A guerra continua
Proposta da BM&FBovespa de tornar o comitê de auditoria obrigatório para empresas do Novo Mercado ressuscita debate sobre o papel do conselho fiscal turbinado

, A guerra continua, Capital Aberto

Já se passaram seis anos desde que as companhias brasileiras com ações listadas nos Estados Unidos tiveram de decidir entre o comitê de auditoria e o chamado conselho fiscal “turbinado”, que acumula as funções do comitê. Apesar de todo esse tempo e de os conselhos turbinados terem atuado a contento, a discussão sobre qual desses dois órgãos adotar não só está longe do fim, como voltou a esquentar recentemente. Em 2004, o debate foi provocado pelo órgão regulador norte-americano, a Securities and Exchange Commission (SEC), que deu uma colher de chá para as empresas brasileiras com ações negociadas nos Estados Unidos ao permitir que elas adaptassem os seus conselhos fiscais para exercer o papel de comitê de auditoria — órgão que se tornou obrigatório por força da lei Sarbanes-Oxley (SOX). Agora, é a BM&FBovespa que joga lenha nessa fogueira. Na reforma dos regulamentos dos níveis diferenciados de governança corporativa, propõe a instalação obrigatória de um comitê de auditoria com ao menos três membros, sendo um deles independente.

, A guerra continua, Capital AbertoA ideia é a mais polêmica da reforma, cuja minuta está em fase de análise pelas companhias listadas no segmento (a chamada audiência restrita). O percentual de empresas do Novo Mercado com comitês de auditoria, presentes ou não em bolsas norte-americanas, era de 35% em 2009, de acordo com pesquisa feita pela consultoria KPMG. Isso indica que ainda há muito chão pela frente até a implementação dos comitês em todas as companhias. Até porque a proposta se estende aos níveis 1 e 2, em que apenas 33% das empresas constituíram o comitê, segundo o levantamento.

Outro ponto que exigirá adaptação, mesmo nas companhias que já possuem o comitê, é a presença de pelo menos um conselheiro independente no grupo. A aprovação da mudança está nas mãos das empresas listadas nos níveis diferenciados. Para que a proposta emplaque, ela não pode ser rejeitada por mais de um terço das companhias de cada segmento. A BM&FBovespa não se pronunciará sobre o assunto até a conclusão da reforma.

MUDANÇA CONTROVERSA — Tornar obrigatório o comitê não é simples. Trata-se, certamente, de um avanço na governança das empresas que não têm nem comitê nem conselho fiscal instalado, mas um inconveniente para aquelas que já têm o conselho turbinado e estão satisfeitas com a escolha. Seria a obrigatoriedade do comitê essencial? Ou significaria implementar uma mudança apenas para agradar aos teóricos da boa governança?

Se, em 2004, cerca de dois terços das emissoras de ADRs optaram pelo conselho turbinado, hoje essa é a realidade de apenas metade delas

Algumas companhias brasileiras com ações listadas no mercado norte-americano que optaram pelo conselho turbinado se dizem felizes com o resultado. “Nosso conselho fiscal funciona muito bem”, garante Luiz Carlos Aguiar, vice-presidente executivo financeiro e de relações com investidores (RI) da Embraer. A fabricante de aeronaves preferiu turbinar o conselho fiscal porque já considerava esse órgão atuante e efetivo e não enxergou a necessidade de instalar mais um comitê de apoio ao conselho de administração. O conselho fiscal reúne-se mensalmente e é composto de cinco membros independentes, de acordo com a definição do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC). O conselho de administração da empresa tem dois comitês — um de recursos humanos e outro estratégico. Um dos itens da pauta do board, que se reúne ordinariamente a cada três meses, é uma apresentação do conselho fiscal sobre questões relacionadas a risco.

