Paraíso da vez
Bermudas atraem companhias que querem escapar de tributação e abrir o capital nas grandes bolsas internacionais

ed48_28-31Um dos pontos mais isolados do planeta é um ícone dos mercados globais. Localizada a 917 quilômetros da norte-americana Carolina do Norte, no meio do Atlântico, uma colônia britânica formada por 150 ilhas funciona como espécie de escala para as principais bolsas do mundo. Companhias costumam se instalar por lá tendo como destino final a oferta pública inicial de ações (IPO) em Nova York, Londres, Luxemburgo ou até Kuala Lumpur. Estamos falando das Bermudas, que, embora sejam velhas conhecidas do jet set financeiro, só nos últimos anos entraram no mapa do empresariado brasileiro.Algumas das ofertas recentes de Brazilian Depositary Receipts (BDRs) na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) reforçam a idéia de que as ilhas estão cada vez mais próximas do País. Ilustram esse cenário as distribuições de Dufry South America, Wilson, Sons, GP Investimentos e Tarpon. Todas elas venderam ações na Bolsa de Valores de Luxemburgo, concomitantemente à operação brasileira, e criaram sedes nas Bermudas. Em breve, deve se juntar ao time outra administradora de recursos, a Claritas, cuja oferta permanece sob análise na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Também tem laços com Bermudas a polêmica abertura de capital da holding Cosan Limited, que será sediada no paraíso fiscal.

As brasileiras são apenas uma pequena amostra do pelotão de companhias abertas que vêm fincando suas bases nas ilhas. Em setembro de 2006, 660 delas eram listadas em bolsas mundo afora, conforme dados do escritório de advocacia Conyers Dill & Pearman, da capital Hamilton. A maioria das empresas que lá aportam, se não abrem o capital logo em seguida, tem o IPO nos planos. Em janeiro de 2007, as bermudenses respondiam por 55% das mais de 800 companhias negociadas na Bolsa de Valores de Hong Kong. Tamanha participação é fruto das históricas relações com o arquipélago chinês, que já foi uma colônia britânica como as Bermudas. A pujança do mercado local impressiona, principalmente se for comparada às dimensões do território, com uma área de 53,3 quilômetros quadrados — quase 5 mil vezes menor que o estado de São Paulo — e 65 mil habitantes. Segundo relatório do Conyers, cerca de 70% das empresas do ranking Fortune 100 têm um pé nas ilhas. O número de estrangeiras, as chamadas exempted companies, não pára de crescer. Em março de 2007, 303 atracaram na colônia, pelas estatísticas do departamento de registro de companhias do Ministério das Finanças das Bermudas, compondo um total de 13.091 empresas — um aumento de 2,36 % em relação ao mesmo mês do ano anterior. Em 2000, eram cerca de 11 mil.

Para atender esse público, as Bermudas contam com boa infra-estrutura, o que inclui serviços de telecomunicações desenvolvidos, presença local das principais firmas de contabilidade e profissionais com experiência em mercados externos. Uma hora e meia de vôo separa o arquipélago de outra ilha abastada, a de Manhattan. Mas o que faz das Bermudas a terra prometida dos empresários, claro, é o regime de tributação zero. Em solo bermudense, não há imposto retido na fonte, nem taxação sobre receitas, lucros ou ganhos de capital. As companhias têm plena liberdade para transferir recursos a outros países e pagar dividendos a acionistas não-residentes, sem arcar com custos extras. “Não é coincidência que boa parte das empresas seja formada por fundos de investimento que têm como alvo investidores estrangeiros”, afirma o advogado Andrew Béla Jánszky, sócio do escritório Shearman & Sterling, em São Paulo.

PARAÍSO LEGAL — Mas essa característica, em si, é insuficiente para justificar o lugar de destaque ocupado hoje pelas Bermudas. Ali mesmo, ao lado das Bermudas, as ilhas Cayman e as Bahamas seriam fortes concorrentes. No imaginário popular, esses locais são verdadeiros parques de diversões para um certo perfil de investidor, aquele que tem motivos de sobra para manter sua poupança longe do Fisco brasileiro. E é aí que Bermudas se difere, pois perdeu o ranço de ser um mero paraíso fiscal. “A jurisdição é bem regulada, séria, com boa imagem e aceitação no mercado internacional”, diz Gregory Harrington, sócio do escritório Arnold & Porter, em Nova York.

Analistas consideram a hipótese de que, para fugir do Novo Mercado e da Lei das S.As, novas companhias corram para as ilhas

De fato, as autoridades bermudenses souberam cuidar da imagem do balneário. Proíbem, por exemplo, a atividade dos cassinos, bastante característicos da paisagem das Ilhas Virgens Britânicas e das Bahamas. O órgão regulador, a Bermuda Monetary Authority (BMA), é signatário dos acordos multilaterais da Organização Internacional das Comissões de Valores Mobiliários (Iosco) e tem poderes para quebrar sigilos bancários quando precisa — algo impensável em outros paraísos fiscais e até mesmo no Brasil. Aqui, a CVM necessita de autorização da Justiça para escarafunchar contas suspeitas. “Nesse ponto, as Bermudas estão num estágio de legislação mais avançado do que o nosso”, diz o gerente de relações internacionais da autarquia, Alexandre Diniz. Além disso, o território tem uma política consistente contra lavagem de dinheiro. Num relatório de 2003, o Fundo Monetário Internacional (FMI) reconheceu a qualidade do ambiente de regulação dos setores bancário, de seguros e de investimentos das Bermudas.

