da consultoria que tocou a reestruturação. O restante é de antigos credores, que converteram a dívida em ações. A reformulação também foi operacional. O quadro de vendedores foi reduzido à metade (são hoje 3 mil funcionários, incluindo os administrativos), e as despesas com tecnologia da informação foram enxugadas.

A nova Casa & Video emitiu R$ 40 milhões em debêntures em 2010, tomadas inteiramente pelo BTG Pactual, que já chegou a ser apontado pelo mercado como um possível comprador da companhia. Hoje, aliás, são vários os interessados na nova Casa & Video, segundo o vice-presidente Haroldo de Paiva Lorena: “Em 2008, investidores estratégicos cogitaram comprar a empresa, mas ninguém foi adiante em razão da sua situação complicada e também pelo momento de crise”. Uma das alternativas em estudo para aumentar a escala da nova Casa & Video é a abertura de capital. “Mas ainda temos que chegar a um patamar mais apropriado para um IPO, o que pode ocorrer em três anos”, afirma Lorena. A empresa faturou cerca de R$ 1,2 bilhão e registrou Ebitda de R$ 40 milhões em 2010. A expectativa é fechar 2011 com R$ 1,5 bilhão e R$ 60 milhões nessas contas, respectivamente.

A antiga Casa & Video está em recuperação judicial. Ela ficou com o seu controlador e detém a operação nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, com os passivos fiscais. Inicialmente, tinha ficado também com a marca e recebia royalties da parte restaurada. Porém, após a emissão de debêntures, a nova companhia comprou a marca. (L.D.C.)


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.