Transição energética de escanteio
Para driblar a dependência de óleo e gás da Rússia, países apostam em soluções curto-prazistas e prejudiciais ao planeta
Para driblar a dependência de óleo e gás da Rússia, países apostam em soluções curto-prazistas e prejudiciais ao planeta
A fim de diminuir a dependência do gás vindo da Rússia, muitos países da Europa também cogitam aumentar a queima de carvão, o maior contribuidor da crise climática | Imagem: freepik

“Imagine um paciente diagnosticado com um câncer de pulmão que evolui tão rápido que beira o estágio terminal da doença, mas ainda não chegou lá. Então, descobrimos que um dos maiores produtores de tabaco, responsável por desencadear esse câncer, está usando os lucros que obtém com o paciente para cometer atrocidades contra outras pessoas.”  A analogia foi feita pela diplomata costarriquenha Christiana Figueres, uma das idealizadoras do Acordo de Paris, ao ser questionada pela Bloomberg sobre os efeitos da invasão russa à Ucrânia na transição energética. Segundo ela, o “paciente” (uma representação das grandes nações ocidentais) pode muito bem procurar produzir “tabaco” (leia-se combustíveis fósseis) em seu próprio quintal, para diminuir o lucro do vendedor. A atitude deixaria sua consciência mais tranquila, porém não melhoraria a sua saúde. E, para preocupação de todos os habitantes do planeta, é por esse caminho — de soluções paliativas, curto-prazistas e pouco efetivas — que grande parte das potências ocidentais estão seguindo.

A Alemanha é uma das nações europeias que mais precisam de combustíveis fósseis para manter a população aquecida durante grande parte do ano. Cerca de metade do gás natural e do carvão utilizado no país para esse fim vem da Rússia. Mesmo assim, com a eclosão da guerra na Ucrânia e as sanções econômicas decorrentes dela, o governo alemão anunciou, em março, a interrupção das atividades no recém-construído gasoduto Nord Stream 2, projetado para receber combustível da Rússia.

A iniciativa poderia ser a primeira de uma série de ações rumo a uma guinada na descarbonização da economia alemã. E incialmente era isso o que se esperava. No auge do conflito entre Rússia e Ucrânia, o chanceler alemão Olaf Scholz anunciou a antecipação, de 2040 para 2035, da meta do país de produzir toda sua energia elétrica e calefação a partir de fontes renováveis.


A Capital Aberto tem um curso sobre mercado de carbono. Confira!

Não demorou muito, no entanto, para que o chanceler viesse a público com uma notícia bem menos animadora para a preservação do planeta. Usando o argumento de que o país não pode ficar à mercê da energia vinda da Rússia, o governo alemão decidiu construir dois novos terminais de gás natural liquefeito, que serão abastecidos por outras nações. O projeto levará anos para ser concluído, e o receio de especialistas é que possa atrasar a transição energética na Alemanha.

“Por causa da invasão na Ucrânia, as pessoas foram lembradas do problema [da crise climática], mas depois recorreram a uma solução rápida, que não é realmente sustentável a longo prazo”, disse Rolf Wüestenhagen, diretor do Instituto de Economia e Meio Ambiente da University de St. Gallen, na Suíça, à Fast Company. Segundo ele, em países como a Dinamarca, onde mais da metade da eletricidade já vem de fontes renováveis, o caminho para a transição energética é mais claro. Mas, em nações ainda muito dependentes de combustíveis fósseis, alerta, existe um grande risco de que as autoridades simplesmente recorram a fornecedores alternativos e igualmente poluidores — como fez a Alemanha — para garantir a sua segurança energética.

A fim de diminuir a dependência do gás vindo da Rússia, muitos países da Europa também cogitam aumentar a queima de carvão, o maior contribuidor da crise climática. Atitude que, na visão de alguns especialistas, é inconcebível. “Não conseguimos arcar com isso, nem que seja uma solução temporária”, afirmou Chiara Martinelli, diretora da ONG Climate Action Network Europe, à Wired. Para ela, a dependência de combustíveis fósseis precisa parar o quanto antes. “É necessário encarar que, no curto prazo, a melhor solução para a Europa é reduzir sua demanda energética.”

Sem tempo a perder

O senso de urgência de Martinelli vai ao encontro de um relatório publicado por especialistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Divulgado na semana passada, o documento afirma que a humanidade tem até 2025 — e não 2040 — para frear as emissões de gases de efeito estufa e impedir consequências irreversíveis ao planeta desencadeadas pelo aquecimento global.

Atualmente, a Rússia é um dos mais proeminentes fabricantes de combustíveis fósseis no mundo. De acordo com a International Energy Agency, o país é o terceiro maior produtor de petróleo bruto do planeta e o segundo maior de gás natural, ocupando o topo da lista de maiores exportadores. Até a guerra na Ucrânia eclodir, os Estados Unidos compravam diariamente de Moscou mais de 200 mil barris de petróleo e cerca de meio milhão de barris de derivados.