Essa mesma estrutura é utilizada pela NET. Lá, o conselho fiscal turbinado também tem reuniões mensais e seus membros participam nas reuniões trimestrais do conselho de administração. No board, existem os comitês financeiro e de remuneração. São três os conselheiros fiscais, sendo um eleito pelos minoritários em assembleia e os demais contratados por uma firma de recrutamento de executivos, conforme os perfis e as experiências requeridos. Para João Elek, diretor de RI da companhia, o conselho fiscal tem a vantagem de ser independente da administração. “Instalar um comitê de auditoria neste momento seria andar para trás”, acredita ele. Se a mudança for aprovada, a NET a implementará, mas tentará preservar os ganhos trazidos pelo conselho turbinado.

Opinião semelhante tem Gisélia Silva, gerente da assessoria do conselho de administração da CPFL, outra companhia que optou por turbinar o conselho fiscal. “Não teríamos por que mudar. Seria como trocar seis por meia dúzia”, compara. O conselho fiscal da CPFL é formado por cinco conselheiros, indicados pelos acionistas VBC Energia, Previ e Bonair. Gisélia conta que, no início, a atuação do conselho fiscal com atribuições de comitê de auditoria foi um tanto confusa. Havia dúvida sobre quais seriam suas atribuições. A solução veio por meio da contratação de uma consultoria e da redação do regimento do conselho fiscal, no qual foram especificadas suas funções. Decorrido o período de aprendizado, tudo passou a funcionar bem, segundo Gisélia.

PEDRA NO SAPATO — Para algumas companhias, abrir mão do conselho fiscal turbinado significa, além de abandonar um modelo que há anos rende frutos, encarar um problema: a dificuldade em montar um comitê de auditoria com membros independentes. Inserir apenas um independente no comitê, como permite a proposta da Bolsa, pode não ser tão difícil. Mas imagine criar um grupo com três conselheiros independentes, dos quais pelo menos um seja especialista em finanças, como mandam as regras nos Estados Unidos. No Brasil, o número de profissionais sem vínculos nos boards ainda é baixo. “Nada garante que a SEC vá aceitar um comitê de auditoria que tenha só um conselheiro independente”, diz Taiki Hirashima, sócio-fundador da consultoria Hirashima & Associados e integrante do conselho fiscal da Embraer. Esse impasse poderia levar a uma situação bizarra: a coexistência de um conselho fiscal adaptado à SOX e de um comitê criado para cumprir as normas da BM&FBovespa. Qual dos dois grupos, de fato, exerceria o papel de comitê de auditoria?

Aguiar, da Embraer, lembra que essa questão poderia ser resolvida tal como fez a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), quando solicitou à SEC que aceitasse o conselho fiscal turbinado para fins de SOX. A autoridade brasileira poderia tentar convencer a norte-americana a aprovar o comitê de auditoria com apenas um independente. Mas ainda é cedo para saber como seria feito o ajuste, até porque o comitê de auditoria planejado pela BM&FBovespa pode, no fim das contas, nem sair do papel. Ou a Bolsa pode acatar o conselho fiscal turbinado como substituto do comite, acomodando os interesses divergentes.

A experiência adquirida ao longo dos últimos anos colocou as companhias brasileiras e o mercado de capitais em um patamar mais elevado. Quando a questão do comitê de auditoria versus conselho fiscal turbinado surgiu, a principal preocupação das empresas era capacitar pessoas para atuarem nos comitês. “Naquela época, se o comitê fosse obrigatório, não haveria profissionais preparados em quantidade suficiente. Hoje, já há bastante gente preparada”, reconhece André Coutinho, presidente do Instituto dos Auditores Internos do Brasil (Audibra). O terreno está, portanto, mais fértil para que a semente do comitê germine. “Acredito que não haverá resistência da parte das empresas para aprovar a obrigatoriedade dos comitês. Isso deve passar, pois é o mais recomendável em termos de boa governança”, assegura Hirashima.

