É difícil determinar quando começou a ganhar corpo no Brasil a moderna discussão sobre governança corporativa. Mas uma boa tentativa é utilizar como marco a fundação do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em 1995. Nestes quase 10 anos, muita coisa mudou nas empresas brasileiras, algumas para melhor e outras para pior. Mas uma coisa não se pode negar: todas amadureceram.
Em nenhum lugar este processo é mais evidente do que nos conselhos de administração. As ficções carimbadoras da década de 70, que existiam simplesmente para atender à obrigatoriedade legal, estão progressivamente desaparecendo do cenário corporativo brasileiro, e dando lugar a um colegiado relevante, que participa de decisões fundamentais da companhia e, em última instância, a governa, por mandato conferido pelos acionistas.
Claramente, temos uma distância muito grande dos poderosos conselhos de administração anglo-saxônicos. Talvez nunca iremos alcançá-los, e, talvez, nem devamos tentar. O que se deve buscar no conselho de administração das empresas brasileiras é a aplicação das melhores práticas consagradas em mercados mais desenvolvidos, mas sem esquecer as peculiaridades de nossa tradição legal e da estrutura da propriedade das empresas brasileiras.
Dois destes aspectos são cruciais: a existência de acionistas controladores, e a demissibilidade ad nutum. A conjugação destas duas realidades coloca um desafio muito grande ao conceito de independência dos conselheiros, tão importante nos modernos conselhos de administração. Se a empresa tem dono, e o conselheiro pode ser demitido a qualquer momento, como se pode falar em independência?
Não é uma pergunta simples, mas as empresas brasileiras têm crescentemente dado uma resposta. No passado, conselheiro independente era sinônimo de convidar uma personalidade da sociedade, ou um membro do governo anterior, para emprestar credibilidade ao conselho. Hoje não mais.
A independência dos conselheiros vem ganhando espaço em duas frentes. Do lado das empresas e dos seus acionistas controladores, é cada vez mais clara a vantagem de contar com bons profissionais externos ao dia-a-dia e à história da empresa, para contribuir com uma visão estratégica em seu direcionamento. Também é evidente, sobretudo no caso de empresas familiares e estatais, que a presença de conselheiros independentes funciona, na realidade, como uma espécie de blindagem contra a falta de profissionalismo.
O papel psicológico da presença do conselheiro independente foi brilhantemente ilustrado pelo professor Randall Morck, da Universidade de Alberta, na última edição do Congresso do IBGC. Ele citou uma pesquisa do psicólogo Stanley Milgram em que uma pessoa era convidada a aplicar choques em outra. Os choques eram fictícios, e a vítima era um ator, mas o carrasco em potencial não sabia disso. Ordenado pelos organizadores, ele sistematicamente aplicava choques cada vez mais fortes na vítima, apesar de sua aparente agonia. De repente, um “observador” aparece na sala e se revela chocado com o que se passava. Como é que o convidado obedecia cegamente às ordens dos organizadores, mesmo sabendo do sofrimento físico da vítima? Invariavelmente, após a saída do observador, o convidado cessava os choques na vítima, revelando que as palavras do observador externo eram capazes de quebrar o círculo de obediência cega que leva as pessoas a tomar decisões equivocadas. Muitas vezes, o conselheiro independente faz exatamente este papel (dentre outros, é claro).
Do lado dos conselheiros, a independência também tem evoluído. Um número cada vez maior de profissionais com larga experiência profissional tem se dedicado a atender a esta demanda das empresas por conselheiros independentes. Além de sua bagagem, estes conselheiros estão investindo fortemente em treinamento, buscando aprender as questões específicas da atividade que eram lacunas em suas formações. Temos hoje conselheiros melhores e mais preparados que no passado. Conselheiros que estão dispostos a preservarem sua reputação de independência quando esta estiver ameaçada. É esta disposição que preserva a independência, e se contrapõe às peculiaridades da lei brasileira.
Mas não basta existirem os conselheiros independentes se o conselho, na prática, não funciona. Neste aspecto, as empresas brasileiras também têm evoluído. As reuniões estão se tornando mais formais e freqüentes, com um fluxo de informações que permite efetivamente ao conselheiro saber o que se passa na companhia, mas sem se meter no âmbito da diretoria (“nose in, fingers out”).