Em março, o governo de Joe Biden impôs sanções severas à Rússia, banindo as importações de petróleo, gás natural e carvão. Mas, segundo o U.S. Energy Information Administration, apenas 8% de petróleo e derivados utilizados pelos americanos em 2021 veio do país. É o Canadá que fornece — e continua a fornecer — a maior parte. Assim, para os Estados Unidos, a perda do abastecimento de energia proveniente da Rússia tem impacto reduzido e não deve funcionar como um trampolim para a transição energética. Nos últimos 12 meses, a perfuração de poços de petróleo aumentou em 60% no país e, com a guerra, os progressistas americanos defendem que deve haver alterações na atual legislação, destinada a afastar a nação de combustíveis fósseis.


Conheça o curso de investimentos responsáveis da Capital Aberto

Já a União Europeia não têm condições de adotar uma sanção do gênero. Em 2019, para se ter uma ideia, o bloco importou cerca de 40% de seu gás natural, mais de um quarto de seu petróleo e aproximadamente metade de seu carvão da Rússia. Em discurso para o Parlamento europeu, Josep Borrell, chefe de política externa da União Europeia, afirmou que, desde o início da guerra na Ucrânia, o bloco já desembolsou 35 bilhões de euros para pagar por combustíveis fósseis russos. O montante é gigantesco e causa perplexidade principalmente quando colocado ao lado de outra informação: nesse mesmo período, a União Europeia direcionou apenas 1 bilhão de euros para o país liderado por Volodymyr Zelensky se defender da invasão.

Diante desse quadro, não chega a ser uma surpresa que o plano da Comissão Europeia para punir a Rússia seja limitado. Ele estabelece a diminuição das importações de gás russo em cerca de dois terços (o equivalente a 101,5 bilhões de metros cúbicos) até o final do ano. O alcance desse objetivo depende, em grande parte, de um aumento de 67% das importações de gás natural de outros países, como EUA e Qatar. Os outros 33% devem vir de novas fontes de energia renovável e de medidas de conservação.

A questão é que, ao colocar em prática esse plano, a Europa acaba impulsionando a produção de gás natural em países exportadores ou com grandes reservas de combustíveis fósseis, em vez de fomentar o investimento em renováveis.

Retrocesso?

Para piorar, o estímulo à retomada do setor de combustíveis fósseis pode vir não só dos governos, mas também dos investidores. De 2015 a 2019, o setor de petróleo e gás teve um desempenho fraco na bolsa de valores, o que facilitou a decisão dos gestores de recursos de excluir empresas desse segmento de seus portfólios, sob a bandeira dos princípios ESG. Entretanto, com o barril de petróleo beirando 100 dólares, essa decisão não parece mais tão simples.

Um relatório recente da BlackRock mostra que as ações de empresas de energia tradicionais estão apresentando um bom desempenho no curto prazo, graças à crescente demanda por petróleo e gás que não sejam provenientes da Rússia e ao aumento dos preços dos combustíveis fósseis. A asset ressalta que, em 2019, antes da pandemia bater à porta, o barril de petróleo era vendido por cerca de 57 dólares. Com o início do conflito no leste europeu, esse valor saltou para mais de 130 dólares. “A produção de combustíveis fósseis russos não pode ser realocada para outro lugar rapidamente, de modo que o fornecimento global de energia está efetivamente reduzido, provocando enormes picos de preços”, escreveu a asset. 

E com o preço do petróleo nas alturas, investidores que abandonaram o setor já voltam a olhá-lo com interesse. “Quando você pensa em investidores voltando ao mercado, você tem que pensar no que os afastou inicialmente”, afirmou Adam Waterous, fundador da empresa de private equity Waterous Energy Fund, em entrevista à Institutional Investors. “Em nossa opinião, foram os retornos ruins em primeiro lugar e, somente depois, as preocupações com questões ESG”.

O problema é que, no momento em que vivemos, a escolha por fomentar ou não o setor de combustíveis fósseis vai muito além da questão financeira. O que está em jogo — e muitos parecem não entender — é a preservação da vida no planeta.

Matérias relacionadas

Os limites do investimento responsável

Guerra na Ucrânia expõe o dinheiro negligente

Tragédia anunciada 


Para continuar lendo, cadastre-se!
E ganhe acesso gratuito
a 3 conteúdos mensalmente.


Ou assine a partir de R$ 34,40/mês!
Você terá acesso permanente
e ilimitado ao portal, além de descontos
especiais em cursos e webinars.


Você está lendo {{count_online}} de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês

Você atingiu o limite de {{limit_online}} matérias gratuitas por mês.

Faça agora uma assinatura e tenha acesso ao melhor conteúdo sobre mercado de capitais


Ja é assinante? Clique aqui

mais
conteúdos

APROVEITE!

Adquira a Assinatura Superior por apenas R$ 0,90 no primeiro mês e tenha acesso ilimitado aos conteúdos no portal e no App.

Use o cupom 90centavos no carrinho.

A partir do 2º mês a parcela será de R$ 48,00.
Você pode cancelar a sua assinatura a qualquer momento.