NOVOS RUMOS — De fato, a balança vem pendendo para os comitês. Quando consideradas todas as empresas brasileiras que possuem American depositary receitps (ADRs) negociados nos Estados Unidos, nota-se uma adesão maior ao comitê. Se, em 2004, cerca de dois terços dessas companhias optaram pelo conselho turbinado, hoje essa é a realidade de metade delas, segundo a pesquisa da KPMG. Os dados podem sugerir que ocorreu uma migração do conselho fiscal para o comitê. Mas, na verdade, as empresas que chegaram há menos tempo ao mercado já se listaram com um comitê de auditoria, explica Sidney Ito, responsável pela área de compliance e risco da KPMG.
Logo depois de regulamentada a Sarbanes-Oxley, a primeira reação das empresas que tinham de escolher entre conselho turbinado e comitê foi optar pelo primeiro. Sairia mais barato adaptar o conselho fiscal já existente do que montar um comitê de auditoria.
Mas esse entendimento vem mudando. “Começa a haver um equilíbrio entre as empresas com comitê de auditoria e conselho fiscal. Cresce a consciência de que são órgãos com diferentes responsabilidades”, observa Ito.

A maior adesão aos comitês é resultado das constantes críticas aos conselhos turbinados. “O comitê de auditoria e o conselho fiscal são órgãos com funções diferentes. No mundo inteiro, se fala do comitê de auditoria. Estamos fora dos padrões”, defende Alexandre di Miceli da Silveira, professor doutor da FEA-USP. Sua opinião é endossada por outros especialistas em governança corporativa, para os quais a invenção do conselho turbinado foi uma forma de adaptação patrocinada por empresas que não queriam aumentar o número de conselheiros independentes (a Sarbanes-Oxley exigiu que os comitês de auditoria fossem constituídos por ao menos três profissionais, todos independentes). “Não sou contra o conselho fiscal, mas sou a favor do comitê de auditoria. O conselho fiscal turbinado não resolve o principal problema, que é dar maior independência ao conselho de administração”, considera o professor. O IBGC também salienta a diferença entre os dois órgãos: “Entendemos que o conselho fiscal é um órgão importante, mas não substitui o comitê de auditoria”, afirma Heloísa Bedicks, superintendente do instituto.

As críticas disparadas contra a atuação do conselho fiscal referem-se, principalmente, ao seu papel e seu alcance. O comitê de auditoria, tais como os comitês de remuneração, estratégia e tantos outros, serve para dar suporte à atuação do conselho de administração. Seus membros têm poder para corrigir, deliberar e mudar, atuando muito próximos da gestão da empresa. O conselho fiscal, ao contrário, é um órgão que checa ações passadas. Ou seja, não tem poder de decisão e nem de fazer correções de rumo — ao menos em sua versão original, como um conselho fiscal puro, sem as atribuições do comitê de auditoria. Assim, enquanto o conselho fiscal é um órgão de fiscalização do conselho de administração e da diretoria, representante dos acionistas, o comitê de auditoria existe para dar suporte ao conselho de administração nas atividades de compliance. Dessa perspectiva, o conselho fiscal turbinado seria um órgão em contradição. Ao mesmo tempo em que deve fiscalizar o conselho de administração, também tem a obrigação de lhe dar suporte e, por meio das atribuições do comitê de auditoria, identificar, monitorar e mitigar riscos.

“O conselho fiscal turbinado confunde o papel de fiscalização com o de administração”, constata Roberto Lamb, professor da escola de administração da UFRGS. “Não há dois chapéus. Quando o conselho fiscal se envolve nos processos de gestão, perde a independência e se desvia de sua função, prevista na legislação brasileira. Seu papel é o de fiscalizar”, ressalta. Além disso, a prestação de contas se situa em uma zona cinzenta. Enquanto o comitê tem de se reportar ao conselho de administração, o conselho fiscal deve explicações aos acionistas.

É provável que as companhias dos níveis diferenciados da BM&FBovespa que estão satisfeitas com seus conselhos turbinados rejeitem a mudança, já que teriam de migrar para o comitê. Mas, à medida que o mercado evolui em direção aos comitês de auditoria, não passarão elas a ser pontos fora da curva? Não estariam remando contra a maré, adiando algo que um dia terão de mudar? A decisão final sobre a reforma no regulamento do segmento máximo de governança da BM&FBovespa será uma sinalização desse futuro.


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