A conta é do mercado
Enquanto paira no ar a suspeita de que empresas despreparadas chegam à bolsa, propomos uma pausa para a pergunta: não caberia aos bancos coordenadores selecionar mais?

No mercado de capitais brasileiro, como em qualquer outro, existe a desconfiança de que nem todas as empresas dispostas a fazer uma oferta pública inicial desembarcam na bolsa devidamente preparadas para dar conta do recado. Assim, o bom e velho conselho de que todo cuidado é pouco faz sentido na hora de apostar numa companhia novata no pregão. Ler o prospecto com atenção — infelizmente, algo que poucos fazem — deve ser uma preocupação de todos os investidores, principalmente dos menos experientes. Mas aí vem a questão: se as ações de algumas empresas registrarem desempenhos sistematicamente ruins e ficar claro que isso ocorreu porque, na verdade, elas não estavam maduras para abrir o capital, alguém poderá ser responsabilizado por isso? Em outras palavras, além do compromisso de tornar públicas todas as informações exigidas pelo regulador na oferta pública e de assegurar a sua veracidade, o investidor pode exigir algo mais dos bancos coordenadores dessas operações? É certo esperar deles o empenho em selecionar companhias transparentes, de qualidade e em condições de executar os planos de crescimento apresentados?

Perguntas como essas se tornam ainda mais freqüentes quando o noticiário joga uma dose extra de pimenta na discussão. Foi o que ocorreu em novembro do ano passado, quando o jornal Valor Econômico revelou a existência de um sócio oculto como acionista majoritário da Brasil Ecodiesel. Meses antes, a Brasil em Movimento, fabricante das motos Sundown, tinha visto seu nome envolvido numa denúncia que praticamente lhe custou o adiamento dos planos para abrir o capital: pessoas ligadas ao acionista majoritário eram investigadas pela Polícia Federal sob suspeita de sonegação fiscal. Uma história semelhante ocorreu com a Atmosfera, que, em abril, desistiu da oferta pública inicial (IPO) em meio a uma fraca demanda do papel, motivada, provavelmente, pelo fato de o principal executivo da empresa ser réu num processo penal sobre a quebra do Banco de Financiamento Internacional S/A, em 1996. E por que não citar o caso da InPar, que enfrentou graves dificuldades financeiras nos últimos anos e só conseguiu se aprontar para a bolsa graças a empréstimos, concedidos pela instituição coordenadora do IPO, que lhe permitiram comprar terrenos novos e mostrar um futuro mais convincente para os investidores?

Não se está falando aqui que essas informações foram escondidas dos investidores. Ao contrário, tudo foi exposto nos respectivos prospectos, preliminares ou não, dessas companhias. Tampouco os fatos relatados significam necessariamente o despreparo da empresa para se lançar à bolsa. Esses episódios servem apenas para enfatizar o quanto notícias como essas amplificam a sensação de que algum IPO pode fracassar no longo prazo — não por uma razão conjuntural (como uma crise na economia ou no seu setor de atuação), mas por falta de preparo dos administradores. Pode ser que Brasil Ecodiesel, Atmosfera, Brasil em Movimento e InPar — as três últimas, quando virem à bolsa — revelem-se grandes negócios e tenham excelente performance. Contudo, esses fatos abastecem a reflexão sobre até onde vai a responsabilidade dos bancos quando deixam passar determinadas situações de risco por desconsiderar que ele não é suficientemente grande a ponto de levá-los a desistir da operação. Será que basta deixar tudo bem claro na seção fatores de risco do prospecto?

DISCURSO AFINADO — Os executivos à frente dessas operações entrevistados pela Capital Aberto deixaram claro que seu compromisso vai além da transparência e da veracidade das informações. “Quando um banco traz uma companhia ao mercado, estabelece uma sociedade moral entre essas duas partes. Por isso, é preciso assegurar que ela está preparada, do ponto de vista estrutural e filosófico, para atuar com o capital aberto, e de que o desejo do empresário é algo consistente, e não uma atitude oportunista”, afirma José Olympio Pereira, que lidera todas as ofertas públicas coordenadas pelo Credit Suisse.

