Uma lei para os fundos de investimento
Lei da Liberdade Econômica afasta classificação como condomínio e delimita responsabilidades de cotistas e prestadores de serviços
Lei da Liberdade Econômica afasta classificação de fundos de investimento como condomínio e delimita responsabilidades de cotistas e prestadores de serviços

Ilustração: Rodrigo Auada

Embora a força da indústria brasileira de fundos de investimento já esteja mais do que comprovada pelo patrimônio líquido de cerca de 5 trilhões de reais*, ainda faltava no País uma legislação específica para esses veículos, o que obrigava o mercado a se amparar em leis pensadas para áreas assemelhadas ou em normas infralegais. Já era tempo, portanto, de a lacuna ser preenchida, e isso foi feito na esteira da Lei 13.874/19, mais conhecida como Lei da Liberdade Econômica. O texto legal dedica um capítulo especial para os fundos de investimento, com importantes definições conceituais e delimitações de responsabilidades de cotistas e prestadores de serviços.

O marco legal enseja bastante expectativa e também muitos questionamentos. Os agentes do mercado tentam vislumbrar, por exemplo, de que maneira a Lei da Liberdade Econômica pode melhorar a segurança jurídica dos fundos, qual será a postura da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão regulador dessa indústria, ao tratar da regulamentação das diretrizes constantes da lei e como os veículos de investimento e os prestadores de serviços se preparam para se adaptar à nova realidade. Essas foram questões que nortearam o Grupo de Discussão “Fundos de investimento e a Lei da Liberdade Econômica”, promovido pela CAPITAL ABERTO com o patrocínio do Vieira Rezende Advogados. Participaram do encontro Felipe Hanszmann, sócio do Vieira Rezende Advogados; Daniel Maeda, superintendente de Relações com Investidores Institucionais da CVM; Luiz Sedrani, CIO da Asset Management do Banco Votorantim; e Rafael Bassani, diretor da Spectra Investimentos. A seguir, os principais destaques do debate.

CAPITAL ABERTO: Objetivamente, qual a principal mudança que a Lei da Liberdade Econômica provoca na indústria brasileira de fundos de investimento?

Felipe Hanszmann: A maioria das mudanças está relacionada a uma alocação de responsabilidades mais eficiente entre os players dessa indústria. E isso está ligado à realidade econômica dos fundos. Existe uma grande discussão sobre a natureza societária dos fundos, se são sociedades ou condomínios. Optou-se pelo condomínio por questões tributárias, só que isso gerou outros problemas ao longo do tempo. Então a CVM teve que criar regras aplicáveis a esse tipo de condomínio, que não era o “condomínio” que estava na lei civil.

CAPITAL ABERTO: A nova lei distingue condomínio e sociedade quando trata dos fundos?

Hanszmann: Um ponto interessante da Lei da Liberdade Econômica é que ela exclui totalmente a aplicação das regras do condomínio, o que tem um impacto direto na responsabilidade do cotista. Se o fundo é um condomínio, todas as suas despesas precisam ser pagas pelos condôminos — ou seja, os cotistas. Quando o patrimônio líquido do fundo se torna negativo, portanto, esses condôminos têm que aportar recursos para corrigir a situação. Agora, a Lei da Liberdade Econômica permite uma limitação de responsabilidade do cotista, trazendo o conceito de sociedade, que é a natureza jurídica mais próxima do fundo.

CAPITAL ABERTO: De que maneira essa limitação da responsabilidade do cotista interfere na relação entre ele e o fundo?

Hanszmann: A lei criou a possibilidade da limitação de responsabilidade dos cotistas ao valor das cotas, algo muito parecido com as sociedades e também com a responsabilidade dos prestadores de serviços do fundo. Quando se limita a responsabilidade do cotista, ele não tem mais a responsabilidade por patrimônio negativo — na prática, o que vai acontecer é uma insolvência. Aquele cotista aportou o que lhe cabia, o que ele tinha se comprometido a investir, e não vai precisar fazer novos aportes pelo fato de a sociedade ter dado errado. Outro ponto importante: segundo a lei, os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidos. Os prestadores de serviços não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má-fé.

CAPITAL ABERTO: O que diz a Lei da Liberdade Econômica sobre a responsabilidade de cada prestador de serviços em um fundo?

Hanszmann: As funções do gestor e do administrador são muito importantes. O cérebro do fundo é o gestor, não o administrador. O administrador é um prestador de serviços, um controlador do fundo. Quem está na liderança das decisões e vai gerir o portfólio é o gestor. Nada mais natural do que ele ser responsável pelas decisões que tomar. Mas por causa de novos fundos que têm surgido, existem muitas questões envolvendo as responsabilidades de cada parte. Por isso, a lei agora autoriza que, por meio de decisões contratuais, as partes decidam sobre os limites entre gestores e administradores. Isso é bastante positivo, porque torna a indústria mais eficiente. Uma outra coisa boa que a lei fez foi prever a possibilidade de criação de patrimônio segregado para cada classe de cotas. Isso já acontece em diversas jurisdições. As sociedades têm diferentes compartimentos e cada um tem o seu patrimônio de afetação. É como se fossem várias sociedades dentro de uma sociedade só. Então, teoricamente, em apenas um veículo é possível haver diferentes empreendimentos que não respondem uns aos outros.

