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O mistério dos tijolos
Delfim Netto: “O homem não nasceu para produzir, mas para vagabundear. Por isso precisa de um mecanismo eficiente de produção.”

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A casa ajardinada de dois andares, no bairro do Pacaembu, onde Antonio Delfim Netto instalou a consultoria Ideias quando saiu do governo, há 30 anos, guarda um mistério que até hoje o ex-ministro não conseguiu decifrar: nela, algumas portas abrem para paredes. Da mesma forma, a jornalista que o entrevista logo notará os tijolos por trás da simpatia das portas abertas — com sua conhecida destreza verbal, ele irá desviar da objetividade de perguntas incômodas. “Ah, isso é história”, responderá, sobre já ter sido conselheiro informal dos governos petistas, para em seguida elogiar a genialidade do ex-presidente Lula, como se fosse esta a questão levantada. “Ele é um diamante bruto. Se tivesse feito a USP, ninguém poderia com ele.”

Foi na USP, na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), que Delfim se forjou. E foi durante o regime militar que ninguém podia com ele. De superministro da ditadura, nomeado em 1967, a economista consultado por antigos rivais políticos, passando por cinco mandatos de deputado federal, Delfim Netto soma quase 60 anos de vida pública, hoje ministrando palestras, escrevendo artigos para jornais e com fama de personalidade ainda influente.

Os 88 anos de idade só serão completados no próximo 1º de maio, Dia do Trabalhador, mas ele faz questão de arredondar para cima. “Temos que contar direito. As pessoas é que preferem fazer um ajuste para baixo.” Está sendo jocoso, como será outras vezes, embora seus interlocutores às vezes demorem a perceber as tiradas cheias de autoironia — o que parece diverti-lo ainda mais.

“Nunca fui de esportes. Pelo contrário. O esporte é algo muito ruim, porque o coração tem um número certo de batidas. Quando se nasce, já está definido: 1 trilhão e 432 milhões e… 234 batidas. Não tem a 235. Se você corre, acelera isso. Então, o exercício é mortal!” Se um economista, elogiado pela inteligência até por adversários, deita-se em números minuciosos, com seriedade, é natural que o silêncio se instale por algum tempo e que as risadas sejam tímidas até que ele confirme: “Trata-se de uma brincadeira, claro”.

Agora Delfim usa o tom de galhofa para dizer o que parece ser verdade: “No fundo, eu não achava que ia durar tanto”. Ele prefere não falar da embolia pulmonar que chegou a deixá-lo em coma, há cinco anos, para continuar, em tom alegre, a falar de seus “grandes vícios”, como o de não se privar de uma boa mesa. “Tenho cuidados mínimos de saúde. Mas, se fosse inteligente de verdade, não carregava inutilmente vinte quilos o tempo todo”, acrescenta, a respeito dos 92 quilos. A receita para manter-se tão afiado (sem nenhum lapso de memória durante a entrevista) parece ser a intensa atividade intelectual — da qual não abre mão sequer para atender aos apelos para escrever uma autobiografia ou um livro de memórias. “Já tentei começar, mas toma muito tempo. Prefiro ler, aumentar meus conhecimentos, aproveitar esse negocinho aqui [a vida]. Além disso, a memória é ingrata: sempre melhora o passado.”

As leituras de Delfim passeiam por diferentes disciplinas desde os tempos em que sonhava ser engenheiro e trabalhava na companhia industrial Gessy, em São Paulo, onde ingressou tão logo fez 14 anos, como era comum aos rapazotes na época. Na empresa, um senhor socialista, médico culto que não exercia a profissão, apresentou-lhe uma coleção da editora Melhoramentos por meio da qual ele conheceu o “socialismo fabiano” (movimento político-social britânico), sua primeira paixão intelectual. Delfim acabou cursando contabilidade — oferecida em meio período, ao contrário da engenharia — e teve a sorte de estar se formando quando começava a se constituir ali a FEA. “Fui parar lá por acidente”, diz. “A profissão é que nos escolhe.”

Ele atribui o autodidatismo que sempre o caracterizou àquele início da faculdade de economia. Lá concluiu que o socialismo fabiano era “uma tolice” e começou a ser influenciado por acadêmicos italianos. “Professores e alunos estavam se construindo juntos com a faculdade; não havia um pensamento único.” Dessa época, lembra-se, por exemplo, de um professor de sociologia que era um “abridor de horizontes”, Heraldo Barbuy.