O diretor-executivo do Banco Espírito Santo (BES), Alberto Kiraly, explica que essa certificação por parte das instituições intermediárias é alcançada depois de uma profunda investigação sobre o negócio. “Ninguém vende uma coisa sem conhecê-la exatamente, em todos os seus aspectos.” A análise, segundo ele, passa não só pelo porte da empresa, mas também pelo compromisso com as boas práticas de governança, chegando até o perfil psicológico dos administradores. “Isso não é um diferencial, é uma obrigação”, afirma. Kiraly lembra que, se o percentual ganho nas ofertas públicas tem se tornado uma importante fonte de renda para os bancos, essas instituições também sobrevivem da credibilidade que conquistaram perante seus clientes investidores. “Temos de atender bem esses dois públicos. Se um negócio ruim é lançado ao mercado, no próximo IPO, ninguém vai querer saber da empresa que você está vendendo.”

Quando o banco de investimento traz uma companhia ao mercado, estabelece uma sociedade moral entre essas duas partes

Preservar a credibilidade, aliás, é um dos principais argumentos dos bancos ao se defender de eventuais suspeitas quanto à qualidade das companhias que auxiliam a abrir o capital. “Ninguém quer ver seu nome envolvido numa história de insucesso”, afirma o diretor de mercado de capitais e investimento do Banco do Brasil, Francisco Cláudio Duda. Em sua avaliação, embora todo mundo se lembre da transparência como pré-requisito para a relação entre o administrador e o investidor, essa condição também é imprescindível na parceria entre o banco e a empresa.

Os bancos de investimentos estimam que, para cada três companhias que chegam à Bovespa, existem outras sete que tiveram seus processos interrompidos, ou mesmo abandonados, porque não estavam prontas, na opinião dos coordenadores. Kiraly afirma que já deparou com uma empresa que tinha completado, sob o ponto de vista legal e contábil, todo o check list para a abertura do capital, mas sua ida à bolsa foi desaconselhada, pois ainda faltava aos administradores a cultura para conviver com novos acionistas. “O próprio gestor reconheceu que ainda não era o momento, porque, além de ser muito centralizador, achou que poderia profissionalizar mais sua equipe antes de ir a mercado.” Francisco Duda, do Banco do Brasil, explica que a filtragem dos coordenadores ocorre na fase conhecida como due diligence, isto é, no momento em que apuram os fatores de risco relevantes do negócio. “O processo de seleção natural do mercado começa ali”, afirma.

Mesmo com todo esse cuidado defendido, inclusive, pelos próprios executivos dos bancos, algo pode dar errado. E se ficar provado que o banco não avaliou o “perfil psicológico” do controlador como deveria, e a companhia frustrar enormemente as expectativas dos investidores? Alguém vai ajudar a pagar essa conta?

Vamos ao que dizem a legislação e a regulamentação. Segundo os artigos 82 e 84 da Lei das S.As, a instituição financeira intermediária assume, ao lado da companhia, a missão de preparar o prospecto, a fim de “apresentar, com precisão e clareza, os motivos que justifiquem a expectativa de bom êxito do empreendimento”. Já a Instrução 400, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), atribui aos bancos a obrigação de “tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões de diligência, respondendo pela omissão (…), e assegurando que as informações prestadas pelo ofertante são verdadeiras, consistentes, corretas e suficientes”. Isso bastaria, portanto, em termos legais, para o investidor decidir sobre a compra ou não do ativo.