Para permitir uma maior produtividade de um colegiado que devota poucas horas por ano à companhia, as empresas também já perceberam que a instituição de comitês é fundamental. Empresas como Vale do Rio Doce, Petrobras, Natura e CCR já instituíram comitês em seus conselhos, notadamente de auditoria, governança corporativa, remuneração, riscos, dentre outros. Recente debate promovido pelo IBGC mostrou que os maiores bancos do Brasil – BB, Bradesco, Itaú e Unibanco – também estão bem adiantados na implantação dos comitês de seus conselhos, não apenas seguindo a regulamentação do Banco Central e da Lei Sarbanes- Oxley, mas indo muito além.
Estes exemplos mostram que a estruturação de comitês é uma tendência inexorável para as empresas que desejam ter conselhos de administração melhores.
TIRANDO A COLEIRA – Mas outros desafios permanecem. Mesmo os melhores conselhos precisam constantemente batalhar contra a idéia de “empresa de dono”. Somente o tempo irá demonstrar quais são as empresas nas quais a gestão é efetivamente separada da propriedade.
Muito pouco existe de concreto na lei sobre a responsabilização dos conselheiros por culpa, fraude, dolo ou conflito de interesses
Outro desafio importante é a recente alteração do Artigo 118 da lei societária brasileira. Este artigo permite que acordos de acionistas determinem como um conselheiro deve votar nas reuniões. Trata-se de uma excrescência do nosso legislativo e de um verdadeiro atentado à independência do conselheiro de administração. Os acordos de acionistas devem disciplinar o relacionamento entre acionistas – nunca envolvendo os conselheiros das empresas. Do contrário, o conselheiro se torna um verdadeiro “laranja”, um cachorrinho encoleirado pelo acionista que o elegeu (o que também macula o conceito legal de que o conselheiro tem um dever fiduciário com todos os acionistas, não apenas com aquele que o nomeou). Empresas, acionistas e conselheiros devem repugnar este dispositivo, até que uma nova reforma legal nos livre deste gigantesco passo na direção errada. Os dois primeiros, evitando acordos que utilizem o mecanismo citado. E os conselheiros, fazendo um favor à própria biografia, recusando- se a servir em conselhos nos quais sejam tutelados pelos acionistas que o elegeram.
IMPUNIDADE PERIGOSA – Por fim, um desafio adicional no Brasil é a criação de uma cultura de responsabilidade do conselho de administração. Muito embora a lei utilize pelo menos seis artigos (153 a 158) integralmente à responsabilidade dos administradores, muito pouco existe de concreto com relação à responsabilização de conselheiros por culpa, fraude, dolo, conflitos de interesses e outros erros. Com exceção dos bancos, para os quais a legislação específica encontra-se entre as mais estritas do mundo e na qual vemos uma sólida jurisprudência de punição (às vezes até excessiva), o regulador do mercado de capitais e o Poder Judiciário não têm tomado decisões no sentido de responsabilizar aqueles que teoricamente são os guardiões do capital do acionista.
Empresas que se contentarem com suas estruturas de governança ficarão seguramente defasadas
Em alguns casos recentes, conselheiros escaparam de punições em casos claros de negligência ou fraude alegando que sua posição no conselho era meramente honorífica, ou que atuavam como “consultores” da companhia. Ora, consultor é consultor, conselheiro é administrador! Enquanto conselheiros puderem esquivar-se da responsabilidade do cargo com alegações como esta, será difícil tornar sua função relevante. Apenas com o peso da responsabilidade pode-se esperar que os membros do conselho apliquem, como pede a lei, “o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”. Cabe, portanto, aos reguladores e julgadores criar a jurisprudência desta responsabilização.
Em suma, estamos avançando na direção correta, mas falta muito a ser feito. As empresas que se contentarem com suas estruturas atuais de governança corporativa ficarão seguramente defasadas em relação às melhores práticas. Neste processo, a evolução dos conselhos de administração e dos demais órgãos societários deve ser vista como um trabalho permanente, com o objetivo final de fortalecer e perpetuar nossas empresas.
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