Facebook e governo brasileiro viram alvo ao ignorarem princípios ESG
Discursos de ódio e desmatamento da Amazônia impulsionam atitudes políticas de empresas
Facebook e governo brasileiro viram alvo ao ignorarem princípios ESG

Imagem: makyzz | Freepik

Em 2014, o jornalista e blogueiro iraniano Hossein Derakhshan deixou a prisão no seu país natal depois de ter ficado encarcerado por seis anos, condenado por suas atividades na internet. Muita coisa surpreendente aconteceu no mundo nesse meio-tempo, como o fato de o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ter reconhecido o direito do Irã de trabalhar com a tecnologia nuclear para fins pacíficos — um avanço digno de nota para as relações de dois países que sempre se estranharam. Mas não foi esse tipo de novidade que estarreceu Derakhshan. O que o deixou atordoado foi o grau de poder que o Facebook alcançou, tendo se transformado numa verdadeira ameaça às sociedades democráticas. 

Quando o jornalista foi detido, em 2008, a rede de Mark Zuckerberg mal passava de uma diversão para jovens internautas, de um canal de comunicação aparentemente inofensivo. Pois logo depois de ser libertado Derakhshan notou que em poucos anos o Facebook assassinou a natureza diversa da internet, instrumento que proporcionaria à humanidade um grau inédito — e majoritariamente benéfico — de conexão. Em 2014, quase ninguém mais digitava o endereço de um site no navegador; um percentual espantoso de conteúdos só poderia ser acessado com o filtro dos enigmáticos algoritmos do Facebook (e, posteriormente, das empresas que foi fagocitando pelo caminho, como o Instagram). Um autor de blog ou uma empresa que não abrisse um perfil na rede social estaria automaticamente fora do jogo. O que era totalmente descentralizado (a world wide web, como o nome sugere) ficou apinhado sob o comando do Facebook. 

O iraniano e seus pares ativistas certamente militaram em defesa da diversidade, mas foram obrigados a testemunhar a expansão do império de Zuckerberg, que agregou um volume tão grande de publicidade oferecendo ferramentas de direcionamento ao público-alvo que passou a representar uma séria ameaça à imprensa tradicional. Ocorre que a rede social sempre adotou obscuras premissas para determinar o que seria adequado ou não veicular nas páginas (há quem credite parte do triunfo de Donald Trump em 2016 à frouxidão do Facebook na identificação e supressão de fake news), algo que neste surreal 2020 serve de munição para uma vigorosa reação. A estratégia do Facebook permitiu a disseminação de discursos de ódio, que são amplamente rechaçados nesses tempos de pandemia e #BlackLivesMatter. 

Como todo grande império, o Facebook parece começar a enfrentar as invasões bárbaras. Diante do desconforto social cada vez maior em torno de questões de desigualdade econômica, misoginia e racismo, empresas globais de alto cacife, ao lado de companhias de menor porte, resolveram se mexer. Centenas delas se engajaram no movimento #StopHateForProfit, que apregoa o boicote de publicidade no Facebook. Nomes de peso como Unilever, Ford, Adidas, Colgate-Palmolive, Pfizer e Ben&Jerry’s, só para citar alguns, anunciaram que deixariam de publicar anúncios na rede social. Zuckerberg tenta reagir com ações para aprimoramento dos filtros de detecção de conteúdos inapropriados — como mostram os recentes bloqueios de pelo menos 70 perfis de assessores ligados ao clã Bolsonaro no Brasil —, mas não parece suficiente. Do alto do seu sucesso, o Facebook acabou por representar a antítese do que prega o “S” da sigla “ESG”, ou seja, plena irresponsabilidade social. Segundo disse na semana passada ao Financial Times Arthur Sadoun, presidente do Publicis, um dos maiores grupos de publicidade do mundo, tudo indica que o movimento dos anunciantes vai continuar. 

O boicote à publicidade no Facebook, no entanto, representa apenas a ponta do iceberg da nova postura que as empresas mundo afora precisam adotar no tal “capitalismo de stakeholder”— ou por genuína convicção ou até por cinismo, hipótese que pode ser bastante arriscada diante da facilidade de viralização de ações impróprias. Como sugere um artigo publicado na Harvard Business Review, as empresas precisam ir além da responsabilidade social corporativa, alinhando-se à “corporate social justice”. Trata-se de atenção especial a grupos que estão em desvantagem social, como os negros e a comunidade LGBTQIA+, com efetivo aprimoramento de práticas e cuidado para evitar derrapagens. Uma delas teve como protagonista a AT&T, que depois de se posicionar bem num ranking de equidade foi identificada como doadora de campanhas de políticos com discursos homofóbicos. 

A situação para as empresas é de fato delicada. O que os stakeholders hoje esperam inclui autenticidade de ações — as empresas precisam assumir um lado, mesmo que corram o risco de perder clientes na ponta oposta. O artigo cita o hipotético caso de uma empresa que, ao aderir à campanha contra o racismo, pode perder clientes entre grupos de supremacistas brancos. Como lembrou o articulista Spencer Bokat-Lindell em artigo para o jornal The New York Times, a assunção de papéis políticos pelas empresas não é nova: aconteceu também no período pós-Depressão dos anos 1930, quando delas se cobrava uma postura que aliasse lucros com dedicação às fragilizadas comunidades de seu entorno. Esse discurso foi rasgado na era Milton Friedman do lucro acima de tudo, a partir da década de 1960, mas a fermentação de um novo período de crise aguda global provoca mais uma reviravolta. 

Isso não significa que as empresas tenham deixado de lado a preocupação com seus caixas: elas também se movimentam para salvar os próprios bolsos, numa confirmação prática da máxima “when money talksbullshit walks” (ou, numa bem-humorada tradução, “quando o dinheiro fala, a baboseira rala”). Neste mês de julho, dezenas de grandes empresas (notadamente processadoras de proteína animal, sempre cientes das exigências de seus compradores externos) se juntaram para pressionar o governo brasileiro a endurecer as políticas relacionadas à preservação da Amazônia. Adotaram essa postura não por serem abraçadoras de árvores, mas por saberem que seus clientes no exterior têm parâmetros que os impedem de comprar de fornecedores ambientalmente incorretos e que a cada dia mais os donos da liquidez no mercado internacional só põem dinheiro onde enxergam o selo ESG. Sem ações concretas das autoridades, as companhias brasileiras podem, no limite, a médio e longo prazos, se transformar em párias. E obviamente não querem isso.  

As atitudes políticas das companhias, portanto, representam uma defesa de seus próprios interesses. Elas sabem que boleto pode demorar, mas uma hora ele inevitavelmente chega — e com correção. 


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