“A economia não é uma ciência. O seu conhecimento implica antropologia, psicologia e outras disciplinas, principalmente a história.” Delfim lamenta que escolas econômicas no Brasil “pululem entre as desenvolvimentistas, ‘atrasadistas’, keynesianas, marxistas”, enquanto não se discute em que sociedade se quer viver. “Na história, o homem vem procurando uma forma de organização que satisfaça algumas condições, como liberdade de iniciativa e uma sociedade mais igualitária, na qual o lugar onde se nasceu tem pouca importância sobre o seu futuro. Com liberdade e igualdade, ele pode explorar a humanidade que tem dentro de si. Porque o homem não nasceu para produzir, mas para vagabundear. Por isso precisa de um mecanismo eficiente de produção.”

Mas Delfim já tinha essa abrangência de pensamento na época de ministro, quando alegava ser preciso primeiro fazer crescer o bolo para depois reduzir a desigualdade? É verdade que se arrepende de não ter investido mais em educação? A palavra arrependimento, porém, não faz parte de seu vocabulário, e ele explica por quê: “As decisões são tomadas pela situação em que você se encontra e pelo conhecimento que tem. Não faz sentido, depois de 20 anos, dizer ‘ah, se eu conhecesse o futuro…’ A economia é opaca, e o futuro, absolutamente desconhecido. Não está contido no passado.”

O ex-ministro passou a criticar a presidente Dilma Rousseff, depois de anos de apoio ao seu governo, em dezembro de 2012, quando “uma alquimia transformou dívida pública em superávit primário”. “Aí chegou ao limite do aceitável”, diz ele. Mesmo assim, defende a honestidade da presidente, é contra os processos de impeachment e acredita que o respeito às instituições vai garantir que o Brasil volte a crescer e se desenvolver. Dadas as circunstâncias, não seria otimismo demais? “Preste atenção: um sujeito de 88 anos, se for pessimista, é um idiota.” A resposta é tão boa que a jornalista fica em dúvida se é genial ou apenas mais uma parede de tijolos.

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Uma alegria — O neto Rafael, de 6 anos. “Não esperava mais ser avô. Fui com 82 anos, o que talvez tenha um sentido diferente de quando se é avô aos 50 anos, algo mais natural. É uma benção, uma experiência fantástica: isso é viver.” Rafael é filho de sua única filha, Fabiana, batizada com este nome por causa da paixão de Delfim pelo socialismo fabiano na juventude.

Rotina — Acorda todo dia às 5h20, depois de dormir uma média de cinco horas. “Sempre fui de dormir pouco.” Lê três jornais em papel (diz não ter se adaptado ao tablet) e segue para trabalhar na consultoria até umas 13h30. “Aí a tarde é minha.” O “tempo livre” serve para leituras e a redação eventual de um artigo, mas a rotina é imediatamente interrompida se o neto aparecer. “Brincar com ele é mais importante que o resto.”

Hobby — Ler livros e artigos, em geral sobre economia, história e antropologia, e ouvir música clássica depois do almoço, especialmente as composições de Mahler e Beethoven. “A música me dá uma tranquilidade… É uma das coisas que dá para se fazer depois de velho.”

Atividade física — “Faço pouco exercício. Nenhum, aliás.”

Uma influência — Não se influenciou por um pensador ou economista em especial, mas por uma trajetória de formação. “Quando foi publicado, em 1948, o livro Economics (de Paul Samuelson e William Norhaus) era considerado uma revolução. Mas também era um keynesianismo (escola de John Keynes) ‘hidráulico’, uma coisa mecânica. Na origem, estudei mais pelos livros italianos, como o de Bresciani-Turroni, com uma visão mais ampla, institucional. Os italianos eram mais sofisticados não só na economia: foram os primeiros que realmente ‘metabolizaram’ o marxismo.”

Conselho para quem está começando — Costuma dizer aos estudantes de economia que eles não serão portadores de uma ciência. “A ideia de saber como algo vai se comportar é possível na química ou na física, não na economia. É preciso ser muito mais humilde. Determinado incentivo não vai se comportar como você gostaria, se for o incentivo errado.” Como ministro da Agricultura, ele experimentou isso na prática. Os programas de subsídios aos agricultores previam o repasse da vantagem ao consumidor, mas alguns deles acabavam enriquecendo. “Nas respostas [aos incentivos], sempre vão aparecer os muito mais inteligentes do que você.”


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