Luiz Sedrani: Outra vantagem é que, com os papéis dos três principais prestadores de serviços dos fundos [gestores, administradores e custodiantes] bem definidos e descritos, é possível que cada um atue de forma independente. Esse tipo de segregação faz com que fique claro para o cotista o que ele está pagando e quem está sendo remunerado. Hoje, nas assets maiores, com a diversidade de fundos existentes, dá para perceber uma sobreposição de tarefas e funções muito grande. A segregação vem para deixar claro o que cada um tem que fazer para reduzir custos e, mais do que isso, para clarear ao Judiciário o papel de cada um.

CAPITAL ABERTO: Há pontos que ainda não estão muito compreendidos em relação a essa divisão de responsabilidades prevista pela Lei da Liberdade Econômica?

Rafael Bassani: Uma confusão já está sendo instalada, vindo principalmente de comitês de investimento e de alguns cotistas. Eles tentam limitar suas responsabilidades para se livrar de potenciais culpas e dolos de episódios que ocorreram em função da Greenfield [operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal que investigou irregularidades em fundos de pensão de estatais]. Eliminar toda a solidariedade entre os prestadores de serviços pode ser benéfico para alguns casos, mas pode gerar alguns problemas em outros.


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CAPITAL ABERTO: Como a Lei da Liberdade Econômica chega à CVM? Quais as impressões gerais do regulador sobre a nova legislação?

Daniel Maeda: A CVM atuou ativamente em todo o processo legislativo, que transcorreu de forma exemplar, saudável e profissional. Não podemos esquecer que se trata de uma lei que está posicionada no capítulo dos fundos de investimento no Código Civil — tem, portanto, natureza cível. E mesmo com a forte pressão dos cotistas, a lei tem uma “pegada” mais leve. Na redação desse capítulo, várias vezes é utilizado o termo “poderá”. Pouco do que está ali é obrigatório. A responsabilidade limitada dos cotistas, por exemplo, é uma possibilidade. A exceção está nos conceitos iniciais, como o de condomínio de natureza especial. Por conta disso, a regulamentação ganhou esse reforço institucional, para criar regras de aplicação mais claras para essa disposição legal.

CAPITAL ABERTO: Por que a lei tem uma regra relacionada à responsabilização dos gestores em casos excepcionais?

Maeda: Apesar de ser uma lei de liberdade econômica, ela foi um pouco além do cenário de possível responsabilização de um prestador de serviços. Antes não havia nada sobre o assunto, então a lei inovou com essa possibilidade de que, em um caso de fraude, de dolo ou má-fé, o gestor passe a ser responsabilizado civilmente. Quando surgiu a questão da responsabilidade solidária dos prestadores de serviços, naturalmente a CVM expôs preocupação com esse alinhamento de interesses. Por isso, quando realmente existir uma situação deliberada de fraude aos cotistas, haverá uma possibilidade de qualquer um dos stakeholders tentar reaver seu prejuízo.

CAPITAL ABERTO: E quem responde judicialmente nos casos de decisões em que o gestor se baseia em um comitê de investimento?

Maeda: Ainda que exista um comitê de investimento, isso não exime a responsabilidade do gestor. Ele pode se basear no comitê, mas o processo de tomada de decisão de investimento entra nas suas próprias atribuições, de acordo com a regulação da CVM.

Hanszmann: O comitê de investimentos é formado por pessoas que vão referendar a decisão de investimento do gestor — mas esse profissional tem o compromisso perante o fundo de atuar de maneira diligente. O que não faz sentido é que se atribua a responsabilidade para o gestor do fundo por ele ter assumido risco se a natureza do investimento é de risco.

CAPITAL ABERTO: Como a nova lei e a respectiva regulamentação impactam as grandes gestoras de recursos?

Sedrani: Ao longo dos anos, buscamos construir um entendimento dentro do Votorantim e da asset, que está inserida no banco, sobre as figuras e os papéis de cada um. Como temos uma linha integrada — ou seja, fazemos custódia, administração e gestão dos fundos — ficamos com quase todo o risco da cadeia. A partir do momento em que esses riscos estão mais delimitados, seja por conta da lei ou da regulação, é mais fácil nas discussões obter aprovações. Vale destacar que a aprovação de qualquer novo produto ou fundo em uma instituição grande é um processo demorado, que envolve muitas áreas. Quando as regras estão mais claras, dá para precificar melhor o risco.

CAPITAL ABERTO: Nos casos de insolvência do fundo, qual será a postura da CVM?

Maeda: Quando surgiu a discussão da responsabilidade limitada dos cotistas ao valor de suas cotas, veio a perplexidade sobre quem arcaria com o patrimônio negativo do fundo. E aí acabou aparecendo a ideia da insolvência. Se você parar para pensar no papel da CVM ao longo da sua história, ela sempre atuou também como árbitro de discussões, com bastante independência e técnica. Uma situação de insolvência é, por conceito, uma situação de estresse, de insatisfações generalizadas. Então existe mesmo a possibilidade de um impasse. E aí, naturalmente, há a necessidade de a CVM atuar como um árbitro.

Hanszmann: Esse assunto é o cerne da norma. Mas são cenas dos próximos capítulos. Como isso será aplicado na prática ainda vai demorar um pouco para amadurecer e vai depender das sinalizações da CVM.


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