Para o advogado Pedro Lanna Ribeiro, sócio do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão, é difícil atribuir a culpa a um banco quando a companhia tem um desempenho ruim no mercado. E a primeira dificuldade estaria, justamente, em apontar as razões desse fracasso. “Como avaliar até que ponto um determinado resultado não foi alcançado por incompetência dos gestores ou por um fator inesperado, como queda na demanda, aumento da tributação ou variação do dólar?”, questiona. Nessas situações, o emissor e a instituição só poderão ser acusados de negligentes caso tenham omitido esses riscos no prospecto. Segundo Ribeiro, mesmo num eventual descumprimento de um princípio de boa governança ou de exigências legais — se, por exemplo, a companhia se negar a fazer reuniões com investidores ou deixar de arquivar seus balanços na CVM no prazo estabelecido —, não há como responsabilizar o banco. “Ainda assim, acho difícil isso acontecer. Uma instituição financeira jamais iria querer ver sua imagem atrelada a um gestor com esse comportamento.”

Sobre esse aspecto, os banqueiros são unânimes ao defender que a expressão “fracasso do IPO” precisa ser empregada com cautela. Isso porque um dos termômetros comumente usados para dizer que um negócio não deu certo é a cotação da empresa no mercado. “O sucesso de uma oferta não se mede no preço que a ação atingiu na semana seguinte”, defende José Olympio. “A Localiza, por exemplo, ficou dois meses com seu papel avaliado abaixo do preço inicial da emissão e, hoje, vale cinco vezes mais do que naquela época.”

Kiraly, do Banco Espírito Santo, resume essa polêmica na famosa lei da oferta e da procura. “Não existe caro ou barato. Se há uma enorme demanda pelo papel no momento do IPO, o banco vai fazer seu trabalho de maximizar o valor para o acionista estabelecendo um preço de acordo com a disposição do investidor para aceitá-lo. Mas, se lá na frente o mercado mudar sua percepção sobre a empresa — e isso pode acontecer por inúmeros fatores —, é claro que haverá um ajuste”, acrescenta.

Não é papel do intermediário escrever ‘eu colocaria meu dinheiro nessa empresa’. Se o mercado achar que falta preparo do gestor, manda seu recado pelo preço da ação

Quem compartilha essa tese é o advogado Sérgio Spinelli, sócio do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga. Em sua avaliação, o fato de, recentemente, algumas ações terem sido depreciadas semanas após o IPO pode significar apenas que o investidor usou o que ele chama de “freio de arrumação” — algo bastante salutar para o mercado. “Isso é conversa entre comprador e vendedor”, diz. Exímio defensor de que as companhias que aterrissam na bolsa estão com a lição de casa feita, Spinelli também gosta de repetir que não há ganho de curto prazo que compense um risco de perda de credibilidade para uma instituição financeira.

Apesar de esse ganho não ser pouca coisa — afinal, um banco recebe cerca de 5% do valor da oferta numa operação de IPO —, o advogado acredita no alto nível de transparência e qualidade dos departamentos de Relações com Investidores (RI) que as novatas vêm apresentando ao mercado. “Não comungo com o ceticismo de quem questiona a capacidade dos bancos ao preparar a empresa para essa missão.”

RECADO VAI NO PREÇO — Nos mercados internacionais, a responsabilidade do coordenador líder numa oferta também se limita à confecção de um prospecto que traga informações da forma mais clara e fidedigna possível à realidade do negócio. Donald Baker, sócio do escritório norteamericano White & Case LLP, diz que o melhor juiz para condenar o eventual despreparo de uma companhia é o investidor. “Não é papel do intermediário escrever ‘eu colocaria meu dinheiro nessa empresa’. Nosso trabalho é disponibilizar a informação corretamente. Se o mercado achar que falta preparo do gestor, manda seu recado pelo preço da ação.”

E o que pensa a CVM sobre o tema? Para o seu superintendente de registro, Carlos Alberto Rebello Sobrinho, quem deve responder pelo fracasso, caso fique constatado o despreparo para o IPO, é a companhia. “O prospecto é uma avaliação da empresa, segundo ela mesma. Dado que a capacidade da ofertante para esconder uma informação da instituição coordenadora é grande, nem sempre todos os riscos estarão apresentados”, avalia.