Essas áreas são estratégicas para a economia local. A indústria de seguros e resseguros das Bermudas é a maior do mundo. As 1.276 companhias do setor mantinham recursos da ordem de 204 bilhões de dólares bermudenses (pareados com o dólar norte-americano) em dezembro de 2002, segundo a Caribbean Financial Action Task Force, organização que reúne 30 estados do Caribe no combate a esquemas de lavagem de dinheiro. Os bancos e as companhias de depósito detinham mais de US$ 19 bilhões em 2003. No mesmo ano, fundos no valor de US$ 88,2 bilhões eram geridos por assets baseadas nas Bermudas.

Como a concentração das empresas na região é enorme, criou-se também uma jurisprudência, segundo Jánszky. A própria legislação bermudense — similar à britânica, já que a chefe de Estado do arquipélago também é a Rainha Elizabeth II — pode ser classificada como estimulante para investimentos estrangeiros. “O corpo de leis é bem conhecido. Não é um faroeste”, destaca o advogado. Para Gregory Harrington, as Bermudas apresentam vantagens semelhantes a Delaware, estado norte-americano famoso pelos privilégios fiscais concedidos às firmas e pela legislação flexível. “Como em Delaware, as empresas das Bermudas têm flexibilidade para moldar seus estatutos da forma que acharem conveniente.”

Pela legislação corporativa vigente na colônia — o Bermuda Companies Act, de 1981 —, a criatividade é o limite na elaboração dos estatutos. “A lei de Bermudas aceita qualquer coisa”, diz o advogado José Diaz, sócio da área de mercado de capitais do Demarest & Almeida Advogados. Ao contrário da Lei das S.As brasileira, o Companies Act não impõe obrigatoriedade de oferta pública de ações em casos de alienação de controle (tag along), nem de dividendos mínimos. Enquanto no País a criação de ações ordinárias com poderes distintos de voto é proibida, nas Bermudas, ela é permitida. Devido a essas características, a operadora de logística portuária Wilson, Sons e a rede de free shops Dufry South America, em seus prospectos, mencionaram as sedes em Bermudas como fator de risco. A primeira deixa claro que as regras de seu estatuto social divergem da Lei das S.As, na medida em que permitem o não-pagamento de dividendos, caso o conselho de administração considere a distribuição contrária aos interesses da companhia. Já a operadora de lojas de free shop alerta: “A CVM não será capaz de realizar integralmente a supervisão e a fiscalização das atividades da nossa companhia, nem executar totalmente suas normas e decisões contra ela”.

CONTRA MINORITÁRIOS — As Bermudas também são um paraíso para quem deseja alavancar o capital, diluindo o direito de voto de minoritários. Uma empresa sediada no arquipélago pode emitir ações ordinárias de classes distintas. Os estrategistas do IPO da Cosan Limited, por exemplo, estão se valendo desse recurso, criando ações ordinárias de classe A e B. Inicialmente, as ONBs da holding, com poder de voto multiplicado por dez, ficariam somente nas mãos do acionista controlador, Rubens Ometto Mello. Já as ONAs, formatadas conforme o princípio “uma ação, um voto”, seriam as únicas ofertadas. Mas a operação causou tanta chiadeira no mercado que acabou sendo revista, no fim de julho. Agora, os acionistas minoritários da Cosan S.A., convidados a migrar para a controladora, poderão optar por converterem suas ações ON por ONAs da holding, por BDRs representativos desses papéis, ou por ONBs de série 2, que têm poder de voto igual ao das ações do controlador.

Mais embarques de brasileiras rumo ao paraíso fiscal estão na agenda, segundo fontes do mercado. Afinal, chamarizes as Bermudas apresentam aos montes, sobretudo o entrosamento com as praças mais movimentadas. Prova disso é o fato de as companhias sediadas no território britânico abrirem o capital na Bolsa de Valores de Nova York (Nyse), como a Cosan Limited, ou em Londres, sem a necessidade de lançar DRs, a forma mais comum de emissão internacional. Nesses pregões, as bermudenses têm o privilégio de negociar ações mesmo — só na Nyse, há mais de 30 cotadas. Para quem não se lembra, as companhias brasileiras listadas na Nyse são adeptas dos DRs em razão da enorme burocracia que envolveria a liquidação de ações no exterior. Pela Lei 4.131, toda vez que um ativo nacional é vendido a um estrangeiro, o comprador se submete a uma via-crúcis de envio e recebimento de documentações, conforme explica o advogado Alexandre Garcia, do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão.

É fato que a guinada da Cosan desagradou as entidades do mercado de capitais brasileiro. Foi a primeira vez que as Bermudas se mostraram uma rival para o Novo Mercado da Bovespa. Analistas consideraram a hipótese de que, para fugir das regras do segmento especial de governança e da Lei das S.As, mais companhias brasileiras poderiam correr para as ilhas. “Se o mercado não se importar tanto com as proteções a minoritários, Bermudas serão uma grande concorrente da Bovespa. No fundo, a resposta está nesse ponto”, diz Jánszky. Porém, pelo menos para as companhias, as Bermudas continuam sendo um paraíso.


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