Segundo Rebello, cabe aos bancos, em sua missão de preservar a transparência do negócio, entender exatamente quais pontos do prospecto carecem de uma redação minuciosa ou colocada com maior ênfase. Por essa razão, de uns tempos para cá, a CVM passou a exigir mais detalhes sobre temas considerados polêmicos. Um exemplo é a remuneração dos executivos, que inclui os ganhos indiretos, a gratificação com ações da empresa e o condicionamento dessas receitas extras às suas respectivas metas. Também merecem destaque nos prospectos, de acordo com o superintendente, eventuais empréstimos dos bancos concedidos às companhias para as quais atuam como coordenadores, informações sobre a idoneidade dos principais executivos da empresa, além de um alerta, na seção dos fatores de risco, caso o acionista majoritário esteja oculto.

E então, voltemos à pergunta inicial: só a transparência basta? Conforme a lei e a regulamentação, sim, desde que todas as informações exigidas estejam no prospecto. Mas basta para a relação entre os bancos coordenadores e seus clientes? Bom, aí a conversa pode mudar de tom — e levar horas. “Essa é uma questão profunda e filosófica”, responde Rebello. De resto, num mercado eficiente, presume-se que os investidores darão conta de fazer os devidos ajustes, pelo menos no que se refere a preço.

Bovespa Mais terá comissão avaliadora

Quando a conversa é sobre as responsabilidades de cada um nos processos de oferta pública, não dá para deixar de lado a pergunta: e a Bolsa? Ela não poderia dar uma mãozinha para barrar uma listagem quando desconfiar de que o empresário não está devidamente preparado para ir ao mercado?

Para os banqueiros, a resposta é não. Não caberia à Bovespa esse tipo de avaliação qualitativa sobre as candidatas que querem ser empresas abertas. “Ela precisa se preocupar com a suficiência e o conteúdo das informações prestadas”, aponta José Olympio Pereira, do Credit Suisse. “Não é sua tarefa opinar se o negócio é muito ou pouco arriscado, caro ou barato, ou se os gestores estão, de fato, preparados.” Alberto Kiraly, do Banco Espírito Santo, também acredita que a missão da Bovespa é menos subjetiva. Para ele, a Bolsa deve se concentrar na checagem dos critérios legais e societários. “É preciso lembrar que os bancos, escritórios de advocacia e demais consultores conviveram muito tempo com os responsáveis pela empresa. Por isso, eles têm mais capacidade para fazer essa filtragem, quando necessário”, diz.

Para o superintendente executivo de relações com empresas da Bovespa, João Batista Fraga, a Bolsa só pode fiscalizar e exigir a obediência das regras que foram estabelecidas por ela própria. “O Novo Mercado não é um hedge de ganho”, enfatiza. “As companhias apresentam planos que podem ou não dar certo. O que procuramos assegurar é a transparência das informações para que os investidores tomem sua decisão”, conclui.

Ainda assim, em janeiro do ano passado, a Bovespa anunciou a criação de uma Comissão de Listagem para analisar mais de perto os aspectos gerais das companhias que queiram ingressar no mercado. Contudo, esse olhar crítico vai recair apenas sobre as candidatas à listagem no Bovespa Mais — o segmento criado para incentivar as pequenas e médias empresas à abertura de capital — ou sobre as companhias dispostas a fazer ofertas iniciais inferiores a R$ 150 milhões. Na lista de tarefas da comissão estão a identificação dos acionistas com mais de 5% do capital, a avaliação da experiência profissional dos administradores e a conferência das explicações sobre os objetivos da emissão, entre outras. Caso algum problema seja identificado, a Bolsa pode pedir esclarecimentos e adiar a operação até que todas as exigências sejam cumpridas. Ou, se considerar que a listagem não é adequada, emitirá um parecer a respeito — que será analisado, também, pela CVM. Como até agora ninguém inaugurou o Bovespa Mais, nem houve um IPO inferior a R$ 150 milhões, a nova comissão aguarda sua vez de entrar em cena. (A.S.S.)


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